Estou com muito, muito
frio. Já faz duas semanas que estou doente, e o termostato da base não tem
feito nenhuma maravilha. Eu tenho alucinado com coisas, palavras que surgem
brilhando no escuro, grandes estátuas de povos esquecidos, olhando para mim com
aberrantes olhos imperativos de argila. Tenho escutado algumas vozes metálicas
a se locomoverem e gargalharem de mim ao longo da Base-Piloto. É tudo uma
merda. Minha urina queima ao sair de mim, deixando uma dor rancorosa por estar
sendo rejeitada. Mas o pior de tudo é a constante sensação de que existem
coisas nos meus músculos: Eles doem, eles estão todos estafados (especialmente
braços e abdômen), e ainda assim tremem em espasmos engraçados o tempo todo.
Meu corpo está mais vivo do que eu, e isso é uma situação deprimente pra
cacete. Recosto minha cabeça na mesa, desiludido, e começo a pensar, na
tentativa de me distanciar daqui.
Esse planeta é úmido.
Eu senti o frio assim que eu cheguei, mas não imaginei que a sublime mágica da
febre funcionaria tão bem para fazê-lo piorar. Coloquei a culpa da dificuldade
em me locomover no longo período de hibernação dentro da nave (um clichê de
viagens espaciais, que quase chega a me divertir), mas logo me lembrei do que
diziam os relatórios dos robôs-pioneiros: A gravidade daqui é um tanto maior do
que a da Terra. Não mais de três vezes, eu acho, mas isso já faz com que o ato
de viver torne-se muito mais incômodo do que já o é por natureza. O relatório
daquelas máquinas também dizia que existe uma biodiversidade exuberante por
aqui. Quando eu desci da aeronave, o corpo dolorido e as articulações duras, e
os olhos ardendo pelo sono resquicial induzido pelas drogas-de-hibernação que
ainda me corriam pelas veias, tudo o que eu conseguia ver (além da base
cinzenta, e dos esqueletos das máquinas tristes que a construíram) transpirava
uma vida alucinógena e constante... Vegetais arroxeados de várias espécies,
visitados por grandes animais (alguns voavam, e outros eram parecidos com os
grandes pastadores que vemos na Terra. alguns eram translúcidos como peixinhos
de aquário, e até os órgãos deles eram belos). De fato, esse planeta nomádico e
indigente tem uma diversidade incrível de formas de vida para serem extintas
pelo nosso progresso. E a minha função nisso seria a de digitar linhas de
comando: Um verdadeiro profeta de um apocalipse artificial.
A umidade do ar é viscosa, mesmo aqui dentro da
base. Do jeito que andam as coisas com meu abdômen, logo eu não aguentarei
tossir como eu estou tossindo, ou respirar como eu estou respirando. Resta
apenas recontar essa fábula irônica de desespero e tomar remédios que sequer
fazem sentido, fazendo o possível para ignorar os grandes dentes que parecem
brotar do teto e sorrir para mim, os corpos putrefatos de crianças correndo
pela nave (talvez os filhos que nunca tive), e os grandes insetos iridescentes
que ficam caçoando de mim com seus zumbidos amorfos em sânscrito. Deitado em minha
cama desconfortável (como qualquer coisa poderia ser confortável?), observo as
luzes do quarto enquanto elas derretem feito aquarelas psicodélicas frente a
meus olhos de febre, meus olhos-braseiro, que ardem como a Condenação, ou como
o coração perverso do Etna. Penso ver uma adaga se movendo nas sombras (que
também derretem), e a paranoia e a taquicardia me comprimem a garganta e causam
dor. Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus
músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
Desmaio pela terceira vez.
Dessa vez, vejo-me andando por aquela praia
artificial, o sol falso a brilhar no céu de plasma. Minha esposa está ao meu
lado, e ela se deslumbra com a ilusão de que aquele firmamento alcançável é
algo próximo do real. Mal sabe ela que estamos em uma redoma, que flutua em uma
pilha de lixo tóxico e entranhas, e almas nucleares de vítimas de uma série de
holocaustos. No meu sonho, eu sinto meu corpo a tremer na cama, anos-luz de
distância dali, em outro firmamento alcançável, infinitamente distante da
radiação dos trópicos. Eu sinto meu desconforto do futuro, e ele decanta em
minha barriga inocente na forma de um mau-pressentimento. No meu sonho, minha
esposa me abraça, e diz que tudo ficará muito bem. Eu sei que ela não acredita
nisso, sei que é mais fácil para ela acreditar no sol artificial (que
provavelmente fui eu mesmo quem programou, numa ironia anacrônica) que nos
bronzeia de tumores em potencial do que acreditar de verdade na projeção de que
tudo ficará bem. “Nada ficará bem, querida! Olha para mim, no futuro, ardendo
em febre, morrendo aos poucos de uma doença que ninguém nem terá chance de
estudar para que ela ganhe um nome!”. Ela não entende nada do que eu estou
falando. Diz que eu estou alucinando. Um ano e dois meses no futuro, eu estaria
realmente alucinando. Por um momento, acredito na realidade mal-desenhada do
sonho. Acredito que eu tive, naquelas férias, o pressentimento, a visão de que
tudo iria mal nessa viagem. Eu soube, por uma fração de segundo, por algum
artifício da quântica que o tal do Hawking que eu estudei no Ensino Médio não
chegou a ser capaz de entender antes de morrer... Eu soube de tudo o que
aconteceria, mas as ondas de água salinizada artificialmente se misturaram às
ondas de ambição, e a carreira, e a remuneração, e os apenas dois casos entre
vários sucessos, e os olhos da esposa, e as maletas elegantes... E não haveria
nenhum pressentimento que me permitisse fugir dessa viagem, dessa tragédia que
o Determinismo havia de me entregar numa bandeja, junto a uma salada de plantas
roxas, e à carne translúcida de belos animais.
Desmaio pela quarta vez, e agora tudo são panos
negros e retalhos de memórias que sequer são minhas. Vejo através dos olhos de
um colonizador, morrendo pelo veneno de uma serpente tropical. Não existe
medicina nesse lugar, e a mim só resta tremer, e amaldiçoar, e beber aguardente
de péssima qualidade, enquanto espero que as pálpebras de minha alma se fechem.
Vejo através dos olhos de uma donzela na
Inglaterra Vitoriana. Aquela adaga me penetrou quase gostosamente as costelas,
beijou-me por dentro como uma deusa, e agora toda essa luz que me invade os
olhos pertence a mim. Tusso sangue, deixando para trás algumas gotas de minha
humanidade. Sou uma deusa agora, em um palácio de luzes claras.
Vejo através dos olhos quentes de um mendigo. O
silencioso anjo da tuberculose bate suas asas dentro de meus pulmões, fazendo
com que eu tussa para fora de mim pedaços enegrecidos da minha consciência. Ele
me purifica aos poucos. Em breve, ficarei gelado como a noite, eu sei... E as
pessoas olharão para mim e dirão: “Pobre coitado.”, sem nem se perguntarem o
que eu fiz em vida. E o silencioso anjo da tuberculose terá terminado sua
purificação, e estará livre para salvar outro mortal...
E salto de corpo em corpo: doses penetrantes de
morfina para responder ao idioma do câncer; dentes de lobos que cravam-se na
carne e nas vísceras escuras, criando padrões divinatórios sobre a neve; um
vírus que consome as células, subjugando-as como um regime ditatorial, abrindo
as portas para o Reich da Peste, e todas as doenças me consomem; radiação
esverdeada e quente a me cobrir a pele como um lençol: num momento estou aqui,
no outro sou apenas mais uma vítima em um batalhão de friorentos; a fome.
Desmaio pela quinta vez. E pela sexta vez...
Talvez não aguente até a décima.
...
Acredito acordar e, alguns minutos depois,
acordo de verdade. O tempo de reação é lento, por isso não grito ao vê-lo.
Provavelmente é só uma alucinação como outra qualquer. A alucinação não se
dissipa: É uma pessoa. Um homem alto e pálido, gigante. Um Golias vestido e
composto de branco gélido, com olhos que fitam o corredor. Ele está sentado ao
lado da cama desconfortável, o sarcófago que me abraça, respirando através de
uma máscara estranha que lhe dá uma aparência alienígena. Mas eu sei que ele é
um homem, e o mais assustador: Eu sei que ele está aqui.
Ao perceber que eu
comecei a tremer um pouco mais (queria poder dizer que o motivo é frio, mas
mentir não vai me tornar mais corajoso), ele vira seus olhos, também pálidos,
na minha direção, e começa a falar comigo. A voz sai engraçada e pouco crível,
ao passar pelo filtro estéril de sua máscara cinzenta. A história que ele me
conta é um pouco menos crível. O cara diz ser um médico de uma das Colônias
antigas. Aparentemente eles também têm ideias expansionistas agora, e estão
investindo em programas como o da minha estatal. Só que eles são avançados
(éticos) o bastante para terem médicos a bordo de suas expedições iniciais de
reconhecimento, e a equipe (vejam só, uma equipe!) não é obrigada a contar
apenas com as unidades de auto-cirurgia das Bases-Piloto. Eles estavam
instalando um centro de pesquisas em uma das luas daqui, e detectaram atividade
humana na superfície do planeta. Esse cara foi mandado para cá para ver se
estava tudo bem e estabelecer contato. Uma das regiões intactas do meu cérebro
estala, tentando avisar que tem algo errado. Eu queria que eles apagassem essas
luzes, e que essa porra desse barulho fosse embora. A região intacta está
isolada, ilhada no lodo de neurônios ensandecidos pela alta temperatura, e eu
paro de pensar nisso...
O homem pálido é um
médico. Ele veio me ajudar. É tudo o que eu preciso saber no momento. Desmaio
pela sétima vez. Um corpo nu flutua num campo cheio de petúnias feitas de
eletricidade, longe de qualquer atmosfera respirável. Eu demoro três anos,
observando cada detalhe do relevo de seu rosto para perceber que sou eu. Ao
longo desses três anos, eu envelheço, mas o corpo nu continua jovem, continua
morto, congelado. Seus cabelos e suas unhas continuam a crescer por um tempo,
por mais que eu tenha ouvido dizer que isso não acontece de verdade. Tento
abraçar meu próprio corpo congelado. Meus braços tremem e se deformam. Eles
doem, pontadas cada vez mais agudas, a pele dilacerando-se sob uma lâmina
incômoda e fria. O sangue corre espesso, estou desidratado. Demoro um tempo
para entender que acordei, e o corpo nu demora ainda mais, permanecendo a
flutuar do lado de cá da realidade, com sua sombra morta e nevada em meio à
sala de cirurgia. O que a ética médica teria a dizer sobre uma operação
realizada nessas condições, certo?
O homem pálido arranca
de dentro do meu braço uma fibra muscular inteira. Eu gostaria que os
anestésicos durassem para sempre. Daqui a algumas horas, eu sei, esse meu
desejo será mais forte. Ele aplica uma pasta sobre meus músculos (os
restantes), e começa a suturar a abertura.
— Bem-vindo de volta. —
Ele não sabe meu nome. Eu nem me importo com o dele. — Seu caso não é dos mais
graves, mas também não é nada animador.
Sua voz tem algo de
estranho. Ela estridula, provavelmente por conta de sua máscara. Ele é
estranho. Não é só a palidez, a textura de sua pele parece estranha. E seus
olhos são frios, e fazem minha febre oscilar com seu toque à distância. Apesar
disso, consigo ver que ele está preocupado com a minha saúde, talvez movido por
uma compaixão genuína, e não apenas hipocrática. Estou sedado, não consigo
falar grande coisa. Balbucio algo sem muito sentido, enquanto observo,
aterrorizado, ele colocando uma quantidade imensa de fibras musculares (as
minhas fibras musculares) em um jarro de incineração. Minhas pálpebras
cáusticas se arregalam: Meus pedaços de músculo parecem vermes: Elas tremem e
se debatem, em um quase-terror, apenas superável pelo meu terror genuíno. Essa
visão estranha, possivelmente fruto de um cérebro cansado, dopado por febre e
químicos, me leva a abandonar a realidade mais uma vez.
Minha mente anda por um
vale azulado, entre dois rochedos magníficos que irradiam certo calor
confortável. Ao longe, uma cascata de água muito limpa faz-me crer que ficará
tudo bem. Posso confiar no estranho de branco, e posso confiar nessa fuga
psicológica otimista e azulada. Antes que eu consiga sorrir, percebo um detalhe
que me havia escapado: A encosta dos rochedos está coberta por grandes casulos
escuros, de superfície viscosa e coloração metálica. Dentro dos casulos estão
adormecidas pessoas extremamente deformadas. Nunca tive tanta vontade de
acordar.
...
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