terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Escombros


O que me intriga em relação à humanidade é que somos uma espécie de símios sociais que evoluíram o suficiente sua estrutura de sociedade para que o direito de voltar a agir como outros símios seja ferrenhamente exercido e defendido pelas pessoas. “Olhem para o meu encéfalo desenvolvido. Não, sério! Olhem para ele! Cheio de curvas e giros, e massa cinzenta e massa clara. Uma proeza da seleção natural! Mas acho que eu vou afogá-lo sob um oceano antievolutivo de uísque e energético por hoje, e tentar impressionar o maior número possível de menininhas também bêbadas. O quê? Minha namorada? Quem me garante que ela não está solta por aí, fazendo a mesma coisa? Mulher não presta não, cara! Melhor aproveitar enquanto eu sou jovem!”.
A comunicação rudimentar e pós-rupestre da grande maioria das pessoas da geração que respira o poluído ar dos anos 2010 com pulmões ainda vívidos e não completamente corroídos pelo tabagismo voluntário ou por outros tipos de fumaça ou pela humanidade circundante só não é mais deprimente do que a mensagem que ela tenta expressar. E então somos bombardeados com a superficialidade alheia, temos de filtrar o que presta em meio a cascas malcheirosas de futilidade e desespero. Essa é a sociedade da informação, e essa é a informação infinita e ruidosa que escolhemos ignorar. E então as pessoas escolhem para si carreiras com as quais elas não têm a menor afinidade, baseadas na lei do “Eu tenho de fazer uma Universidade”, completada pelo parágrafo I: “que me dê uma carreira que pague bem”. E então as pessoas escolhem e traem parceiros tão vazios, rotos e socialmente atrofiados quanto eles, pelo medo de ficarem sozinhos, baseados nos critérios mais vagos que conseguem escolher. E então as pessoas compram carros novos e brilhantes para se potencializarem, e dirigem esses carros alcoolizados ou sob influência de outras substâncias, com alto-falantes gritando a música da qual são forçadas a gostar, dirigindo suas carcaças metálicas com motores de dezesseis válvulas pela luminosa auto-estrada da incompletitude. Guiam-se por um céu destituído de estrelas. Os astrolábios estão quebrados, as mentes inebriadas, e não há rumo. E então as pessoas abraçam existências vazias, e falam sobre ela de boca cheia.
Qualquer criatura inteligente forçada a caminhar ao lado de semelhantes como esses deveria ser pelo menos tão infeliz quanto Woody Allen. Esse é o nosso grande trauma, o nosso grande drama: Somos menores do que as opções. Nunca seremos grandes. Envelhecemos sem amadurecer. Somos recheados de uma fauna inquieta de sentimentos com os quais não aprendemos a lidar. Escondemos nossos verdadeiros espectros psicológicos por trás de comprimidos, ou apenas do medo de sermos diferentes de um jeito ruim. Somos crianças insinceras, e a nossa mentira não é nossa culpa: é a doença que se encista no nosso modo de vida. É o parasita a se alimentar dos reais prazeres, a larva albina da padronização. Esquecemo-nos de como é boa a chama destrutiva de nossa essência, quando utilizada em prol da cerâmica das reais ideias. E o mais interessante é que o irracional e estúpido irrompem ainda mais grotescamente numa época onde os feitos mais intrigantemente avançados da nossa espécie despontam.
Pisamos na lua há mais de quarenta anos. Enviamos sondas para Marte, e mapeamos com maior precisão nossa galáxia e nosso Universo a cada dia. Mas os verdadeiros alienígenas dormem ao nosso lado todos os dias. São os funcionários que movem os setores circundantes. São nossos amigos atordoados e tristes. São a nossa família que sequer chegamos a compreender. São os vizinhos e a atmosfera inóspita de seus gramados ou seus apartamentos. A galáxia distante de outras mentes. A incômoda e longa estrada que nos move para além de nossa zona de conforto. A estratosfera da relação interpessoal, onde comunhamos com seres desconhecidos. De que adianta descender das gerações que desvendaram o átomo se não sabemos lidar nem mesmo com a nossa própria ansiedade, com a instabilidade radioativa de nosso humor?
Somos uma tribo que nenhum antropólogo teria um real prazer em estudar que não o da vã estranheza. Somos um bando de gente sem-graça de mentes castradas, que espalham seus genes sujos e vergonhosos por aí, talvez aumentando a chance de que alguma consciência aflore nessa vasta cadeia de sistemas nervosos congelados. Escolhemos contrair doenças (venéreas ou não), pelo estranho prazer da autodestruição, mas sequer sabemos burilar esse suicídio de uma forma poética. Então apenas nos destruímos, talvez pela repulsa crescente da nossa feiúra, que deve surgir mesmo nas mais insapientes criaturas. Homo ignorans... Homo ignorans, Homo ignorans, Homo ignorans... Que a evolução confisque cada um dos que permanecerem como meros espectadores de um pós-apocalipse diário como esse. Homo ignorans. Cada um que se recusar a aceitar a injustiça de ter nascido em uma espécie de seres que deveriam mesmo buscar entender um pouco mais de si mesmos, de seus semelhantes, seus diferentes, do mundo no qual elas nasceram. E não apenas guardá-los na comodidade de um frasco de valium escapista (não entrando aqui o mérito daqueles que realmente necessitam disso), enquanto babamos nossa baba grossa e malcheirosa sobre todas as esferas da vida. Os maias estavam certos, e nós estamos mortos. Apenas mortos.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Música? Nostalgia? "We Drift Like Worried Fire!"

DISCLAIMER: Esse é o primeiro de uma série de posts inspirados nas sugestões de meus amigos do Facebook. Eu cheguei e gritei: "MANADA! Preciso de ideias para posts de blog!", e logo tive torrentes de possibilidades. Vou aproveitar a maioria delas, e tentarei fazer um post por semana a partir das sugestões já dadas. Com isso eu sinto que o blog fica interativo, orgânico, biológico e cheio de pseudópodes para vagar pelas mentes alheias. Atentem para o fato de que o post propriamente dito já começa com uma puta frase de velho. :D


Lembro-me de quando eu tinha mais ou menos uns 17~18 anos e comecei a me desanimar fortemente com a era em que estamos vivendo, no que diz respeito à sua produção musical. Eu olhava para os lados e só o que me esmagava eram gangsta raps, músicas coloridas, sertanejos universitários e (a melhor parte) as bandinhas indie que a Mtv chamava de "A salvação do Rock", e que nada mais eram do que clones ideológicos de Strokes e Arctic Monkeys (bandas das quais eu já não gostava nem um pouco, e pelas quais passei a nutrir um ódio realmente demoníaco). Eu sabia que existiam coisas boas (garimpadas com glória) sendo produzidas, mas acho que estava naquela beirada do precipício entre a adolescência e a idade adulta, e queria me revoltar com alguma coisa pela última vez. Enquanto eu ainda tinha a velha desculpa dos hormônios e toda a mimimice de sempre.

Foi então que eu tomei a genial decisão de ficar ouvindo apenas rock and roll dos anos 60/70, e música clássica, e ficar me fechando cada vez mais para o que vem dos desgraçados, terríveis, pavorosos e doloridos anos 80 para frente. Eu não poderia estar mais equivocado ao tomar essa decisão. E fico feliz de não tê-la mantido por muito tempo.

(quase me tornei um clone do Lou Reed. #SoQueNao)

Tão logo eu me animei para ouvir o In Rainbows, do Radiohead, e os primeiros álbuns do The Mars Volta, e fui tentar explorar a discografia do Primus além do "Rhinoplasty" e do "Antipop" eu descobri o quanto os meus contemporâneos poderiam me trazer boas coisas. Eu não precisava viver me lamentando de nunca poder ir a um show do Genesis com o Peter Gabriel vestido de Raposa e o Phill Collins de boca calada destruindo a bateria como um possuído pelo demônio. Ao invés disso, eu poderia aceitar o fato de que, sim, nós estamos em uma era muito, mas MUITO positiva para os apreciadores de música!

(e obviamente não é por causa deste rapaz)

"Eu vi as melhores mentes da minha geração(...)", e isso significa que eu tive a oportunidade de descobrir que existe gente como BadBadNotGood produzindo um jazz de qualidade que, embora não seja a mesma coisa que ouvir Miles Davis, me enche de orgulho. Principalmente quando leio o disclaimer no álbum deles de que "ninguém com mais de 21 anos esteve envolvido na produção deste álbum". E se eu quero algo que me faça lembrar Miles Davis, eu posso ouvir outro cara mais jovem do que eu, que é o genial Austin Peralta, que destrói o mundo não apenas com seu piano doentio-elétrico-alucinado-virtuoso-risonho, mas com suas composições de altíssima qualidade, que tanto me fazem lembrar uma sucessão ideológica do pai do Fusion. E o melhor de tudo: Se eu quero algo que me faça lembrar Miles Davis, eu POSSO ouvir Miles Davis. E de graça. E de forma legal.


Isso porque temos, hoje em dia, um acesso praticamente ilimitado a música (só não queira tentar baixar a discografia do Screamin' Jay Hawkins. mas dá para conseguir alguns álbuns sem problema, ou comprar a porra toda em mp3). Ano passado fui ao SWU, e lá pude ter acesso aos shows do Primus, Alice in Chains, Sonic Youth e Faith no More. Esse ano, fui ao show do Focus (banda pela qual sou apaixonado desde que eu era uma criancinha que não entendia porra nenhuma de porra nenhuma). Ainda esse ano, pretendo ir ao show do Flogging Molly, do Otto, e de quem mais vier. Algumas bandas boas da "antiguidade" (afinal de contas, AiC é dos anos 1990) ainda estão por aqui. E a obra das que não estão mais por aqui ainda se encontra pelo mundo afora, disponível para influenciar nossas boas mentes. Viver como eu estava vivendo, amaldiçoando os anos 2000 e seu 50 Cent era uma total ignorância. E estou guardando o trunfo maior para o final: Vamos falar sobre Post-Rock, e sobre quatro bandas que só fui conhecer por causa (acreditem) do Facebook?

"Thee Silver Mount Zion Memorial Orchestra". Ainda vou a um show desses caras, mesmo que tenha de viajar pro Canadá para tanto.

Em 2007 mesmo (eu ainda não estava naquela revolta infantilóide toda), um amigo de infância chamado Pablo Higuchi (que o ITA o tenha) mostrou-me uma música. Era de uma banda chamada Godspeed You! Black Emperor, e constava na trilha sonora do filme "O Extermínio", do Danny Boyle. Se não me engano, eu assisti aO Extermínio na casa dele, inclusive. Enfim, o nome da música era East Hastings, e ela era algo meio orquestrado, com blues, com ruído, com cinemática... Realmente parecia um filme. Parecia um filme pós-apocalíptico à parte, encerrado em si mesmo, na música, e, por mais que a canção coubesse bem no clima de O Extermínio, dava para ver que ela era um Universo à parte. Só que, à época, eu não percebi isso (genious).

Cheguei a procurar alguma coisa do Godspeed na época. Soube que eles eram considerados Post-Rock, mas não entendi muito bem o que era o estilo (sinceramente, até hoje não consigo explicar a diferença do Post-Rock para outros tipos de rock progressivo, apesar de conseguir perceber que o gênero tem uma identidade própria forte, apesar de difícil de explicar). Peguei para ouvir um álbum deles chamado "Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven", mas não consegui dar muita atenção à época. Estava em uma fase musical distinta, ouvindo Porcupine Tree adoidado e alguma Nação Zumbi, e algum Kraftwerk. O álbum não desceu mal, mas também não me saltou aos ouvidos. Fui redescobrir o Godspeed dois anos depois, mais ou menos, através de uma outra banda de Post-Rock, God is an Astronaut, apresentada a mim pelo meu queridíssimo Matheus Calvelli. O GIAA me chamou atenção, e me lançou em direção a um mundo de Godspeed, Mogwai, Explosions in the Sky, Sigur Rós e, por fim, a minha preferida, que é o Silver Mt. Zion da foto acima. O post-rock do fim dos anos 1990, início dos 2000 serve uma refeição musical muito decente, que me enche de felicidade por estar vivo, respirando e escutando música nessa era digital. Se eu vivesse nos anos 60/70, poderia ir a um show dos Doors (ou não, porque eles deviam ser carinhos, e nunca vieram ao Brasil), mas jamais teria a oportunidade de correr escutando "There is a Light", que dirá em um mp3 player. Da mesma forma, eu posso escrever alguns contos ouvindo Miles Davis e Jimmy Smith e, ainda assim, utilizar Post-Rock para gerar a atmosfera propícia para trabalhar no meu livro de ficção científica irônica.

Agora, a última história, o último parágrafo, e aí podemos voltar todos para nossas casas. No início desse ano estava Derpin' Around no Facebook e vejo um ad lateral: "Fã de 'Mogwai' e 'Godspeed You! Black Emperor'? Confira aqui o som do 'Labirinto', banda de pós-rock paulista.". Acho que vocês concordam que esse não é um ad ordinário, uma vez que ele não me oferecia nem botox, nem emagrecimento, nem rodízios de gordura tostada. Pus para tocar o som da banda e... BANG! Tomei um tiro direto nas zonas de prazer musical do meu cérebro. Juro que a primeira coisa que eu pensei foi "Essa porra não pode ser de verdade!". E isso foram só as primeiras linhas de guitarra acompanhada pelo cello. Me tornei um fã confesso e dedicado do Labirinto, comprei os dois álbuns, vou comprar a camiseta, e divulgo o som dos caras sempre que tenho oportunidade. (Se você está lendo isso e produz eventos no Rio de Janeiro, ou conhece quem produza, peça para que ALGUÉM promova um show do Labirinto aqui, pelamoràvida!). Depois de curtir o Labirinto, o facebook me trouxe também o Kalouv, uma banda de Recife ainda não-tão-madura quanto o Labirinto (até porque eles começaram há bem menos tempo), mas isso não é, de forma alguma, um problema. O Kalouv produz um som de qualidade muito nice, e que mistura um pós-rock "de várzea" com algumas toadas de jazz e algo até mesmo de praiano, extremamente tropical (não me arrisco a dizer "Surf-Music" porque não tem grandes tons de Dick Dale por aqui não). Anteontem, um ad similar ao que me levou ao Labirinto me chamou atenção: "Fã de Post-Rock, Jazz e Rock Progressivo? Ouça aqui o primeiro álbum do sexteto carioca 'Deus Nuvem'", ou alguma coisa assim. Novamente, quando pus para tocar, tomei um tiro no psicológico. Vale MUITO a pena ouvir o álbum do sexteto carioca "Deus Nuvem". Detalhe que as três bandas para as quais eu postei o link até agora têm seu trabalho totalmente gratuito disponibilizado em seus sites. O mesmo vale para a Mutuca Bacana, que me foi apresentada pelo meu caro Lianto Segreto, amigo de infância do meu irmão! Essa é a que menos ouvi até agora, mas gostei bastante do resultado. Apesar de o nome parecer com essa linha de músicas bacanudinhas de gente bacanudinha, no estilo de Cachorro Grande e Mop-Top, mas está muito mais próximo dos Mutantes do que a mente ousa crer. O que não quer dizer, vejam bem, que a banda não é original! Muito pelo contrário, eles têm um som com bastante identidade.

Então é isso, gente. Fica a reflexão final de que... Não, não irei nunca a um show do Led Zeppelin, e nem você irá! A não ser que arranjemos um DeLorean com um bom capacitor de fluxo. Mas podemos ir a festivais como o SWU 2010 e ouvir o Mars Volta (tecnicamente, para tal, precisaremos do DeLorean também). Podemos ser testemunhas oculares do lançamento de outras bandas, podemos venerar o Deus Nuvem e o Labirinto, podemos ouvir o álbum novo do Godspeed You! Black Emperor que acaba de vazar na internet. Lamentar a "perda" das grandes bandas que vieram no passado distante, embora válido como qualquer lamento, é meio perda de tempo. Nunca iremos a um show do Led Zeppelin, mas podemos assistir "The Song Remains the Same" com o volume no máximo, e dá até para abrir uma cerveja enquanto assiste. É a mesma coisa? Nem fodendo por nada!!! Mas pelo menos temos esse paliativo. A mensagem já foi passada e reforçada. Agora eu vou lá.

(Agradeço a meu amigo Júlio Victor pela ideia do Post. Confiram o projeto musical dele de noise-alternativo fodão e levemente perturbador, o Rabbithole. Fiquem agora com o álbum novo do Godspeed que mencionei acima. Foi o meu presente de aniversário do Caos. Já ouvi pelo menos 7 vezes desde ontem :) )



terça-feira, 18 de setembro de 2012

"Nariz de Palhaço"

Olá, crianças e degenerados sociais e outras classes de fãs da CDU. Na onda de publicação de contos miseráveis que o blog anda tendo ultimamente, trago a vocês um conto um tanto antigo, que foi feito para servir de background para um personagem em um projeto infantilóide de RPG-by-forum para-literário que não foi para frente. Mas eu gostei do personagem, ainda assim. Só não gostei tanto assim do conto, pelo menos não como uma produção literária de peso que me enchesse de orgulho. Ainda assim, lá vai.

Para os fãs de literatura de fantasia / suspense / terror residual. Talvez possa até ter mais valia do que eu dou a ele, mas eu sinceramente duvido um tanto. Divirtam-se!

Nariz de Palhaço

“Eu ainda não sei porque eu estou escrevendo essa porra dessa carta. Deve ser a ansiedade. Como ela vai fazer minhas mãos tremerem mesmo, que essa tremedeira seja aproveitável na forma de caligrafia. Pode não estar das melhores caligrafias, ou das melhores cartas. Mas quando eu pontuá-la, vocês saberão o porquê. 

Pensando bem, acho que eu deveria tentar me acalmar antes de escrever o que pode ser a última carta da minha vida. O destinatário é você, quem quer que você seja. Provavelmente, será o dono do hotel, querendo saber onde está o aluguel. Peço que não jogue isso fora, e entregue para a minha banda. Eles saberão o que fazer. Deixarei o telefone do nosso baterista no verso da carta para que você possa contatá-lo. Mas vamos logo ao assunto principal. Hoje, eu saio para meu primeiro encontro face a face com o Kh’loon. Levando em conta a reputação do cara, foi até muito fácil entrar em contato com ele e marcar esse encontro. Mas acho que estou começando isso pelo lado errado. 

A história da minha crescente obsessão com este serial killer em especial começa com a morte do meu cachorro. O Kh’loon não matou meu cachorro, isso seria ridículo da parte dele. O Tyrant morreu atropelado. Acontece que eu era muito ligado com aquele daschshund, e ele era o maior fã da minha banda. Um cachorro tão inteligente quanto aquele não poderia ter a morte passada em branco. Portanto, fui atrás do pessoal do Detroit News para inserir seu nome no obituário, tudo para receber um tratamento de merda. Tá que eu tinha bebido algumas Heinekens no caminho, mas mesmo um ser humano bêbado mantém seu status como um ser humano. Ele deve ser tratado como tal. Mas eu entendo. O obituário estava cheio de nomes para serem inseridos naquele dia. Nomes diferentes de Tyrant, pertencentes a criaturas diferentes do meu Tyrant. Eram nomes humanos. Vinte e três deles pertenciam a crianças de um orfanato em Wayne County. Vários outros pertenciam aos funcionários presentes no momento do incêndio. Aparentemente, o incêndio que consumiu o orfanato até transformar toda a alvenaria em alguma coisa de valor inferior a carvão vegetal de baixa qualidade não foi completamente acidental. Somando esses trinta e tantos nomes aos que rotineiramente já aparecem em um obituário, eles estavam sofrendo de falta de espaço. Ou seja, ‘no dogs allowed’. 

Voltei para casa morto de frustração, e ensaiei com a banda até que os meu diafragma se reduzisse a uma tripa espástica e incapaz de converter um saxofone numa máquina de música. Depois do ensaio, voltei do estúdio para casa andando. É longe, mas não tanto. Mas ainda assim, é longe, e tornou-se ainda mais longe sem um canino farejando e sugando metade do caminho pelas suas narinas espertas. Não é que eu não tenha ficado puto pelas crianças, é claro que eu fiquei! Mas ainda não tinha tido tempo de pensar nisso direito. Assim que eu liguei a televisão, vi um policial dando entrevista, falando que este crime provavelmente tinha conexão com outros dois. Outros dois... Já é um assassino em série. Quando o retrato falado do suspeito foi exibido, meu interesse no caso redobrou. Parecia um palhaço apavorante de circo. 

Deixe eu explicar algumas coisas sobre mim. Meu nome é Neal Gaiman, o que provavelmente faz de mim a mistura de duas personalidades literárias estranhamente díspares. Talvez venha daí a minha fixação por mistérios, especialmente aqueles realmente bem sangrentos. O policial na tevê falava, através de um áudio chiado que meus ouvidos aprenderam quase que instintivamente a filtrar, que o culpado apresentou-se no orfanato como um palhaço, para fazer alguns truques de sombras com as crianças. A maioria delas ficou perturbada com a aparência do palhaço, e com a natureza de suas histórias. Isso tudo foi relatado por uma sobrevivente que, exceto por uma das pernas, conseguiu escapar do incêndio. A perna ela teve de deixar lá, mas nada foi dito a respeito disso na tevê. Sabendo o que sei hoje, é capaz de o filho da puta ter arrancado a perna dela com seu punhal. Mas isso é apenas minha mente de Sherlock tentando funcionar. 

A tal cozinheira disse que as crianças começaram a se queixar de frio, e realmente começou a esfriar um tanto à medida em que o palhaço ia ficando mais irritado e frustrado com a desaprovação. A mulher lembra-se claramente de ouvi-lo gritando, em meio às chamas “E agora, vocês estão com frio, seus fedelhinhos de merda? Hein? As fadinhas estão com frio agora?”. Aquilo me perturbou profundamente. Mas, como disse, a perturbação e a fascinação tornam-se muito próximas na minha cabeça, e eu logo quis saber mais sobre esse cara. Ler mais, tentar resolver o caso. Como se eu fosse alguma coisa além de um ex-estudante de jornalismo que toca saxofone em bares e puteiros de meia estrela. 

Eu tinha um ponto a meu favor. Não é todo mundo que tem estômago para lidar com esse tipo de caso. Os federais provavelmente iam demorar um tanto a atacar, e isso me dava cem ou duzentos metros de distância. Aproveitei um pouco disso, e comecei a ler matérias a respeito do caso na internet. E é nesse ponto que a tampa do bueiro estoura, puxando-me para baixo, numa espiral de sombras e excremento. Não literalmente, claro. Isso seria grotesco. 

Aos poucos, eu fui procurando artigos em blogs, aprendendo um pouco mais sobre o cara. A aparência era o mais notável, e foi essa aparência singular que me fez achar alguns links um tanto mais obscuros. Foi através de algumas páginas de Deep Web (Invisible Web, para alguns) que eu encontrei algo que, aparentemente, era um dossiê sobre o cara. Eu tinha parceiros de obsessão, ao que parece, e o conhecimento deles sobre o Kh’loon, como o homem era chamado, era muito extenso. Agora que sei um tanto mais sobre a natureza do Kh’loon, acho que chamá-lo de homem seria dar a ele uma denominação errada. Talvez a palavra ‘criatura’, ou mesmo ‘coisa’ descrevesse melhor. ‘Entidade’. Eu gosto de ‘entidade’. É uma palavra de força. 

Nesse ponto, eu já estava consumindo café como um louco, isso para não falar dos cigarros e do whisky. Do mais barato possível. A falta de sol, os hábitos pouco saudáveis e mesmo a obsessão estavam tomando minha mente e meu corpo de tal forma que eu dificilmente voltaria a tocar meu sax como eu fazia antigamente. Meu dinheiro estava acabando, e meus amigos, quando apareciam, ficavam desconfortáveis ao notar meu aspecto, que ainda era muito arrumado levando em conta o pardieiro no qual meu apê tinha se transformado. Eu estava vivendo num lixo. Mas por trás daquelas pálpebras narcoticamente insones, daqueles olhos injetados de cafeína e do vermelho que apenas noites despertas podem trazer, existia uma enciclopédia se formando sobre o Kh’loon. Registros históricos sobre palhaços capazes de certas proezas incomuns são pouquíssimos, pois palhaços sempre foram uma classe um tanto renegada de gente. Mas os poucos destes registros que tratam de um ser com aquela aparência estranha do Kh’loon, com olhos de diamante arroxeado e roupas combinando listras brancas e vermelhas com um tecido de negro intenso, datam das mais estranhas, remotas e espaçadas épocas. Sempre trazendo atrás de si um metálico rastro sanguinolento, o Kh’loon já existiu como assassino em várias eras. 

O encontro de uma campanha de Templários com um árabe em especial, por exemplo, vestido com roupas extravagantes e carregando um tipo diferente de cimitarra fez com que os europeus fossem, um a um, estripados da forma mais desumana e brutal que a maioria deles já tinha visto. Antes ainda disso, um evangelho apócrifo menciona que Judas, ao trair Jesus Cristo, vestia-se com roupas berrantes, com padrões de cores considerados deselegantes para aqueles de sua época. Mas quando foi encontrado morto por seus compatriotas judeus, ele tinha retornado à sua aparência comum. Possivelmente, a loucura que o levou à corda, também tinha a ver com seu contato com o Kh’loon. Este mesmo site especula que mesmo o assassinato de Abel tenha tido alguma relação com a criatura, mas não se baseia em nada. Isso é algo que me chateia hoje em dia. As pessoas saem vomitando teorias descabidas sobre a cabeça umas das outras. A minha sorte é ter um belo chapéu de abas largas chamado bom-senso. É lendo frases como esta que eu penso que não ter seguido carreira como jornalista foi uma boa ideia. 

A origem proposta para o Kh’loon é a de que ele chegou à Terra junto com um meteoro expelido por uma galáxia distante daqui. Após a expulsão deste meteoro, diz o site, também sem nenhuma fonte citada, a frequência e a intensidade das explosões solares, e a velocidade de colisão entre os corpos celestes diminuiu drasticamente dentro da galáxia. É engraçado ver que eles não dizem o nome da tal galáxia porque, segundo o site, ela ainda não foi descrita pela astronomia moderna. Mas essa história toda, por mais inverossímil que parecesse, estava chegando até minhas zonas de cognição e memória como uma inquestionável e dogmática teia de palavras. Fato é que, após a possível chegada do Kh’loon, os homens de neandertal estranhamente sumiram do mapa. O site diz que tanto a criação da figura do palhaço quanto o medo que algumas pessoas sentem (principalmente na infância) ao serem confrontados com estes personagens, podem ser resquícios da memória coletiva de nossa espécie, dizendo-nos ‘Palhaços são interessantes. Mas eles podem ser perigosos também.’. 

Algumas outras personalidades como, provavelmente Jack, o Estripador (tão pop e controverso que eu prefiro nem acreditar), um pirata holandês sanguinário que saía queimando navios, estuprando e mutilando mulheres de cidades portuárias e acumulando tesouros (a possível origem da lenda do holandês voador), um gladiador assassino de cristãos-novos que teria entretido três gerações de imperadores romanos, ao apresentar a eles um teatro de fantoches feitos de vísceras e olhos de suas vítimas... Existiam várias histórias. Poucas delas se confirmavam. Mas era um site escondido de tudo, eu não podia exigir muito. 

Depois de um tempo, acho que um mês e meio, eu comecei a me acalmar um pouco, e deixar essa história de lado. Se tudo o que o site falasse fosse só a teoria de alguém, que não merecia menos a camisa de força do que o assassino de vinte e três crianças, então toda a informação que eu tinha sobre o assassino era um conjunto de boatos escrotos e desconexos que não me levariam a lugar nenhum. Se fosse verdade, o que eu poderia fazer contra uma criatura de origem tão obscura e de calibre tamanho? Eu estava determinado a parar... Entrei em contato novamente com os Muglings (minha antiga banda), e estava ensaiando mais e entrando naquele site cada vez menos. Os assassinatos tinham parado também. Talvez até mesmo o Kh’loon fosse capaz de sentir-se mal pela morte de tantas crianças de uma vez. 

Eis que ontem eu entro novamente no site, apenas por curiosidade, e vejo um post novo, dizendo que o Kh’loon foi avistado entrando em um apartamento, em um endereço que irei omitir daqui para poupar aqueles que possam ler essa carta. Se eu não voltar, é porque o cara, ou o que quer que ele seja, é realmente perigoso (de forma sobrenatural ou não), e eu não quero que ninguém siga meus passos até aqui, e tenha o mesmo fim que eu tive. Caso eu volte, essa carta sequer será lida... Então... Foda-se! O fato é que consegui contatar o morador deste endereço, via telefone. Ele diz ser realmente o Kh’loon, diz estar arrependido do que fez (o que o levou a escrever aquele post no site), e disse estar disposto a parar de matar, mas ele precisará de ajuda. Da minha ajuda. Pediu para que eu aparecesse por lá hoje, por volta de vinte horas. É uma hora daqui lá. Ele pediu para que eu avisasse a polícia, para que eles fossem até o endereço às vinte e quinze. Ele quer conversar um pouco comigo antes de ser colocado brutalmente em uma viatura e conduzido a uma estrada imoral, que desembocaria em três seringas injetando químicos letais nas suas veias incompreendidas. Filho da puta. 

Então é isso. A polícia já está avisada, e vocês que ficaram para trás também estão avisados. Sei que essa carta jamais será lida, mas ainda assim queria escrevê-la, mais como uma forma de matar o tempo do que para informar a alguém. Além do mais, é uma forma de diminuir a ansiedade. Fora que ler toda essa história e ver como tudo é tão ridículo... Tanto a minha obsessão quanto essa história de galáxia, neandertais e Judas Iscariotes... Tudo tão pateticamente ridículo, que eu não tenho motivo algum para ter medo. Meu trem sai em dez minutos. Chego na estação em seis. Então acho melhor ir andando. 



Com algum sentimento positivo, mas não necessariamente amor, 



Neal Gaiman.” 



(MUDANÇA DE CALIGRAFIA) 



Foi muito divertido e edificante isso tudo. Atrair o senhor Gaiman para minha casa foi fácil. Levando em conta a quantidade de acessos vindos deste apartamento de hotel dele àquele site estúpido que algum imbecil criou, foi fácil criar a isca. Sabia que a perícia em computação desse último hospedeiro era boa. Qual era o nome dele? Ah! Dane-se... Falemos do senhor Neal Gaiman. Ele era perfeito: Sem crimes passados, uma vida comum e apagada, um total perdedor. A habilidade em música é interessante, claro. É bom ter algo para me distrair. 

Quando eu disse a ele que eu queria sossegar, eu realmente queria. Não é bom usar o mesmo corpo por muito tempo. Pelo menos não quando você começa a chamar atenção demais, como eu acabei fazendo. Tenho de me controlar mais. Meu hospedeiro anterior, porém, era um incendiário. E um pedófilo. É uma merda quando você pega uma lata de sardinhas que já vem estragada. Tira toda a graça de cuspir dentro dela e esperar apodrecer. Agora, o senhor bonzinho aqui... Vai ser uma beleza quando ele começar a matar. Para os amigos, o fato de ele estar se vestindo como o Kh’loon se vestiria, vai parecer extremamente normal. Afinal de contas, ele tinha ficado viciado em tudo o que dissesse respeito a mim. Um infeliz que arranjou um vício perturbador para se perverter. É até engraçado. Só é uma pena ter que dividir esse corpo com alguma estupidez residual do senhor Gaiman. Tudo bem, já estive em situações piores. Acho que vou gostar de viver uma vida normal. Mas isso até o meu punhal acordar, e a cascata começar a cair de novo. E ela cairá, e cairá, e todo o mundo irá se afogar na essência dele mesmo! Ah, eu mal posso imaginar a cara daqueles peixezinhos de pele flácida ao olharem na cara maquiada daquele que os pescará e sugará os olhos desorientados de seus crânios amarelos e primitivos. 

O cara anterior já deve estar preso agora. Completamente louco. Com o estojo de maquiagem do lado, e uma cópia malfeita das minhas roupas. Eu nunca soube costurar. Nem ele, ao que parece. Mas isso não importa. O que basta é dar à polícia um suspeito, e eles não se importam tanto assim se ele é igual a mim ou apenas parecido o bastante. 

Essa carta foi útil. Resumiu tudo aquilo sobre mim que não tive paciência de ler naquele site mal-projetado. Tem algumas merdas, é claro! Sempre tem. Quando você vira uma lenda, tem que conviver com a diferença entre aquilo que você realmente fez e aquilo que a lenda fez. Porque você vira duas pessoas nesse momento. Ainda bem que eu já estou bem acostumado a ser duas pessoas. Hahaha! Rir no papel não faz muito sentido. Mas ter essas memórias anotadas é algo bom. Quando se viveu tanto quanto eu, as memórias começam realmente a se misturar e se desintegrar numa poça escura da mente. 

Eu lembro muito bem de ter me unido àquela galáxia. Theridor era o nome dela. Ela era linda e pacífica. Mas não muito de paz sobrou nela depois que seus planetas habitados começaram a se chocar. Nunca me diverti tanto. Pareciam pelucinhas gritando, com a diferença de que estes derramavam fluidos e faziam sonzinhos. Eram legais. Lembro-me também de ela arrancar o nariz de seu centro, e de eu viajar pelo Universo até chegar à Terra. Mas eu não me lembro de extinguir uma espécie inteira de hominídeos. Deve ter sido divertido. 

Outro ponto no qual eles erraram foi naquele texto parvamente mal escrito, sobre o navio pirata... De fato aquele notável capitão realizou coisas não muito nobres com sua adorável tripulação, mas ele não foi meu hospedeiro. O navio foi. E, aos poucos, eu fui conseguindo me infiltrar na mente de cada um daqueles marujos. Foram anos notáveis aqueles. Quando eles içavam minhas velas e eu sentia o vento a impulsionar não apenas minha carcaça decrépita, mas meu desejo de saciar a sede da minha garganta e do meu pinto... Na forma de pequenos fantoches, é claro, mas ainda assim. Pena que eu não saiba como fazer isso de novo... Isso de fantasmagoricamente me infiltrar nos atrofiados cérebros primatas, e deixar lá uma semente de meu caos. 

Essa baboseira de Caim é que não faz sentido algum, e esses caras sequer existiram de verdade. E o tal do Judas...? Que porra é essa de Judas? Nessa época eu estava na América Central, sendo reverenciado como um deus, e exigindo corações em tributo a mim. Acho que até os Maias tiveram medo de registrar na escrita que eu comia aqueles corações todos. Eu era muito adolescente na época. Gostava de chocar. Amadureci muito ultimamente. Mas sinto falta daquela sensação... A de ser representado com a forma de um monstro, porque a minha forma real seria medonha demais para que os artesãos a quisessem esculpir. A sensação de ser, numa acepção bem particular e esquizofrênica da palavra, um deus entre os homens. E eu fui um deus, mas fui um deus de ‘ontens’. Agora? Eu esqueci metade dos truques daquela época. Não preciso mais deles, vivemos entre homens fracos agora. Além disso, escolhi um hospedeiro sem muita coisa especial. De propósito. Para ter o prazer de mijar nessa impecavelmente esterilizada lata de sardinha, e sentir cada alteração acre no aroma dessa carne que, de outra forma, seria o alimento perfeito para uma sociedade de homens fracos. Mas sobre ser um deus, não é mais tempo disso agora... Agora eu sou só um palhaço desorientado, tentando encontrar novamente o ato que tenho de representar nesse circo patético que chamam de realidade. Eu lembro que eu tinha uma função... Mas qual seria ela mesmo?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Monóxido (precedido por uma introdução explicativa e semi-útil)

Anteontem a frase me veio à cabeça, enquanto eu andava pela Universidade: "O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies". Me pareceu algo beatnik, que poderia mesmo abrir um conto e, quem sabe, esse conto poderia até mesmo ficar bom! Ontem de manhã, para não perder a frase, comecei a escrevê-la enquanto tomava café. A frase me tomou ali, canalizando a possessão demoníaca frasal através do teclado do notebook. Ela se expandiu, virou um período extenso e cheio de orações, que deu as mãos a mais alguns parágrafos, mas eu estava atrasado, e tive de deixar aquela tribo de frases esperar pela minha volta.

Ontem à noite, terminei o conto, e me orgulhei dele ao reler (e alterar uma porrada de coisas), mas estava tarde demais para publicá-lo aqui. Afinal de contas, meu maior meio de divulgação é o Facebook, e pouca gente estava online naquela joça às 00:23. Portanto, lá vai o conto que começou num dia, terminou no outro, e foi postado em um terceiro ainda. Espero que gostem (E QUE ME DIGAM SE GOSTARAM OU NÃO!). Lá vai ele:

Monóxido


O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, fumando seus cigarros como se eles fossem feitos de oxigênio, perspirando violentamente a benzedrina, a codeína, a cafeína, a cocaína e quase todos os membros dessa família de sufixos. A simples chegada dele (em um trem, alguns diriam, ou talvez tivesse sido um ônibus, ou a quantidade de estimulantes em suas veias o permitiu vir correndo dois estados até esse lugar, quem sabe?) causou um estardalhaço em todas as camadas da cidade, especialmente nas camadas invisíveis, espectrais, imateriais, místicas e psicológicas. Todos se abalaram. Todos sabiam que algo estranho e especial e (de forma relativa) sagrado estava acontecendo por ali, escondendo-se por trás de cabelos desgrenhados, fios desiguais, desajustados e subversivos de barba mal-feita e uma camiseta dos Mutantes que ele não tirava nem para tomar dura da polícia. 

O garoto chegou à cidade falando de bandas de que ninguém nunca tinha ouvido falar, e de como o jazz mudou sua vida, em uma noite acelerada e tempestuosa, sobre como ele encarou os trovões de frente, rindo como um maníaco desesperado, e sobre como os trovões fugiram de sua muralha de trompetes e saxofones gritados a todo o potencial do diafragma. Falou de blogs de literatura subversiva na deep web, falou sobre o tráfico e o escambo de drogas, armas, artigos raros e anjos. Falou sobre os portais, e como eles cismam em se esconder por trás de molduras de cotidiano sem-graça, falou sobre as gigantescas, arquitetônicas, intrincadas e sombrias cidades que existem no interior das mentes dos homens. Ele falou muitas coisas. 

O garoto chegou à cidade, procurando pelo fogo que queima por trás de cada prédio, a chama refletida em cada janela e na porta de cada elevador, a pira de urbanismo que faltava em sua própria cidade. E todos os ratos de beco, todos os renegados e os invisíveis arderam em esperança quando ele subiu em um palanque e começou a contar-lhes sobre os mundos além do nosso, e as almas alienígenas e abstratas que pairam nas sombras e parecem Jim Morrison (elas sempre parecem Jim Morrison). E quando ele teorizou sobre as estradas que partem para a morte certa, e sobre estados inteiros escondidos entre as árvores, nos quais o sol queima forte o tempo todo e a fome e a sede são apenas memórias esquecidas. E quando ele desenhou os mapas entre os postes para guiar aqueles com a real fé, com a real loucura e o real compromisso na direção das cidades imaginárias (ainda maiores do que aquela) onde as lâmpadas elétricas estavam sempre piscando, convulsivas, vivas, enraivecidas, desejosas. Onde as pessoas não tinham compromissos que as desviassem de seus reais propósitos enquanto pessoas. E todos os mendigos o ouviam, sem entender, quando ele falava sobre as ondas sonoras, e as ondas radiativas, e as ondas do caos e do píer e das sombras, e sobre tantas outras ondas e cordas e supercordas que todo o raciocínio era inviabilizado em mantras iluminados. Ouviam quando ele teorizava sobre drogas intangíveis, sobre como havia laboratórios além do alcance da vista, escondidos em cada esquina, sintetizando o mais puro destilado de emoções, barrando-as em tabletes, em pílulas, escondendo-as em agulhas vulgares: a mais real felicidade dentro de uma seringa azulada. Euforia-de-mascar. Responsabilidade ou realização enroladas em papel de fumo. 

Ele falou sobre tudo, e quando as palavras pararam de existir ele continuou domando-as, reaproveitando-as em discursos sustentáveis, animadores, reciclados, desconexos. Falava de como Chico Science era uma força elétrica da natureza (que retornou para a natureza), de como os Secos & Molhados eram o mais claro exemplo de possessão de seres humanos por espíritos de arte, e sobre como Tom Waits observava todas essas coisas, entre mistérios naturais e seres de outras realidades. Tom Waits, na face os olhos detidos apenas por aqueles que sabem realmente o quanto o mundo é um lugar estranho e de leis maleáveis. Chegou à cidade com tudo isso a borbulhar nos giros de seu cérebro, a entupir suas veias e escaldar seus lábios. E fez residência nomádica entre os latões de lixo, e perto dos trilhos dos trens, e escondido em meio a tábuas. E desvendou as paredes pichadas com as escrituras das religiões que nascem todos os dias nas mentes dos desajustados. E enfrentou, física e metaforicamente, as várias bestas cheias de olhos que espreitam os solitários em busca de mais olhos. 

O garoto chegou ao coração da cidade, com as mãos trêmulas de um santo bêbado, marcando suas passadas como cicatrizes de vida no asfalto e nas calçadas, chegou desafiando e destronando as autoridades e questionando as formas de governo. E explodindo o conceito e a arquitetura dos edifícios com sua mente tão poderosa quanto fora de seu controle, raios eclodindo como larvas de seus dedos desvairados. E experimentando todos os ambientes que permitissem sua entrada. E forçando sua entrada (por meios escusos, místicos, silenciosos e secretos) em todos os que não a permitiam, apenas para experimentá-los também. Fazendo sexo com as mulheres, os homens, as formas de vida microscópica, as emoções, as mentes, as paisagens, com o coração da cidade, pois para ele o sexo era apenas uma explosão extracorpórea como qualquer outra. E se declarou messias, se declarou demônio, traidor, profeta, fiel, templo e latrina, na intenção de se declarar mentiroso logo após e gargalhar disso, com a intensidade de um tornado gargalhante, e sábio, e mentiroso. Ele conversou na língua dos cães, desafiou os corações e os desejos dos gatos. Uivou ao olhar para as guitarras que soam no espectro escondido da cidade, ao encarar a real face desse lugar. Uivou como se estivesse em batalha, uivou como antes uivou Ginsberg, e uivou toda a sua alcateia de amigos escritores. E se atirou, rosnando, em direção ao Sheol, à Gehenna e ao Tártaro que são a pinacoteca residente no espírito real da cidade, sabendo que a chama que veio buscar estaria ao seu lado em um momento como aqueles. E se reergueu vitorioso em meio a um pôr-do-sol especial, encharcado em suor e luz, as mãos trêmulas finalmente pacíficas e descansadas (ou talvez estafadas demais para tremular), sabendo ter vencido e possuído e ejaculado seu maior e mais urbano desafio terrorista e revolucionário. 

Passou noites e mais noites acordado, engolindo tudo o que poderia ser bebido, junto a outros loucos visionários (que também chegaram à cidade em meio às suas músicas particulares) em recitais sem-fim, indecentes pelo conteúdo e pela forma. Grandes saraus ao ar-livre sob viadutos ancestrais cravados com runas, saraus indigestos, cheios de obscenidades e profanação, que se faziam lindas aos ouvidos daqueles capazes de despertar. Piro-mania, piro-fagia, piro-óptica. Tudo dentro dos olhos espelhados do garoto, aquele que chegou à cidade atrás de tudo isso. Aquele que chegou à cidade e juntou legiões. Aquele que absorveu e se misturou a todos os que conheceu, um grande aglomerado canceroso de essências humanas, uma hidra de infinitas cabeças de dimensões incompreensíveis, a espreitar e ameaçar o núcleo da cidade. Aquele que acordou em meio a locais estranhos e extraterrenos em meio a tardes belas e sussurrantes, a tempo de almoçar largas refeições do Oculto. O garoto estava entre os seus, versando, hipnótico, seus salmos de subversão, empolgado, nadando em glossolalia e sonoridade. 

E apenas os aflitos olhos dos indigentes viram quando seu corpo desapareceu, substituído por luzes de cores inéditas. São estes olhos as únicas e escolhidas testemunhas de seu fim, quando seus tênis e seus cabelos e sua carne de garoto se desfizeram numa mesma malha de inexistência e morte. Ascendendo para sempre, destruído pelo que veio buscar, consumido pela pira que não conseguiu encontrar em sua terra natal. O jovem xamã, aprisionado para sempre na gaiola mágica que construiu para si. Morto. Morto pela quieta revolução que foi sua filha. Morto pela cidade que tanto buscou. Morto pela conquista. Por si mesmo. Pela canção que o embalou até esse momento. Pelas drogas que moveram seus passos. Absorvido pelas camadas invisíveis e pelas almas abstratas que pareciam Jim Morrison. Canibalizado pelos ideais que tanto pregou. Arrancado de si mesmo, como a camiseta dos Mutantes que a polícia puxou, exibindo a nudez de suas entranhas simples de garoto, a pele tatuada, obscurecida por hábitos insones e orifícios de saída. Gangrenada por completo por sua natureza de morto-vivo. E, por fim, explodindo em uma única luz incandescente, esvaindo-se em energia, abstraindo seu empirismo, assumindo sua real forma: Uma ideia nuclear, uma reação em cadeia fosforescente, uma energia capaz de ferir. 

O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, na forma de um conceito abstrato que se fixou permanentemente, como monóxido de carbono numa hemácia corrompida. E, na forma de fumaça luminosa, por lá o garoto ficou. E nunca mais deixou a cidade, convertido na chama que buscara.






P.S.: A ideia inicial do Tom Waits como um místico / exorcista / conhecedor da parte oculta da realidade é crédito de Caio Fittipaldi Kenup, e ele deve ter seu nome exposto aqui!

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte III, seguida da Parte III e um pedido final desesperado

É hoje a data da conclusão do conto que é tão hipster que nem os hipsters estão lendo. E a culpa disso é de você, leitor, que vem até aqui, lê o conto e não passa adiante. Seja parte você também dessa história: Compartilhe o link para os seus amigos. Uma campanha da Unidade Central de Desapontamento. Governo Federal.
Não! Governo Federal, não! Não quero greve no meu blog por conta de má-administração! Bem, vamos logo à Parte III. A menos, é claro, que você ainda não tenha conferido nem a Parte I e nem a Parte II. Boa leitura!

Febre - Parte III



Crônica,

Eu sei que você me conhece há apenas algumas horas, ou talvez nem isso... E se você aprendeu alguma coisa com o escritor, que é meu amigo e que foi mencionado acima, não é de esperar nada de mim, ou da minha vida, ou mesmo da sua vida de crônica. Mas, ainda assim, acho que você vai ficar tão impressionada quanto eu com o que acaba de me acontecer próximo à cafeteira. Se o café da Dona Jurema estava melhor? Não sei, mas imagino que não. Acontece que eu mal senti o sabor do café, porque todos os meus sentidos biológicos, e até mesmo alguns sentidos especulativos estavam voltados para uma nova companheira de trabalho, que fica no Setor 2 do escritório, e que estava lá tomando café também. Ela parece ser mais ou menos uns dois anos mais nova do que eu apenas, mas não conversei com ela o bastante para descobrir isso a fundo. Quando eu cheguei para pegar o café, porém, lá estava ela, comendo uma broinha de milho para acompanhar seu copo de açúcar-negro.
Para começo de conversa, ela olhou para mim. Não como as pessoas olham normalmente umas para as outras. Especialmente, não como as pessoas olham normalmente para mim. Não lembro de mulheres olhando na minha direção como ela fez, dentro dos meus olhos que ardiam em “Febre do Cubículo”, no meu rosto mal-barbeado (e cheio de falhas na barba), no meu cabelo meio grande, meio rebelde, meio “eu ainda não descobri que tenho vinte e oito anos”. Tá certo que a contrabaixista de jazz olhou para mim quando eu a conheci, com seus olhos melodiosos, mas ela estava encarando meu terno alugado. Eu não estou de terno hoje, eu nunca estou. E aquela menina olhou para mim, mas essa não é nem de longe a melhor parte. A melhor parte veio na mágica evolutiva que ela causou, um totem da seleção natural, ao encher os seus pulmões com um ar sem-graça e completamente silencioso e colori-lo, convertendo-o como uma máquina perfeita nas seguintes palavras:
— Cara, você precisa mesmo de um café, hein?
Eu demorei a entender que era comigo. Mas, por sorte, essa demora aconteceu apenas na minha mente, Crônica. Eu não fiquei de fato olhando para ela estupefato como um macaco de escritório. Mas quando percebi que era comigo, eu retruquei:
— Ah, é. Preciso mesmo... — Respondi. — Pena que esse não seja dos melhores.
Devo confessar que parte do meu tom de voz na última frase continha a vontade de que a Dona Jurema ouvisse, começando a incubar a síndrome que realizaria meu sonho-acordado num futuro próximo. Mas eu não precisaria de três ex-mulheres, e muito menos de qualquer amante. Eu teria os cinco filhos de uma vez com apenas uma mulher: A menina à minha frente. Ela se vestia com um estilo um pouco hippie-urbana, um pouco urbana-urbana, parecia vir de algum bairro nobre da cidade, mas sem nenhum tom de esnobismo. Parecia culta, parecia simpática, parecia um segundo sonho-acordado.
— Se você conhecesse o café do Jornal no qual eu era estagiária, você escreveria uma matéria de capa sobre esse daqui.
— Pois é, eu ia comentar que ainda não te conheço... Você seria...?
“Larissa” é o nome dela. “Larissa Puerto”. Sobrenome espanhol. Eu gosto de sobrenomes espanhóis, sei que combinariam com o meu.
— Eu fico com as Artes agora. — Disse ela, me abrindo oportunidade para finta.
— Uau, você fica com as artes? Que honra ter alguém assim no jornal!
— Hahaha, seu bobo! Eu sou responsável pela seção de artes, tá satisfeito agora?
— Muito. Bem, eu sou escritor, trabalho aqui como cronista.
— Escritor, ou cronista?
— Eu trabalho aqui como cronista... Mas estou escrevendo uma ficção também. — Foi aí que o nervosismo começou a se dependurar em mim. A cicatriz das inúmeras gravatas que já vesti foi se apertando, e as palavras maiores foram ficando retidas. As frases e ideias iam represando-se entre as mãos do nervosismo, permitindo que apenas as palavras menores passassem. Tinha de ir embora enquanto ainda não estava parecendo um idiota. — Vou entrar de licença amanhã, devo trabalhar um pouco nela.
— Licença? Tá tudo bem?
— Tudo, tudo... Sabe como é, um pouco de estresse.
— “Febre do Cubículo”?
— É, foi o que o psicólogo falou! Hehe...
— Dizem que é um pouco preocupante mesmo. Se cuida, hein? Tenta trabalhar nesse seu livro e, talvez um dia, eu fique com o lançamento dele.
— Você diz... Escrever...
— É, seu besta... Cobrir seu lançamento.
— Me cobrir, hehe... Seria legal! Vou tentar fazer um bom trabalho, então. Um trabalho à altura.

E me despedi. Agora eu só tenho de finalizar você, minha crônica-confessionário. Fechar você e trabalhar em uma irmã mais nova, em uma irmã menor, possível de se espremer em uma coluna tão apertada quanto a minha. Depois voltar para casa para ficar melhor, para cuidar da minha saúde, e do meu livro. Acho que dessa vez eu consigo avançar com aqueles capítulos problemáticos, e tornar alguns diálogos um tanto mais espontâneos. Tudo o que eu preciso é trabalhar um pouco no livro, e me afastar desse escritório por uns dias. E aí continuar a conversar com a senhorita Puerto, trazê-la cada vez mais perto do meu mundo, apresentar a ela os meus hobbies, os meus defeitos, o meu amigo escritor...
Não! Talvez ele não. Não por hora, o cara é muito mulherengo, e muito cheio dessa autoconfiança niilista de “não acreditar em nada”. Deixa eu curtir a menina um pouco só para mim. Tenho certeza que eu e ela passaremos boas noites, discutindo literatura e pinturas, e ela vai gostar de ouvir a minha opinião sobre a arte-de-rua. E falaremos de livros de mistério e de Douglas Adams durante o banho. E ela provavelmente tem a mesma paixão que eu pela culinária, e adorará que cozinhemos juntos, ao som de Miles Davis...


Bem, pessoal, foi esse o Conto que eu escrevi no Domingo. Gostou do conto? Gostou do personagem (que não é inspirado em mim, o personagem inspirado em mim é amigo desse)? Deixem a sua opinião ali embaixo, para que eu me sinta amado ou odiado.

Aliás, por favor, se der para compartilhar essa joça com as pessoas à sua volta que gostam de ler, eu agradeço imensamente. Convençam-nas a ler, quem sabe elas gostam? É uma boa forma de divulgação da minha escrita e, por mais que o estilo do "Febre" tenha pouquíssimo a ver com meu estilo regular, divulgação é sempre positiva. Pode me ajudar a publicar coisas algum dia!

Muito obrigado,

Bruno.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte II, e a Parte II propriamente dita

Essa é a segunda e penúltima parte do conto "Febre". Se você for grande fã dos filmes do Christopher Nolan ou outros tipos de narrativa não-linear, acho que não ficará tão chateado assim em ler a Segunda Parte antes da Primeira. Mas eu aviso que esse conto não foi escrito pelo Jonathan Nolan e, portanto, foi pensado de forma linear. Caso você queira respeitar a ordem que o autor deu às coisas, clique aqui para ler a Parte I.

Bem... Para vocês que já leram o início, terminamos quando o nosso protagonista estava relatando os comportamentos que deveria evitar para que se recuperasse da sua "Febre do Cubículo", o que diabos seja isso! Aliás, para vocês que já leram o início, eu não preciso ficar contextualizando porra nenhuma nada, porque imagino que vocês tenham uma boa memória. Portanto, pulemos logo à Parte II:

Febre - Parte II



Ah! Chega disso! Todas essas coisas, todos esses pequenos vícios retroalimentam minha insatisfação, e essa é a raiz do meu problema. Não é o Rui, da seção de esportes, e sua conversinha de fim de semana sobre igrejas e sanduíches defumados raros, e viagens com a família. Nem a Vanessa, da seção de economia, e suas fórmulas mágicas para enriquecer, aplicando seu dinheiro nas empresas certas. Não é a dona Jurema (Jussara? Jurema?) que sempre faz o cafezinho adoçado e antidiabético demais. Claro que eles têm a parcela deles de culpa. Mas não é por conta deles que eu não consigo me concentrar. Não é por conta deles que eu não estou conseguindo escrever essa porra dessa crônica de despedida. A culpa disso é minha. Eu sofro de stress pós-traumático, e o trauma em questão é a vida. A culpa disso é minha, e por mais que seja tentador culpar a minha insistente falta de sorte (lembro-me da fala de um filme: “Toda vez que eu tenho algum tipo de sorte, é má-sorte”), a minha visão das coisas não me ajuda muito a me animar. Eu tenho um amigo escritor que tem uma visão muito agradável do mundo:
“O mundo é uma total porcaria!”, ele diz, “Com o caos espreitando em todos os cantos, te oferecendo o bom e o ruim, te excitando e te deprimindo, te fazendo sangrar e orgasmar. Não dá para esperar nada do mundo, não dá para esperar deus do mundo, não dá para esperar alegria ou tristeza do mundo. A gente pulsa nessa poça de probabilidades imprevisíveis, nós mesmos sendo um monte de impossibilidadezinhas respirantes. Só que a gente usa gravatas e reclama do ar-condicionado. Nenhuma vida foi prevista para acontecer nesse cosmo, e a pouca que acontece nos planetas por aí acaba sendo retribuída com um monte de ironia. Você vê, cara? Isso é que é um mundo maravilhoso! Quando você pára de cobrar que ele te faça feliz, você descobre o que é, de verdade, ser feliz. É aí que reside toda a magia, e é por isso que eu amo esse mundo!”
Eu penso de uma forma razoavelmente parecida. Mas enquanto aquele escritor-cervejeiro-maluco pensa que o caos faz o mundo ser algo maravilhoso, eu me deprimo ainda mais. E acabo, mesmo que inconscientemente, esperando algo que o mundo não tem a obrigação de me dar. Criando expectativas para acompanhar as situações tímidas, os acasos fortuitos, as pessoas randomicamente dispostas no dia-a-dia. Acho que todos traçamos alguns padrões sobre como os outros deveriam agir, não? Ou seria eu um tipo estranho de gente, aquele tipo de gente fadada a uma existência infeliz, porque impõe ao mundo a responsabilidade de felicitá-lo? Meu amigo sabe que não se deve esperar nada dos outros, ou do acaso. Ele não espera, e é feliz. Eu, por outro lado, dotado dessa mesma certeza, escolho acortinar minhas esperanças com a estupidez obstinada de quem aposta em um cavalo sem pernas. Talvez seja essa a diferença entre o cronista e o escritor. O psicólogo do convênio do Jornal diria que existe uma grande diferença. Diria que eu não estou tendo “bloqueio de escritor”, eu estou tendo uma “dificuldade de cronista” que é, claro, um dos desdobramentos da minha “febre do cubículo”. É o que me fez perder mais de uma hora hoje cedo, lendo notícias online e pressionando F5 na minha página de e-mails à espera de uma salvação ou uma epifania. E é o que me fez ter a ideia de digitar esse bando de baboseiras para, pelo menos, parecer que estou trabalhando em alguma coisa. “O próprio conceito de cronista”, diria ele, “é primitivamente diferente do conceito de escritor. A sociedade não os encara da mesma forma, pois eles servem a musas completamente distintas. E, logo, a sua mente não os encara da mesma forma. E é por isso que a raiz empírica do seu problema está em outro ponto. Não podemos encarar isso como um simples ‘bloqueio de escritor’. Esse foi o erro de três gerações da psicologia, e cometer esse erro novamente seria negar mais de cinquenta anos de evolução. Creio, porém, que eu não vá ter, sozinho, a base para chegar ao motivo do seu problema. Mas é claro que ele tem a ver com o seu episodiozinho de ‘febre do cubículo’, não é mesmo, campeão? Hehe! Mas conte-me um pouco: Com o que você sonhou hoje?”.
Eu não me lembro dos meus sonhos há semanas. Mas nesse momento, de frente para o meu computador, os olhos tão objetivamente abertos quanto é possível, eu sonho. Sonho que me levanto e saio de meu cubículo, o meu tão amaldiçoado cubículo, tendo em vista os conceitos mais modernos da ciência do estudo da alma. Sonho que passo pelos mini-setores onde as pessoas discutem o comportamento dos filhos umas das outras, e as melhores raças de cachorro, e o que fazer com a happy hour de sexta-feira e o que comprar para bajular os superiores em seus respectivos aniversários. Sonho que alcanço uma cafeteira, que é diferente da cafeteira rotineira, pois está afastada de mim pela distância infinita entre a realidade e o hipotético. É diferente da cafeteira rotineira porque foi outra pessoa que a preencheu de café ou, melhor ainda, porque a Dona Jurema-Jussara-Jurema acaba de ter um acesso de um distúrbio psicológico que nada tem a ver com a “febre do cubículo” (apesar de também envolver uma série de mazelas única e completamente relacionadas a problemas que acontecem em um escritório). Sua ainda indigente síndrome a levou a preparar o café com alguns quilos a menos de açúcar refinado, numa tentativa falha de demonstrar o ódio que ela vinha alimentando há tantos meses. E então a própria doença mostra-se como a cura de si mesma, pois a Dona Jurema começaria a se sentir muito amada no serviço, tão logo os elogios fossem feitos ao café, e o Jonas da contabilidade comentasse que tomou apenas um quarto da sua dose regular de insulina. No meu sonho, todos ficam felizes. O meu café, adoçado a um nível apenas próximo da letalidade, me inspira a escrever não apenas uma crônica, mas três. E ele continua fazendo efeito ao longo de semanas, e eu termino a minha ficção científica, e começo um romance épico sobre índios, e uma alegoria filosófica sobre uma padaria na Florença do século XVIII. E então, graças ao café do sonho, eu ganho o Pulitzer, e morro feliz, por saber que apenas o veículo de minhas palavras morria, mas não os textos em si. E em meu funeral, meu corpo morto e destituído de sentidos seria testemunha dos olhares tristes e saudosos de pelo menos três ex-mulheres, e pelo menos três ex-amantes, e pelo menos cinco filhos. No meu sonho, eu venço a vida. No meu sonho, o caos torna-se meu amigo graças a um enigma envolvendo autoconfiança e cafeína. No meu sonho é o meu amigo escritor que comenta sobre a minha visão de mundo.
Na minha realidade, porém, eu sei que vou me levantar, deixar esse cubículo, andar minha finita caminhada até a cafeteira, durante a qual terei de ouvir as conversas sobre futebol e piqueniques e pet-shops, para ser recompensado apenas com o mesmo café-homicídio-culposo de sempre. E nada mais. Volto a você em breve, minha crônica-morta-viva que não será publicada jamais.

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(Literalmente, pausa para o café. Literalmente, ela demorará até amanhã para vocês que estão lendo no Blog :D Não percam a emocionante e controversa conclusão amanhã, nesse mesmo blog -- Se alguém não hackear meu computador.)

P.S.: Quem de vocês conseguiu pegar o "cameo" de mim mesmo nesse conto?


(a Parte III, contendo a emocionante conclusão na qual os aliens invadem a Terra e possuem as mentes de todo mundo no Jornal já está disponível aqui. Confira!)

domingo, 2 de setembro de 2012

Febre - Introdução e Parte I

Oi, gente! Hoje eu tirei o dia para escrever um conto que me brotou na cabeça. Ele ficou grande demais para um Blog, portanto devo postá-lo em três ou quatro partes e aí vocês vão lendo com calma. Espero mesmo ver comentários ali embaixo, uma vez que contos são muito mais importantes para mim do que posts num blog, OK? E, claro, espero que gostem dessa joça.

:)


Febre - Parte I


            “Febre do Cubículo”. A chamada “Febre” ou “Síndrome do Cubículo” nada mais é do que um desses tipos modernizados dos clássicos problemas de histeria e stress. Eu estou estressado, não estou com “Febre do Cubículo”. Por mais que o psicólogo tenha tentado explicar a origem do termo, a razão pela qual meu problema se difere de qualquer outro tipo de desgaste psicológico não consegue entrar na minha cabeça. É claro que eu estou cansado do meu escritório e do meu estilo de vida. Quem não estaria, afinal? Mas daí a inventar uma nova síndrome para aqueles que, como eu, sentem vontade de enfiar os minigrampeadores de mesa pela traqueia daqueles a sua volta e apertar o botão ejetor até que todos os grampos tenham se acabado... Isso não faz nenhum sentido.
            Acho que é uma tendência da psicologia moderna... Como os estudos avançam mais rápido do que a capacidade das pessoas para inventarem doenças realmente novas para si, eles acabam tendo de setorizar e burocratizar as síndromes já existentes, tratá-las como entidades separadas, estudá-las a fundo e até a exaustão. Acabam tendo de explicar porque jornalistas e corretores de impostos e programadores sofrem da “Febre do Cubículo”, enquanto motoristas de ônibus sofrem da “Síndrome do Volante”, geneticistas sofrem da “Síndrome do Laboratório Apertado” e neurocirurgiões sofrem da “Febre da Sala de Lobotomia Transorbital”. Será que essas síndromes compartimentalizadas também sofrem da febre do cubículo? No fundo, acho que somos todos um bando de desesperados, tentando rotular o desespero uns dos outros.
            A questão é que eu estou aqui, na minha saletinha de meio metro cúbico no escritório do Jornal e, apesar da mente extremamente dialética ao analisar a “Síndrome do Caralho a Quatro”, não consegui digitar uma palavra sequer da minha crônica. Logo essa crônica. Logo uma crônica de despedida antes da licença médica, durante a qual eu devo tentar relaxar de verdade, e não apenas recair em algum dos vícios de sempre, como uma tentativa autolimitada de aliviar o estresse: Não devo ficar jogando pôquer online e perdendo, bit por bit, meu salário de cronista (que não é nem freelancer e nem um funcionário de verdade). Não devo ficar assistindo vídeos de pornografia, mostrando mulheres que eu nunca teria a capacidade de agradar beijando outras mulheres que eu nunca teria capacidade de agradar, a navegação anônima do meu browser ligada (por uma paranoia injustificada, uma vez que eu moro sozinho e pouco me importaria a opinião a meu respeito formada por um ladrão de computadores em potencial). Não devo tentar mexer na minha obra de ficção científica, que nasceu como uma tentativa dupla de sucesso (Conseguir um Pulitzer; Conseguir usar a arte como terapia), e duplamente frustrada pelo fato de que eu daria um péssimo Arthur C. Clarke (o que aumentou ainda mais a minha necessidade de terapia). E o campeão de todos os vícios para se evitar ao longo de uma licença médica devido à “febre do cubículo”: Não devo ficar lembrando-me de todos os meus relacionamentos passados ou hipotéticos, o primeiro tipo compreendendo aqueles consumados com mulheres que nunca teriam a capacidade de me agradar, e o segundo com mulheres que, na maioria das vezes, sequer existiam. Ou pelo menos, sequer existiam da forma como eu as idealizava.
Era o caso daquela bela escritora que conheci numa vernissage de abertura para uma exposição peculiarmente ruim. Eu achei que uma senhorita com aquele sorriso, que entendesse tanto de vinhos chilenos e literatura inglesa seria uma companheira requintada, com um olho clínico perfeito para uma boa oportunidade de relacionamento, que saberia temperar com muita calma um namoro intenso, vívido, cheio de cores e viagens. Que saberia se entregar e se conter na medida certa, jogando um jogo cooperativo, e não uma competição. Ela acabou sendo uma dominatrix com práticas sexuais absurdas e brinquedinhos assustadores, que odiava o fato de não conseguir se relacionar com outra coisa que não as criaturas odiáveis que são os homens, que ela realmente detestava. Ou então aquela contrabaixista de jazz linda, pequenininha e tímida que escondia, por trás daquele imenso corpanzil acústico de madeira e cordas, o fato de que ela tinha uma das mais potentes e doces vozes que o mundo da música esperava para conhecer. Ouvindo seu discurso dialético e bem-construído a respeito de como o mundo merecia ouvir mais krautrock e menos música eletrônica cheia de batidas, e sobre como os pais dela a levaram à Louisianna uma vez, quando ela era uma criança, e retornou ao Brasil cheia de sonhos e LP’s da Nina Simone... Ouvindo a canção quieta que seus olhos tocavam sobre o meu terno alugado (odeio ternos)... Eu me apaixonei ali, na convenção mesmo, e imaginei diversas noites nas quais nós, mamilos a conversar com o ar da noite, escutaríamos Sinatra e assistiríamos filmes antigos e misteriosos antes de dormir, doses de conhaque e sorvetes de amêndoas. O que eu não imaginei é que ela tomaria doses e mais doses de conhaque, e me trairia com o saxofonista quarentão pai de família antes mesmo do nosso primeiro encontro. Ou então...




(confira a continuação aqui! Ou seja um apressadinho e vá logo para a parte final do conto aqui, descontextualizando todo o final :D)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Alguma coisa existencial que nunca vai mudar sua vida, mas você pode pensar que vai, mas acredite, não vai...

Esse post veio à minha cabeça há um mês e meio, mais ou menos, mas acabei não escrevendo-o por preguiça diversos motivos pessoais. O texto veio quando eu estava correndo por Porto Real (que é a pocilga, vilarejo ou qualquer buraco de goiaba cidade para onde meus pais se mudaram). À ocasião eu ouvia "A Silver Mt. Zion", mas hoje o texto voltou a pipocar por aqui enquanto eu ouvia Led Zeppelin, então resolvi que, se o texto gosta de Led Zeppelin E Silver Mt. Zion, ele deve mesmo ser escrito.

Só para finalizar o build-up do texto, eu preciso colocar aqui um disclaimer. Aliás, um disclaimer em negrito. Por algum motivo, esse texto contém spoiler sobre o final de todos os meus livros alguma pieguice conceitual, uma vibe residual meio fim de vida, um #PauloCoelhoFeeling. Peço desculpas, mas vocês estão avisados! Em negrito! O texto começa ali embaixo, para os corajosos, ou as tiazinhas solteironas que choram à toa:

Hoje eu estava correndo esportivamente pela cidade, como sempre costumo fazer, música explodindo alta nos ouvidos que logo perderão a sanidade (pelo menos tanto quanto o cérebro por trás deles), e logo um impulso quase infantil apareceu para puxar a barra da minha bermuda. Aquela criança chata pra caralho curiosa dentro de mim olhou para fora através das minhas pupilas e viu que o horizonte em torno da cidade estava quase escondido por uma muralha de morros verdes. Muito verdes. A questão é que eu sempre, desde quando consigo me lembrar, quis escalar morros não-habitados, deitar-me sobre eles e ficar sentindo a brisa no rosto, pensando na vida de olhos fechados, preferencialmente ouvindo "A Pillow of Winds" do Pink Floyd. Só que na época eu não sabia o nome da música.

Detalhes à parte, eu sempre represei a vontade de ir até os morros e me deitar até que formigas devorassem cada migalha dolorida do meu corpo animal e nutritivo enjoasse e quisesse voltar para casa, em parte porque minhas pernas eram curtas demais, e depois porque meus pais não se juntariam a mim, e nem me deixariam ir até lá sozinho. Mas agora eu estava munido de tudo o que precisava (menos Pink Floyd no mp3, mas eu poderia arranjar uma boa substituta), e resolvi explorar a possibilidade das ruas, sempre com o objetivo dos prados em mente. E foi aí que as coisas ficaram nebulosas. (não isso não vai se tornar um conto de terror, escolhi a palavra nebulosas apenas para dar um ar dramático)

(O seguinte trocadilho não foi proposital. Percebi o tal trocadilho ao final do texto e inseri essa nota aqui. Não vou alterá-lo, porém, porque isso seria censurar minha escrita automática. Obrigado) O primeiro problema que me separava do sonho dos morros não era, nem de longe, a distância. O principal problema era o fato de que em algum momento da estruturação da nossa espécie em sociedades, as pessoas resolveram que seria uma boa ideia comprar terras e delimitá-las com cercas. Não estou reclamando disso, é uma forma bem organizada de se fazer as coisas, por mais que seja um bom tanto desigual, mas esse não é um texto político. O problema que interessa a esse texto é que boa parte dos acessos aos morros que eu tanto queria alcançar estava delimitada por cercas individualistas, que separavam o que é o mundo do que é a propriedade do "Senhor X". Eu teria de achar alguma outra estrada, ou invadir a propriedade alheia, o que eu não faria por uma questão de ética pessoal e medo de tomar um tiro de espingarda na cabeça.

As coisas tomaram uma dimensão ainda mais interessante quando eu olhei um tanto além do arame farpado das cercas, e descobri que elas separavam o mundo de um grupo imenso de bestas. Grandes bestas gordas e monstruosas e cheias de chifres, que pastavam calmamente e aguardavam. Apenas aguardavam que alguém resolvesse cruzar a barreira entre o mundo e a propriedade, apenas aguardavam a coragem, para perseguir o corajoso com bufantes e espumosas bocas, mugindo seus mugidos de touro. Grandes bestas (que também eram propriedade, de certa forma, do "Senhor X"), contidas em um grande pasto, e impedidas de entrar no nosso mundo por um pacto de sangue, pentagramas e evocamentos uma cerca vulgar, mas que também me impediriam de dar um tropeção na minha ética pessoal e invadir a propriedade alheia. Até porque eu só queria chegar aos morros, mas não faria a minha jornada alimentado pela pressa de estar sendo caçado por um boi furioso. Eu simplesmente não faria isso. Portanto teria de procurar estradas.

Depois de correr (e alternar com caminhada, porque sou fraco) por um tempo, vi que a busca por estradas que me levassem até os malditos elevados verdes não estava sendo muito boa. Havia poucas estradas na direção certa, e as poucas que havia levavam na direção de mais cercas e mais feras churrascáveis e, claro, a mais decepção. Portanto, tive de correr, e buscar, e desistir de alguns caminhos que não levariam a nada (ou que pareciam o lugar perfeito para ser atacado pelo Slender Man por algum assaltante). E então fui elaborando esse texto, enquanto continuava a jornada, e pensando no quanto isso parece a constante luta humana para chegar aos objetivos de vida.

Não os objetivos simples como "hoje eu vou comer sushi", mas os objetivos de polpa, aqueles grandiosos que definirão mais ou menos o centro da sua vida. "Eu vou namorar aquela garota, e fazer as coisas darem certo". "Eu terei uma família foda". "Eu terei uma carreira satisfatória". "Eu serei um escritor de peso e reconhecido, e não ficarei restrito a escrever em um blog fantasma que quase ninguém lê (muito obrigado se você lê)". Estes são os morros, os nossos morros. Todos esses objetivos estão longe de nós, com diversas cercas e bestas nos impedindo. Nesse plano pessoal (fazendo livre-associação do mundo desperto como se eu estivesse sonhando) creio que as cercas são nossas. Elas são erguidas por nós mesmos, por camadas subconscientes ou semiconscientes de nós, aquelas que desacreditam, ou que, literalmente, querem ver a gente se fodendo. É sério: Você quer se foder, mesmo que não seja 100% do tempo, e mesmo que você não saiba disso. Mas nós vacilamos, nós temos o medo, o arame farpado do medo entrelaçado nas estacas de madeira da sensação de incapacidade e do desejo pungente de "deixar as coisas como estão". As estacas de madeira, por sua vez, estão na periferia daquilo que Freud chamou de "Death Drive", ou "Punção de Morte", que é a parte de nós que quer nos sabotar, que quer nos impedir. Que quer nos estrangular. É o desejo de autodestruição que nos faz sentir realizados por atitudes negativas, potencializados por comportamentos pouco saudáveis. É o que nos faz querer explodir o mundo, começando pela explosão de nós mesmos. Ou só explodir a nós mesmos, deixando o mundo quietinho na dele. E é o que ergue as cercas que separam a parte consciente de nós dos nossos morros em questão.

As bestas eu já associo como sendo os fatores externos. Elas são o que alimenta a inabilidade de saltar as cercas. São o inferno dos outros que o Sartre falava, no contexto original de que algumas pessoas podem ser a melhor forma de inferno. E elas podem. Mas os bois, as tão referidas "bestas" desse texto, bestas negras de pelos escuros e almiscarados com um cheiro terrível (mas não bois-almiscarados), não são necessariamente as outras pessoas. Nem tudo é culpa dos outros, bem como nem tudo é culpa nossa, e não podemos excluir os dedos do caos, que quando resolve ser babaca, deposita todos os seus esforços nesse objetivo. Desde despertadores que não tocam, empresas que nunca abrem vagas, concursos públicos que nunca acontecem, editoras que não respondem e-mails, encontros desastrosos que às vezes nada tem a ver com a vontade das duas pessoas de estarem ali... Toda essa amálgama de bestas nos encara, mascando calmamente seu capim metafórico, crescendo, nos ameaçando mais e mais, mesmo que de forma silenciosa, nos encarando, nos desafiando a sermos corajosos e quebrarmos a cara inúmeras vezes, tudo para alimentar ainda mais as bestas daqueles que nos rodeiam, que temerão ainda mais depois de ver o que elas são capazes de fazer para nos impedir de nossos sonhos.

E a conclusão final é essa: Não existem morros de verdade sem a escassez de estradas, e sem cercas e bestas para ladeá-las. Não existem morros de verdade que sejam fáceis de alcançar, e a recompensa verde, plácida e cheia de brisa refrescante desses morros sempre estará bem próxima do inalcançável. Não temos a capacidade de alcançar essa recompensa em qualquer lugar, precisamos dos morros. Mas precisamos de coragem, e tempo e às vezes de transpor cercas e fugir de bestas, se quisermos alcançar os morros de verdade. Precisamos de uma perseverança que não é nossa quando nascemos. Precisamos encontrá-la primeiro, precisamos de autoconhecimento para saber ignorar as cercas, e para saber que é possível acalmar ou ludibriar cada besta à sua forma. E precisamos, por fim, ter em mente a solidez da possibilidade que é a de alcançar os morros. Por mais trabalho que nos dê, e por mais que seja exigido de nós, existe em algum lugar, na maioria das vezes, uma estrada fácil, ainda que perdida e de difícil acesso, que levará aos morros sem a necessidade de enfrentar ou amansar as bestas. Existem músicas tranquilas ou porretes para todas as feras. E existem machados ou escadas para todas as cercas. Até para as elétricas, eu acho.

Tenho apenas duas notas a fazer:

1 - Aos curiosos, eu não consegui chegar a nenhum morro, no plano físico dessa história toda de corrida. Ao invés disso, eu corri em direção a uma mina de água que tem nessa joça de cidade. Lavei o rosto com água quase gelada, reidratei um pouco a garganta e corri de volta para casa. Hoje foi a mesma coisa. No plano das ideias, não consegui alcançar nenhum morro metafórico ainda, mas estou trabalhando fortemente na exclusão das minhas cercas.

2 - No percurso até a mina, encontrei uma estação de geração de bioenergia e parei um pouco, impressionado e um tanto diminuído (as duas palavras foram uma tentativa de traduzir e sintetizar o conceito de "overwhelmed", e essa tentativa deu bem errado) por aquele quase vasto parque industrial. Fiquei ali, encarando aquela maravilha tecnológica por um tempo, até meu fôlego normalizar um pouco, e foi um substituto momentâneo muito interessante para um morro. Acho que é esse tipo de momento idiossincrático (até porque, convenhamos: Porra, eu tava impressionado com um parque industrial pequenininho no meio de  Porto Real) que nos acalma um pouco, nos ajuda a nos focar no seguinte fato: Se você se organizar, pegar uns mapas, montar uma trilha e seguir, fica um tanto mais fácil chegar a um planaltinho qualquer. Precisamos de organização, e muitas vezes, mesmo assim, não chegaremos a lugar nenhum que preste, porque alguém resolveu criar gado no meio do seu caminho! Mas, mesmo que alguns morros e montanhas sejam inatingíveis, uma vida com tantos parques industriais não deve ser assim tão ruim, e uma vida não-tão-ruim merece ser vivida, e vivendo essa vida não-tão-ruim, quem sabe a gente não encontra aquela tal estrada que dá certo?

Enfim, chega desse texto, ele está imenso, e cheio das clichezadas. Mas pelo menos foi divertido escrevê-lo!

Até o próximo desapontamento!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Beer and Love, dude!


Hoje eu trabalhei por onze horas. Aliás, você sabe que seu post está começando bem quando o primeiro verbo inserido é “trabalhar”, especialmente se ele vem seguido de qualquer referência, mesmo que vaga, ao intervalo de tempo de 11 HORAS. Por que essa informação é necessária? Simples: Depois de trabalhar por tanto tempo, resolvi que merecia uma Heineken bem gelada, dei meus R$ 3,50 para a chinesinha do trailer no fundão, e vim para casa feliz tomando a minha Heineken. No ônibus, após secar a breja, fiquei olhando para os títulos da Heineken no rótulo, com uma pitada de orgulho alheio, e comecei a imaginar o quanto as pessoas à volta deviam estar me achando um puta alcoólatra, pois parecia que eu estava apaixonado pela cerveja. E, de certa forma, eu estava, Não pela cerveja em si, mas por todos os méritos que ela já conquistou, mas essa introdução já está se desviando muito do propósito do post... Junte a ideia do quanto as pessoas deveriam estar me julgando a uma mente extremamente propensa a epifanias (criativas ou não), e você tem toda a ideia desse post me ocorrendo de uma vez. E aqui ele começa:

Cerveja é igual a amor. Ponto. Por uma série de aspectos possíveis, essa máxima é extremamente verdadeira, e deve ser encarada com a maior seriedade daqui por diante. Por exemplo, cerveja pode, se ingerida em quantidade suficiente, mexer um tanto com a sua cabeça. O amor também. Cerveja traz um equilíbrio delicado entre o amargo e o adocicado, e para continuar tomando cerveja você tem que aprender a apreciar (e não apenas aceitar) ambas as partes, e o amor também. Às vezes você gosta tanto de uma cerveja, que não a trocaria por nenhuma outra marca de cerveja, ou, para os mais extremistas e carentes, por coisa alguma, e exatamente a mesma coisa pode se dizer do amor. Eu seria capaz, e acredito que muitos apreciadores de cerveja iriam pelo mesmo caminho, de passar um dia inteiro com cerveja, e estaria muito satisfeito, obrigado. A mesma coisa se diz a respeito do amor. Ambas as coisas dependendo do dia, é claro! Cerveja é um item muito bom para se levar ao cinema, e a estreia de Prometheus pode confirmar isso muito bem por mim. Da mesma forma, é sempre um bom programa levar seu amor ao cinema (e interprete isso como quiser, inclusive como amor PELO cinema). Uma verdadeira cerveja nunca te abandonará, a não ser que você esqueça onde botou o copo. Fica a dica em relação ao amor também, e acho que essa é a frase mais piegas que já escrevi. Às vezes, ao final de um dia cansativo, uma cerveja pode te servir de recompensa e abrigo. So does love. A cerveja e o amor são capazes de te munir da coragem para quase qualquer coisa, seja essa “qualquer coisa” uma discussão dialética, uma situação difícil envolvendo vizinhos, um cara estranho olhando para a sua namorada, a dificuldade de ser sincero com alguém, ou uma batalha épica contra gigantes do gelo. Você escolhe! Mas nem sempre a coragem vinda do amor, ou da cerveja, deve ser levada adiante. Beber cerveja e dirigir não é uma boa ideia. Em certas ocasiões, isso é válido também para o amor, vocês entendem?  Cerveja pode ser um estilo de vida, pode te fazer despertar novas facetas de você, pode te mover a escrever poesia, e o amor também. E, é claro, cerveja demais pode deixar tonto, piorar bastante a sua silhueta, te deixar barrigudo e, talvez, até indesejável. Mas experimente estar em um relacionamento amoroso para ver o quanto a nossa máxima permanece verdadeira? Cerveja demais pode te fazer falar coisas das quais você provavelmente se arrependerá, e serão motivo de embaraço na frente de seus amigos, mas nada tão grave quanto estar apaixonado, e você sabe disso! Nem sempre é bom misturar duas cervejas diferentes, e eu tenho pena de você se você está apaixonado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Por fim, cerveja demais pode te deixar com ressaca, mas nada como a ressaca moral de quando você cai do status de “amor demais” para “acabou o amor”. Com todos esses sofismas babacas ditos, reafirmo a máxima: Cerveja é igual a amor. Eu diria que há apenas uma diferença, mas acabo de me lembrar que, embora eu não saiba muito bem qual a composição do amor, eu sei que cerveja (salvo algumas exceções mais elaboradas) são compostas de água, malte, cereais não-maltados (às vezes), e levedura. Além disso, você pode amar antes de ter 18 anos, além de alcoolismo ser algo muito mais triste do que ser viciado em amar demais. Mas, tirando esses mínimos detalhes, podemos dizer que a PRINCIPAL diferença entre as duas coisas é a seguinte: Sem exceção, todos os tipos imagináveis de cerveja têm, necessariamente um fim. Ele fica ao fundo da garrafa e, se você beber rápido demais, sua cerveja acabará logo. É triste, crianças, mas é verdade: Todo tipo de cerveja acaba um dia. Mas nem todo tipo de amor.

Isso pode ser encarado, na realidade, por duas óticas:

1 – Se bem cultivado, e ocorrer entre duas pessoas dispostas e minimamente compatíveis, o amor é melhor do que cerveja, uma vez que pode te embebedar para sempre, e você não necessariamente agirá igual a um idiota por isso. Love rocks!

2 – Enquanto o amor pode se arrastar para sempre e se tornar extremamente monótono e afogante, se você estiver enjoado da sua cerveja, você provavelmente irá parar ao final da sua saideira. Beer rocks!

Foi esse o post. Pareceu melhor quando eu escrevi na minha cabeça, no ônibus do que agora quando ele está, de fato, sendo escrito. Mas provavelmente é só a Heineken indo embora do sistema. =D