E
eu acordo, fora da minha casa, de uma noite de sono peculiarmente complicada. Devido
ao concurso que fiz para a vaga à qual estou concorrendo, teria de estar hoje
muito cedo em um lugar muito longe, o que me levou a recorrer à estadia na casa
de amigos (valeu, Paulinha e Daniel!). O problema não é dormir fora de casa. Eu
já me acostumei ao status de um eterno peregrino, pertencente apenas à Estrada,
com um coração incandescente que percorre os acostamentos como um único farol,
prestes a falhar na insone e infinita viagem. Fico entre três cidades, nenhum
lugar é a minha casa, e estou muito feliz por (apesar de não ter muito o que
chamar de “raízes”) ter pequenas sementes de lar em vários lugares (a casa dos
meus pais é o mais reconfortante deles). Mas eu estou divagando: Não dormi mal
por não estar em casa. Estou longe disso em pelo menos quatro anos. Eu dormi
mal por conta da tempestade (daquela que estava por vir às 8:15 da manhã, na
qual nuvens negras de insegurança tentariam eletrocutar a garganta), e da
tempestade real, física, que me acordou às 3 da manhã, com ventos e chuva e
trovões barulhentos, queda de luz, e logo eu passei de “sentir frio” para suar
uma própria tempestade particular: Os ventiladores pararam de funcionar.
Antes
disso, eu já estava um pouco insone. Depois disso, eu tive um dos mais
estranhos episódios do que eu chamo de “estado de semi-vigília”, aquele momento
no qual os sonhos estão passando por você rápido demais, e você ainda tenta
analisá-los com sua mente desperta, consciente da sua existência sólida e
depositada sobre um colchão confortável (porém quente). Talvez a palavra “tempestade”
tenha puxado memórias, e eu logo comecei a pensar em “Deuses Americanos”, e
sobre vários deuses, e mitos, coexistindo. Possivelmente batalhando enquanto eu
tentava dormir e tinha estranhos sonhos, possivelmente enfrentando uns aos
outros na tempestade. Não vou prosseguir na descrição, pois spoilers podem
estar envolvidos. Mas eu tentava dormir, e só conseguia pensar em deuses, e
isso foi a insônia da manhã. Além disso, sonhei uma hora exatamente que estava
tentando dormir e não conseguia. Meta-sonho eu até entendo. Mas meta-insônia é
demais.
Depois
de dormir pouco e mal, tomei a dose mais forte de café que consegui e fui para
fazer minha prova didática. Exausto. PRIMEIRO DESAPONTAMENTO DO DIA (Já que insônia
não conta muito, por fazer parte daquela penumbra entre dois dias, e por já
fazer parte da minha rotina): O Edital dizia especificamente que, para a
segunda fase do concurso, o candidato que falhasse em chegar com 1 hora de
antecedência seria desclassificado. Simples assim... Se não chegou 1 hora
antes, você é desclassificado, e eu até acho quase justo, já que há uma série
de documentos a serem apresentados. Certo?
Errado!
Eu (bem como vários outros Desapontados) chego lá mais de uma hora e quinze
antes do horário marcado, e me instruem a ficar do lado de fora, esperando,
porque a entrada seria liberada apenas às 8 horas. Depois disso fiz a prova,
vim para casa e comprei o SEGUNDO DESAPONTAMENTO DO DIA: Bib’sfihas de carne
que, embora estivessem realmente muito gostosas, tiveram um reajuste de valor
de 100%. Repito: De 0,49 centavos, elas pularam para 0,98! Vim para casa
comento, e disse para mim mesmo: “Para desestressar, quero ver um filme bom
nessa porra!”.
--- Momento Christopher Nolan de
não-linearidade ---
Era
uma sexta-feira, uma outra sexta-feira à noite, porém depositada duas semanas
antes do dia de hoje. Eu e meu amigo de república, Caio, estávamos indo ao
mercado para comprar material para fazer um pequeno festival de comida
japonesa, com a namorada dele e uns amigos. Eu estava empolgado com “Tiros em
Columbine”, documentário do Michael Moore sobre a fixação estadunidense com
armas. Apesar de ser tendencioso como tudo no que o Michael Moore toca, o
documentário é muito bacana. Nele eu descobri que, pelo menos até 2003,
Charlton Heston era o presidente da associação nacional do rifle. E pelo menos
até 2003 ele tinha umas opiniões bem filhas da puta. Por conta disso, perguntei
ao Caio:
— Cara, o Charlton Heston é bom? Ele fez algo
de realmente relevante que valha à pena?
Ao
que o Caio respondeu:
— Além, claro, de “O Planeta dos Macacos”... Bem,
sei lá... Eu nunca vi Soylent Green, mas parece ser bem nice.
—
Ah, sim.
—
Eu até tenho bastante vontade de ver. O triste é já saber o final, e a maior
reviravolta do filme.
—
Sério?
—
Cara, é um dos spoilers mais fáceis de saber da história do cinema. É uma frase
totalmente cultuada, e citadíssima.
— Juro para você que eu nunca soube do spoiler
final de Soylent Green. Mas a gente bem que poderia assistir esse filme um dia.
Atenção
para essa última frase. Uma estranha cadeia de eventos se desencadeou a partir
daí, culminando com um desapontamento impressionante ao final desse conto. Voltemos
para o dia de hoje.
--- De volta ao presente ---
—
Cara, vamos ver um filme?
— Pô, eu topo!
Que filme?
— Ah, cara...
A gente tinha pensado em Soylent Green ou Magnólia...
— Porra,
Soylent Green, pode crer.
— Pois é...
Antes que o spoiler dele me alcance.
Se vocês não
sabem, spoilers são entidades de caos conceitual. Eles estão à espreita,
manipulando conversas, manipulando a mídia e as tão-chamadas coincidências,
apenas para que você tome ciência de elementos de roteiro de obras com as quais
você se importa. As duas semanas de estudo intenso para o concurso do CEDERJ
construíram uma muralha de produtividade, mantiveram o Spoiler de Soylent Green
afastado de mim. “Hoje é meu dia de folga!”, pensei. “Melhor ver logo essa
porra desse filme!”
O Caio
procurou por “Green” em sua biblioteca de filmes baixados de forma estritamente
legal e sem violação de copyright, e não achou. Ele ainda não havia pego o
filme. O que ele achou foi um suspeito documento de PDF sobre cultivo artesanal
de maconha. E ele se perguntou por que diabos isso estava no computador dele. (qualquer
um que não use maconha provavelmente se poria a perguntar a razão daquilo, ou
pelo menos eu me poria!). Era um manual que veio de “brinde” numa versão que
ele baixou de Reefer Madness, um filme obscuro dos anos 30, feito com o intuito
de mostrar os perigos dessa terrível droga (mais perigosa do que heroína e cocaína,
segundo o filme; e responsável pela degradação da juventude e dos valores da música...
aquilo que nós chamamos de “jazz”, sabe? uma puta degradação da música esse tal
de jazz). Como o filme tem a fama de ser uma ótima comédia por conta de seus
exageros e atuações forçadas, procuramos o filme. E, como ele já estava
baixado, resolvemos assisti-lo ainda assim. Soylent Green ficaria para depois.
(Reefer
Madness é um péssimo filme. Não vale muito nem como uma comédia de exageros. Sério
mesmo, não assistam isso. A sala de cinema da minha república anda numa fase
amaldiçoada, e os últimos filmes que vimos ali foram “Visitor Q”, “Pink
Flamingos” e “Reefer Madness”. Reefer Madness é o menos pior. mas ele, em
universo paralelo algum, é um filme bom.)
A namorada do
Caio veio para cá no fim do dia. Livitchka estava de bom humor, e resolvemos
todos sair em um feliz programa para assistir “Cloud Atlas” (“A Viagem”,
ilustração de capa desse post). Fomos para o shopping, compramos a entrada, e
ainda dava tempo de brincar um pouco na máquina de “Pump it Up!”. Eu nunca
havia dançado “Pump it Up!”, sou um completo desajustado no que diz respeito a
olhar para uma tela com setinhas e interpretar essas setinhas como movimentos
corporais rápidos e precisos. Aliás, precisão em movimentos corporais é o que
eu menos tenho, o que me rende equimoses, tropeços e cortes praticamente toda
semana. Resolvi tentar dessa vez. Dançamos até cansar, e fomos para o cinema. Já
em cima da hora para o filme, mas “Tudo bem! Compramos as entradas antes!”.
Certo?
Errado!
Cheguei lá em cima e percebi que as minhas entradas haviam caído quando puxei o
cartão para comprar fichas no playground do shopping. Tarde demais para descer
os 4 lances de escada do shopping labiríntico, vendo meu reflexo desesperado
estampado em vitrines cheias de pessoas que riam de mim. Fora que alguém já
deveria ter pego a minha entrada. E foi assim que, mesmo andando num orçamento
bem fodido desde que resolvi comprar um encadernado de Sandman, eu paguei duas
vezes a entrada do cinema (por sorte, ainda pago meia!).
Entramos no
meio da primeira ou, talvez, segunda cena do filme. A sessão de cinema foi
conturbada: Celulares tocando, pessoas falando alto, um projecionista que
provavelmente foi admitido no serviço sem sequer fazer uma mísera entrevista,
casais inconvenientes fazendo comentários em voz alta, e um casal de
deficientes auditivos que ficaram brigando o tempo todo ao meu lado (a ponto de
uma hora eu achar que o rapaz estava realmente agredindo a menina, mas
sinceramente não sei dizer). Possivelmente uma das piores sessões de cinema da
minha vida.
O filme segue
bem até certo ponto, depois se perde numa espiral de frases new age sobre amor
e vidas conectadas e reencarnação. Não esperava nada muito diferente, mas não
precisava de tantas frases de efeito em clima brega. E o mais interessante é
que, até o meio, as histórias estavam evoluindo muito bem, e eu estava
realmente me divertindo. Num certo ponto (também uma penumbra, repousando entre
a parte original e a parte batida do filme), porém, todas as profecias da minha
vida ultimamente se uniram, de uma forma majestosa, quase paranóica, quase grandiosa,
mística... E, certamente, muito irônica, e muito desapontadora:
No meio
daquela sessão de cinema terrível, de um filme que não é ruim, mas não chega
nem a ser bom, contaminada pelo ruído de pessoas inconvenientes que vão ao
cinema para tornar as vidas das outras pessoas mais miseráveis, pela péssima
projeção, com falhas no áudio e na troca dos rolos, e que, ainda assim, me
custara o valor de duas meias-entradas... O Spoiler de Soylent Green me
alcança, berrado aos quatro ventos por um dos personagens do filme. O spoiler,
a porra do spoiler, que eu tinha conseguido evitar por duas semanas e que teria
sido impertinente se não fosse pela péssima escolha de ver Reefer Madness.
Conclusão:
Acho que vou abraçar parte de todo aquele ideal de Karma que “Cloud Atlas”
tentou me passar. Para mim, especificamente, ele foi um exemplo de Karma. Eu só
queria mesmo entender o pecado que gerou esse dia de hoje. Foi um dia muito,
mas muito estranho!
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