Não houve um décimo desmaio. Ao longo dos dias, minha saúde foi
melhorando, e agora eu já consigo andar, apesar de ainda estar sentindo uma dor
escrota em boa parte do meu corpo. Agora que não estou mais debilitado, o
homem-pálido encontra-se mais distante. Eu o agradeci imensamente por ter salvo
a minha vida, disse que ele é um bom homem, quase um anjo, e esse monte de
merdas que eu nunca falaria por ninguém se não me sentisse moralmente
obrigado... E ele mal esboçou reação. Às vezes passo pela porta de seu quarto
(um cômodo espaçoso da Base-Piloto, próximo ao ambulatório onde eu repouso), e
vejo-o fitando uma parede, ou dormindo, ou mesmo sentado como se meditasse.
Deve ser uma prática comum às Colônias, que ainda têm um resquício de
espiritualidade não esmagada pelo ápice laico do desenvolvimento. De qualquer
forma, o médico está desenvolvendo um comportamento estranho, e algo em toda
essa tensão me assusta e contamina.
Ele mal tem falado.
Apenas monitora meu estado de saúde e volta para o quarto, silencioso como um
inseto. Ele tem comido muito pouco também. Sinto que eu deveria estar fazendo
algo por sua saúde, mas o sujeito trata de me tranquilizar sempre que eu
pergunto alguma coisa. Frente a todos esses indícios, fica muito difícil
segurar desconfianças antigas. Elas também estão de volta ao labirinto dos
saudáveis, e também já conseguem andar. As dúvidas estão organizando passeatas
frente aos meus olhos: Existe algo de errado com esse médico.
Hoje cedo eu me lembrei
que tenho de enviar o primeiro relatório para a base terráquea da corporação.
Esses relatórios são uma completa merda, a sorte é que a restrição energética
para envio de mensagens pela cadeia de satélites faz com que eu só tenha de
enviar um relatório por mês. Passei pelo quarto do doutor, e perguntei se ele
queria acompanhar o envio, já que ele se interessava tanto pela operação da
base. Ele olhou para mim de forma apática, e sibilou um “não” desanimado. Se
houve um “obrigado” ao final desse ruído, eu já não sei. Foda-se esse cara
estranho! Eu tenho obrigações a realizar.
Sento-me em frente ao computador, apenas para
constatar que o relatório já havia sido enviado, três dias atrás. Abrindo a
cópia salva, deparo-me com um documento extremamente completo, que deve ter
enchido de orgulho os caras das maletas elegantes. “A Base-Piloto já está
praticamente toda funcional, e o planeta possui ótimas condições.”, diz o
resumo do relatório. Um corpo de texto extremamente bem redigido dá os detalhes
de minha doença, de meu tratamento (com a utilização dos módulos de
auto-cirurgia, um detalhe bem interessante), e ressalta a importância de a
próxima equipe ser completa, com um time de médicos e biólogos para um melhor
estudo da biodiversidade local, e da doença em questão. Sobre esse assunto, o
relatório recomenda a utilização de máscaras especiais, para evitar
contaminações futuras. Eu não me lembro de...
Minha cadeira é bruscamente virada para trás.
Olhando para mim, com olhos mortos e ressequidos, o homem-pálido tomba sobre
meu peito. É quando eu tento me levantar para socorrê-lo que percebo um detalhe
incômodo: Sua máscara fincou-se no meu abdômen, mas eu sequer sinto dor.
Empurro o médico para longe de mim, e a máscara fica cravada na minha barriga.
Caralho! O que está acontecendo? Eu não consigo me levantar! É mais uma
daquelas alucinações? Mas eu não tenho febre há temp...
— Essa é a hora em que você se desaponta, não é
mesmo? — Sua voz está ainda pior agora. Ela adquiriu uma qualidade de
gargarejo, um ruído constante e nojento. O homem-pálido apoia-se numa cadeira e
faz força para levantar-se do chão, despejando seu corpo magro e estranho sobre
a cadeira. Uma vez esparramado pateticamente sobre a cadeira, ele também parece
não conseguir se levantar. — “Você é um homem bom, cara!”... Acho que o seu
anjo se foi, garoto!
A boca dele... Se antes havia uma desconfiança,
agora eu estou cem por cento certo: O homem-pálido pode ser qualquer coisa,
desde que essa coisa seja não-humana. A máscara era um envoltório que fazia
parte do corpo dele, como um bico. A coisa mole e pegajosa que havia por baixo
daquela “concha” não se assemelha nada a uma boca humana. Volto a tentar
arrancar a máscara escura do meu abdômen. Nada! Não tenho essa força, talvez
nunca tenha. Talvez nunca tenha novamente.
— Não arranque meu ovopositor, seu merda! Eu
ainda não terminei com você... Quer dizer, meus meninos ainda nem começaram. —
Ele tosse, e algo escuro goteja e borrifa-se, manchando a face do ar, transcrevendo
a tosse em cores indistinguíveis. — É, eu mandei o relatório por você. Mas não
é porque eu sou “um homem bom” ou posso ser comparado a um anjo guardião,
garoto... Foi por uma pura questão de biologia. Por esse mesmo motivo eu gastei
tanto tempo de vida brincando de picotar e salvar você. De fato, eu vim de uma
das colônias humanas, onde o meu povo fez um certo estrago no seu pessoal.
Vocês são bons hospedeiros. Vocês têm uma carne nutritiva, e vivem em grupos
grandes. Esse negócio de “cidade” ajuda bastante no nosso ciclo de vida, sabia?
O “ovopositor” cai. Três esferinhas escuras
estão depositadas lá dentro, mas os meus braços nem se movem mais para tentar
tirá-las (a dor propriamente dita já me deixou há um bom tempo. ela foi
substituída por um formigamento quase completo, uma clara noção de inexistência
de tudo abaixo do pescoço. tem algum químico pesado nessa máscara natural do
caralho). Tento xingá-lo de “parasita filho de uma puta”, mas apenas parte da
palavra “parasita” chega, de fato, ao salloon sonoro dos insultos.
— Não, não, rapaz... Parasita, não...
Parasitóide! Você sabe o que isso significa?
Lembro-me da palavra, mas o conceito foge-me do
alcance rotineiro da memória.
— Significa que, quando esses ovos eclodirem,
as minhas seis larvas vão te devorar por dentro, lentamente, saboreando a
nuance de cada órgão, de cada tecido, cada líquido, cada célula... Até você
morrer. Parasita era esse fungo escroto! Além de roubar um pouco dos seus
músculos, essas porrinhas resolveram roubar bastante do meu tempo. Um pouco
mais de demora e eu poderia morrer antes de conseguir colocar meus ovos em ti.
Mas... Como tudo ia dar errado de qualquer forma, se eu fizesse meu ninho antes
de curar você, não é verdade? Acho que valeu a pena... É, valeu a pena sim.
Ele tosse um pouco mais, e afunda na cadeira.
Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus
músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
— E agora, eu morro. Bons sonhos, garoto!
Ele pega os livros de programação e deposita
sobre o colo, possivelmente para que suas larvas aprendam alguma coisa depois
de sua primeira refeição. Um pai preocupado com a educação de seus filhos.
Tomara que eles, ao menos, enviem os meus malditos relatórios. Os velhos olhos
da criatura param em um ponto fixo de um nada difuso e distante, e ele morre.
Morre, com sangue (ou o análogo de sangue que mantém vivos os outros de sua
espécie) gotejando pela boca amolecida e levemente dilacerada pela ovoposição.
Morre sangrando pela boca, sentado, olhando para além do que se pode tocar.
Morre como eu mesmo morrerei em alguns dias. Não consigo sentir minhas pernas,
mas sei que elas já começam a doer. Sempre começa pelas pernas: Logo, eu sei, a
febre estará de volta. E, com ela, vêm os adoráveis delírios de sempre.
Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.
FIM