Existe uma cidade dentro das galerias claras do meu crânio.
Nesse exato momento ela adormece, e seus sons se escondem
por trás do meu cotidiano barulhento e cheio de música.
Mas eu sei que basta fechar os olhos para acessar as imagens
sépia e sujas de suas ruas bagunçadas.
Às vezes, quando eu sinto a polícia paranoica de mim no
meu encalço, gosto de me refugiar na minha cidade.
Ela possui bairros, mas eles são difusos,
E seus trens trafegam fumegantes pelos limites da memória.
Todos os vidros estão empoeirados o tempo todo, mas os
[alfaltos brilham.
(Os asfaltos sempre brilham na minha cidade. Ao brilhar,
eles refletem um pouco da minha gigante estátua de inquietude)
Existe uma cidade em meu cérebro esponjoso e rosado,
E nem sempre ela gosta de mim.
Há uma galeria na minha cidade...
Ela é toda construída com base em um material resistente,
algo estranho e raro, porventura maravilhoso;
Que seria lindo se não fosse ódio,
Se não fosse o barro frio e resistente das más impressões e
dos preconceitos.
Nessa galeria estão penhoradas as memórias das quais mais me
arrependo, mas não consigo me livrar delas.
Talvez porque o barro frio também as componha, e ninguém tem
interesse nessa porcaria.
O ódio é uma matéria prima barata, e morreria de fome se
dependesse dele.
As altas torres de concreto possuem, às vezes, vistas
maravilhosas.
É uma cidade litorânea, a minha.
À tarde, quando o sol das ideias rasas começa a dar lugar à
noite, ele reflete-se nas águas do oceano.
As águas não são das mais cristalinas, mas fornecem os
sonhos necessários,
E o reflexo do sol entre as algas mortas e os sacos de lixo
e embalagens é uma visão e tanto para a mente.
Uma cidade litorânea, com alguns pontos de cartão-postal, se
você der sorte. Uma cidade quase bonita, um bom ninho para
[aposentadorias, talvez.
Mas uma cidade, ainda assim. Construída de tudo o que se
sente, e tudo o que se pensa, na encosta rochosa do meu crânio
branco-amarelado.
Às vezes, quando os clubes estão agitados,
Quando há tráfego, talvez, e os estressados começam a
buzinar ao longo das minhas ruas,
Eu tenho uma enxaqueca daquelas, e a vertigem e o desprezo
pela vida me invadem.
Nesses momentos, eu gostaria de poder exilar a dor de cabeça
em uma cela especial.
Uma cela só para ela, na grande e ostensiva penitenciária
que há no centro da cidade.
Mas não há vagas para mais uma dessas dores bobas naquela
penitenciária, e então eu fico deitado com um travesseiro no
[rosto, odiando todos os sons do mundo.
Existe uma estranha metrópole nessa minha cabeça estranha (a
mesma que dói de vez em quando)
Quando eu tenho tempo de olhar para ela de longe, eu posso
ouvir o lento jazz que compõe o seu ar,
Eu consigo sentir a atmosfera de paraíso elétrico, da
iluminação possível, e de uma agência imobiliária administrada pela
[felicidade, com placas em todos os cantos.
E, então, a felicidade é alcançável, dona de tudo por aqui,
taxando todos os lugares, e próxima de mim a todo momento.
É quando sinto a calma.
Mas existe também uma cidade fora dessa minha cabeça estranha,
e ela sempre me chama de volta.
Às vezes um dos habitantes da minha cidade consegue fugir,
consegue percorrer todo o caminho até a rota de fuga mais
[próxima.
Então ele pode parar nas minhas mãos, e ser escrito em uma
língua vulgar.
Ou ele pode desembocar na minha garganta, e puxar as cordas
das palavras
(para que elas dancem, e a culpa seja dele)
Às vezes ele apenas foge, e eu não sei para onde ele vai, ou
ele não é do tipo que se expressa na palavra escrita ou falada.
É quando eu sorrio sem motivo, ou gargalho de uma graça da
qual não me lembro.
E então me calo, ciente de que o próximo censo perceberá a
falta de mais um morador.
Às vezes eles desistem da fuga, e voltam para seus cubículos
apertados, onde viverão vidas apertadas como cada um de
[nós aqui do lado de fora.
Sim, existe mesmo uma cidade escondida pela fachada de pele
e ossos e colágeno e endotélio e sangue que me compõe a
[testa.
Uma cidade oculta pelos meus olhos cínicos e tímidos.
Uma cidade grande.
E às vezes, passeando por ela antes de dormir, eu desejaria que ela fosse um campo.
Você sabe o quanto eu gosto quando você escreve. Adorei passear pela sua cidade, conhecer um pouco dos seu pensamentos difusos, entrar nesse mundo confuso e maravilhoso que é sua mente. Espero que sua urbe esteja fumegante de ideias que trafegam pelos ventos e se tornam poesias, histórias e dias de verão.
ResponderExcluirVerão? Não, tudo menos verão! Eu odeio o calor, cara! ahuahuahuauhauhua!
ExcluirMas muito obrigado pelos elogios! Essa cidade anda estranha ultimamente, mas ainda está feliz.