terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Escombros


O que me intriga em relação à humanidade é que somos uma espécie de símios sociais que evoluíram o suficiente sua estrutura de sociedade para que o direito de voltar a agir como outros símios seja ferrenhamente exercido e defendido pelas pessoas. “Olhem para o meu encéfalo desenvolvido. Não, sério! Olhem para ele! Cheio de curvas e giros, e massa cinzenta e massa clara. Uma proeza da seleção natural! Mas acho que eu vou afogá-lo sob um oceano antievolutivo de uísque e energético por hoje, e tentar impressionar o maior número possível de menininhas também bêbadas. O quê? Minha namorada? Quem me garante que ela não está solta por aí, fazendo a mesma coisa? Mulher não presta não, cara! Melhor aproveitar enquanto eu sou jovem!”.
A comunicação rudimentar e pós-rupestre da grande maioria das pessoas da geração que respira o poluído ar dos anos 2010 com pulmões ainda vívidos e não completamente corroídos pelo tabagismo voluntário ou por outros tipos de fumaça ou pela humanidade circundante só não é mais deprimente do que a mensagem que ela tenta expressar. E então somos bombardeados com a superficialidade alheia, temos de filtrar o que presta em meio a cascas malcheirosas de futilidade e desespero. Essa é a sociedade da informação, e essa é a informação infinita e ruidosa que escolhemos ignorar. E então as pessoas escolhem para si carreiras com as quais elas não têm a menor afinidade, baseadas na lei do “Eu tenho de fazer uma Universidade”, completada pelo parágrafo I: “que me dê uma carreira que pague bem”. E então as pessoas escolhem e traem parceiros tão vazios, rotos e socialmente atrofiados quanto eles, pelo medo de ficarem sozinhos, baseados nos critérios mais vagos que conseguem escolher. E então as pessoas compram carros novos e brilhantes para se potencializarem, e dirigem esses carros alcoolizados ou sob influência de outras substâncias, com alto-falantes gritando a música da qual são forçadas a gostar, dirigindo suas carcaças metálicas com motores de dezesseis válvulas pela luminosa auto-estrada da incompletitude. Guiam-se por um céu destituído de estrelas. Os astrolábios estão quebrados, as mentes inebriadas, e não há rumo. E então as pessoas abraçam existências vazias, e falam sobre ela de boca cheia.
Qualquer criatura inteligente forçada a caminhar ao lado de semelhantes como esses deveria ser pelo menos tão infeliz quanto Woody Allen. Esse é o nosso grande trauma, o nosso grande drama: Somos menores do que as opções. Nunca seremos grandes. Envelhecemos sem amadurecer. Somos recheados de uma fauna inquieta de sentimentos com os quais não aprendemos a lidar. Escondemos nossos verdadeiros espectros psicológicos por trás de comprimidos, ou apenas do medo de sermos diferentes de um jeito ruim. Somos crianças insinceras, e a nossa mentira não é nossa culpa: é a doença que se encista no nosso modo de vida. É o parasita a se alimentar dos reais prazeres, a larva albina da padronização. Esquecemo-nos de como é boa a chama destrutiva de nossa essência, quando utilizada em prol da cerâmica das reais ideias. E o mais interessante é que o irracional e estúpido irrompem ainda mais grotescamente numa época onde os feitos mais intrigantemente avançados da nossa espécie despontam.
Pisamos na lua há mais de quarenta anos. Enviamos sondas para Marte, e mapeamos com maior precisão nossa galáxia e nosso Universo a cada dia. Mas os verdadeiros alienígenas dormem ao nosso lado todos os dias. São os funcionários que movem os setores circundantes. São nossos amigos atordoados e tristes. São a nossa família que sequer chegamos a compreender. São os vizinhos e a atmosfera inóspita de seus gramados ou seus apartamentos. A galáxia distante de outras mentes. A incômoda e longa estrada que nos move para além de nossa zona de conforto. A estratosfera da relação interpessoal, onde comunhamos com seres desconhecidos. De que adianta descender das gerações que desvendaram o átomo se não sabemos lidar nem mesmo com a nossa própria ansiedade, com a instabilidade radioativa de nosso humor?
Somos uma tribo que nenhum antropólogo teria um real prazer em estudar que não o da vã estranheza. Somos um bando de gente sem-graça de mentes castradas, que espalham seus genes sujos e vergonhosos por aí, talvez aumentando a chance de que alguma consciência aflore nessa vasta cadeia de sistemas nervosos congelados. Escolhemos contrair doenças (venéreas ou não), pelo estranho prazer da autodestruição, mas sequer sabemos burilar esse suicídio de uma forma poética. Então apenas nos destruímos, talvez pela repulsa crescente da nossa feiúra, que deve surgir mesmo nas mais insapientes criaturas. Homo ignorans... Homo ignorans, Homo ignorans, Homo ignorans... Que a evolução confisque cada um dos que permanecerem como meros espectadores de um pós-apocalipse diário como esse. Homo ignorans. Cada um que se recusar a aceitar a injustiça de ter nascido em uma espécie de seres que deveriam mesmo buscar entender um pouco mais de si mesmos, de seus semelhantes, seus diferentes, do mundo no qual elas nasceram. E não apenas guardá-los na comodidade de um frasco de valium escapista (não entrando aqui o mérito daqueles que realmente necessitam disso), enquanto babamos nossa baba grossa e malcheirosa sobre todas as esferas da vida. Os maias estavam certos, e nós estamos mortos. Apenas mortos.