Palidez
Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.
Cambaleio um pouco, com a palavra “sorte” ainda
na mente. A palavra também cambaleia na minha mente, indo e vindo, escorando-se
nas paredes frias da consciência. Que situaçãozinha fodida essa na qual fui me
meter. Ando até uma mesa, na sala de jantar, e despejo descuidadamente o meu
corpo febril sobre uma das cadeiras. Tenho vivenciado uma rotina de tosses
intermináveis, e o meu sangue arde tanto dentro das veias ígneas de febre que
minha visão já está um tanto embaçada. Ainda tenho alguma força dentro de mim,
o bastante para digitar, na tela da própria mesa, um pedido qualquer de comida.
Quando todas as variações do cardápio têm o gosto e a textura de uma simples
ração de viagens, a dúvida entre pedir uma pizza ou um prato de gnocchi à parisiense torna-se obsoleta.
A fome que sinto serve para encher o tanque de combustível do
“Expresso-Indiferença”. Mastigo a comida sem gosto, com o auxílio relutante de
músculos que doem, e tremem contra a minha vontade... Algumas pessoas nascem
com sorte. A grande maioria das outras não está tão melhor assim do que eu.
...
Há um ano e dois meses eu fui escalado para
essa missão. Os caras das maletas elegantes me chamaram para a saletinha
metálica, serviram-me doses e mais doses de qualquer coisa espumante e
sem-graça, empurraram torradinhas cobertas de “patê Nutricon” dos mais diversos
e requintados sabores pela garganta, e me deram uma puta temporada de férias em
uma daquelas grandes praias paradisíacas artificiais. Deram-me a opção de ir
com a minha esposa ou com “Duas acompanhantes maravilhosas que poderemos
auxiliá-lo a escolher. Queremos que você fique bem à vontade por essas semanas,
filho.”. Eles me garantiram o melhor e mais privado lugar na praia. Disseram
que eu poderia até mesmo trepar na água e ninguém ficaria sabendo.
Eu não trepei na água. Curti minhas férias
sozinho com a minha esposa (eu não precisei de ajuda alguma para escolhê-la),
mesmo sabendo que ela estava puta comigo pelo que nós dois sabíamos que viria a
seguir. Esse tipo de regalia não vem de graça. Os caras das maletas elegantes e
das “acompanhantes escolhidas a dedo” e dos ternos com perfumes de nome
impronunciável (ou, no mínimo, que você não conseguiria pronunciar sem um
sotaquezinho afrescalhado qualquer) fizeram de tudo para que eu me sentisse um
deles, para que eu percebesse o quanto o Sistema favorece aqueles que são leais
a ele. Tentaram, e conseguiram, que eu acreditasse ser o melhor Engenheiro de Software
daquela corporação estatal maravilhosa (“Você não sabe quantas nações inteiras
dormiriam à noite com inveja de você se soubessem os detalhes do que você irá
realizar, filho!”). Eles não têm ideia de quantas nações inteiras já dormem à
noite com inveja de mim pelo simples fato de eu não ter uma mutação qualquer,
ou pelo fato de eu ter o que comer várias vezes ao dia, alienados do caralho...
Mas eu entrei no jogo deles. “Eu sou o único qualificado para esse trabalho,
afinal!”.
Eu passaria dois anos fora do planeta, em uma
Proto-Colônia um tanto mais afastada desse ponto da galáxia. Um ano dessa
brincadeira seria gasto apenas nas viagens de ida e volta, e o outro ano
envolveria fazer a atualização, manutenção e operação do software da
Base-Piloto do lugar. As coisas funcionam assim: Uma trupe de robôs
hiperespecializados é enviada para um planeta, faz um reconhecimento inicial do
terreno e constrói uma mini-estação de vigília próxima ao ponto de aterrissagem
da nave. Depois que a estação está pronta, eles entram em contato com a nossa
base, no próprio planeta Terra, e torram o resto de suas baterias no processo.
Quando nós recebemos o sinal, os pobres robôs já estão todos mortos, e a base
está construída, mas com a grande maioria de suas funções totalmente inoperantes.
Essa é a deixa para a minha corporação enviar um filho da puta como eu para um
terreno desconhecido, totalmente sozinho, para mexer em todo o software do
lugar, e deixar a porra da Base-Piloto funcional. É uma boa forma de “minimizar
os riscos” da operação (que é a maneira que os drogados do setor de Comunicação
arranjaram para vender a ideia de que, se der alguma merda, só o Engenheiro de
Software toma no cu).
Eu topei. Na grande maioria das vezes, os
planetas são previamente escolhidos com cautela (para “minimizar os gastos”), e
os próprios robôs enviam relatórios (junto daquela mensagem final que eu
mencionei) com informações sobre a composição da atmosfera, e do que se pode
chamar, muito grosseiramente, de flora e fauna do local. Se for detectada qualquer
ameaça em potencial, a corporação cancela a exploração do planeta em questão,
pelo menos hipoteticamente. Na prática eu sei, e todo mundo sabe, que eles
arriscam demais às vezes, e existem duas histórias famosas de caras que
morreram em missões como essa minha. A verdade (e foi por isso que eu topei vir
para cá), é que esses dois caras azulados e mortos estão diluídos em um verde
oceano respirante de Engenheiros de Software que voltaram para casa, e esse
tipo de serviço rende um pagamento que daria até medo. No fim das contas, as
duas mortes pesam tão pouco na estatística que, mesmo levando em conta os
inconvenientes da solidão e do risco, pode-se considerar uma oportunidade fácil
de enriquecimento. Fora a emoção de ser o primeiro ser humano a colocar os
olhos num planeta desconhecido. A grande operação “Anthroplosion”, de expansão
da espécie humana por diversos planetas habitáveis já contava com um enorme
número de sucessos, e grandes heróis corajosos construíram esse progresso (me
ouvindo falar assim, sinto-me não muito mais esperto do que aqueles robôs que
morreram aqui antes de mim). É tudo, no fim das contas, uma questão de sorte.
...
Porra, cadê o resto? Adoro distopias. Adoro sci-fi. Adoro xingamentos! O que acha que achei do texto? Quero o resto, é rápido!
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