quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Monóxido (precedido por uma introdução explicativa e semi-útil)

Anteontem a frase me veio à cabeça, enquanto eu andava pela Universidade: "O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies". Me pareceu algo beatnik, que poderia mesmo abrir um conto e, quem sabe, esse conto poderia até mesmo ficar bom! Ontem de manhã, para não perder a frase, comecei a escrevê-la enquanto tomava café. A frase me tomou ali, canalizando a possessão demoníaca frasal através do teclado do notebook. Ela se expandiu, virou um período extenso e cheio de orações, que deu as mãos a mais alguns parágrafos, mas eu estava atrasado, e tive de deixar aquela tribo de frases esperar pela minha volta.

Ontem à noite, terminei o conto, e me orgulhei dele ao reler (e alterar uma porrada de coisas), mas estava tarde demais para publicá-lo aqui. Afinal de contas, meu maior meio de divulgação é o Facebook, e pouca gente estava online naquela joça às 00:23. Portanto, lá vai o conto que começou num dia, terminou no outro, e foi postado em um terceiro ainda. Espero que gostem (E QUE ME DIGAM SE GOSTARAM OU NÃO!). Lá vai ele:

Monóxido


O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, fumando seus cigarros como se eles fossem feitos de oxigênio, perspirando violentamente a benzedrina, a codeína, a cafeína, a cocaína e quase todos os membros dessa família de sufixos. A simples chegada dele (em um trem, alguns diriam, ou talvez tivesse sido um ônibus, ou a quantidade de estimulantes em suas veias o permitiu vir correndo dois estados até esse lugar, quem sabe?) causou um estardalhaço em todas as camadas da cidade, especialmente nas camadas invisíveis, espectrais, imateriais, místicas e psicológicas. Todos se abalaram. Todos sabiam que algo estranho e especial e (de forma relativa) sagrado estava acontecendo por ali, escondendo-se por trás de cabelos desgrenhados, fios desiguais, desajustados e subversivos de barba mal-feita e uma camiseta dos Mutantes que ele não tirava nem para tomar dura da polícia. 

O garoto chegou à cidade falando de bandas de que ninguém nunca tinha ouvido falar, e de como o jazz mudou sua vida, em uma noite acelerada e tempestuosa, sobre como ele encarou os trovões de frente, rindo como um maníaco desesperado, e sobre como os trovões fugiram de sua muralha de trompetes e saxofones gritados a todo o potencial do diafragma. Falou de blogs de literatura subversiva na deep web, falou sobre o tráfico e o escambo de drogas, armas, artigos raros e anjos. Falou sobre os portais, e como eles cismam em se esconder por trás de molduras de cotidiano sem-graça, falou sobre as gigantescas, arquitetônicas, intrincadas e sombrias cidades que existem no interior das mentes dos homens. Ele falou muitas coisas. 

O garoto chegou à cidade, procurando pelo fogo que queima por trás de cada prédio, a chama refletida em cada janela e na porta de cada elevador, a pira de urbanismo que faltava em sua própria cidade. E todos os ratos de beco, todos os renegados e os invisíveis arderam em esperança quando ele subiu em um palanque e começou a contar-lhes sobre os mundos além do nosso, e as almas alienígenas e abstratas que pairam nas sombras e parecem Jim Morrison (elas sempre parecem Jim Morrison). E quando ele teorizou sobre as estradas que partem para a morte certa, e sobre estados inteiros escondidos entre as árvores, nos quais o sol queima forte o tempo todo e a fome e a sede são apenas memórias esquecidas. E quando ele desenhou os mapas entre os postes para guiar aqueles com a real fé, com a real loucura e o real compromisso na direção das cidades imaginárias (ainda maiores do que aquela) onde as lâmpadas elétricas estavam sempre piscando, convulsivas, vivas, enraivecidas, desejosas. Onde as pessoas não tinham compromissos que as desviassem de seus reais propósitos enquanto pessoas. E todos os mendigos o ouviam, sem entender, quando ele falava sobre as ondas sonoras, e as ondas radiativas, e as ondas do caos e do píer e das sombras, e sobre tantas outras ondas e cordas e supercordas que todo o raciocínio era inviabilizado em mantras iluminados. Ouviam quando ele teorizava sobre drogas intangíveis, sobre como havia laboratórios além do alcance da vista, escondidos em cada esquina, sintetizando o mais puro destilado de emoções, barrando-as em tabletes, em pílulas, escondendo-as em agulhas vulgares: a mais real felicidade dentro de uma seringa azulada. Euforia-de-mascar. Responsabilidade ou realização enroladas em papel de fumo. 

Ele falou sobre tudo, e quando as palavras pararam de existir ele continuou domando-as, reaproveitando-as em discursos sustentáveis, animadores, reciclados, desconexos. Falava de como Chico Science era uma força elétrica da natureza (que retornou para a natureza), de como os Secos & Molhados eram o mais claro exemplo de possessão de seres humanos por espíritos de arte, e sobre como Tom Waits observava todas essas coisas, entre mistérios naturais e seres de outras realidades. Tom Waits, na face os olhos detidos apenas por aqueles que sabem realmente o quanto o mundo é um lugar estranho e de leis maleáveis. Chegou à cidade com tudo isso a borbulhar nos giros de seu cérebro, a entupir suas veias e escaldar seus lábios. E fez residência nomádica entre os latões de lixo, e perto dos trilhos dos trens, e escondido em meio a tábuas. E desvendou as paredes pichadas com as escrituras das religiões que nascem todos os dias nas mentes dos desajustados. E enfrentou, física e metaforicamente, as várias bestas cheias de olhos que espreitam os solitários em busca de mais olhos. 

O garoto chegou ao coração da cidade, com as mãos trêmulas de um santo bêbado, marcando suas passadas como cicatrizes de vida no asfalto e nas calçadas, chegou desafiando e destronando as autoridades e questionando as formas de governo. E explodindo o conceito e a arquitetura dos edifícios com sua mente tão poderosa quanto fora de seu controle, raios eclodindo como larvas de seus dedos desvairados. E experimentando todos os ambientes que permitissem sua entrada. E forçando sua entrada (por meios escusos, místicos, silenciosos e secretos) em todos os que não a permitiam, apenas para experimentá-los também. Fazendo sexo com as mulheres, os homens, as formas de vida microscópica, as emoções, as mentes, as paisagens, com o coração da cidade, pois para ele o sexo era apenas uma explosão extracorpórea como qualquer outra. E se declarou messias, se declarou demônio, traidor, profeta, fiel, templo e latrina, na intenção de se declarar mentiroso logo após e gargalhar disso, com a intensidade de um tornado gargalhante, e sábio, e mentiroso. Ele conversou na língua dos cães, desafiou os corações e os desejos dos gatos. Uivou ao olhar para as guitarras que soam no espectro escondido da cidade, ao encarar a real face desse lugar. Uivou como se estivesse em batalha, uivou como antes uivou Ginsberg, e uivou toda a sua alcateia de amigos escritores. E se atirou, rosnando, em direção ao Sheol, à Gehenna e ao Tártaro que são a pinacoteca residente no espírito real da cidade, sabendo que a chama que veio buscar estaria ao seu lado em um momento como aqueles. E se reergueu vitorioso em meio a um pôr-do-sol especial, encharcado em suor e luz, as mãos trêmulas finalmente pacíficas e descansadas (ou talvez estafadas demais para tremular), sabendo ter vencido e possuído e ejaculado seu maior e mais urbano desafio terrorista e revolucionário. 

Passou noites e mais noites acordado, engolindo tudo o que poderia ser bebido, junto a outros loucos visionários (que também chegaram à cidade em meio às suas músicas particulares) em recitais sem-fim, indecentes pelo conteúdo e pela forma. Grandes saraus ao ar-livre sob viadutos ancestrais cravados com runas, saraus indigestos, cheios de obscenidades e profanação, que se faziam lindas aos ouvidos daqueles capazes de despertar. Piro-mania, piro-fagia, piro-óptica. Tudo dentro dos olhos espelhados do garoto, aquele que chegou à cidade atrás de tudo isso. Aquele que chegou à cidade e juntou legiões. Aquele que absorveu e se misturou a todos os que conheceu, um grande aglomerado canceroso de essências humanas, uma hidra de infinitas cabeças de dimensões incompreensíveis, a espreitar e ameaçar o núcleo da cidade. Aquele que acordou em meio a locais estranhos e extraterrenos em meio a tardes belas e sussurrantes, a tempo de almoçar largas refeições do Oculto. O garoto estava entre os seus, versando, hipnótico, seus salmos de subversão, empolgado, nadando em glossolalia e sonoridade. 

E apenas os aflitos olhos dos indigentes viram quando seu corpo desapareceu, substituído por luzes de cores inéditas. São estes olhos as únicas e escolhidas testemunhas de seu fim, quando seus tênis e seus cabelos e sua carne de garoto se desfizeram numa mesma malha de inexistência e morte. Ascendendo para sempre, destruído pelo que veio buscar, consumido pela pira que não conseguiu encontrar em sua terra natal. O jovem xamã, aprisionado para sempre na gaiola mágica que construiu para si. Morto. Morto pela quieta revolução que foi sua filha. Morto pela cidade que tanto buscou. Morto pela conquista. Por si mesmo. Pela canção que o embalou até esse momento. Pelas drogas que moveram seus passos. Absorvido pelas camadas invisíveis e pelas almas abstratas que pareciam Jim Morrison. Canibalizado pelos ideais que tanto pregou. Arrancado de si mesmo, como a camiseta dos Mutantes que a polícia puxou, exibindo a nudez de suas entranhas simples de garoto, a pele tatuada, obscurecida por hábitos insones e orifícios de saída. Gangrenada por completo por sua natureza de morto-vivo. E, por fim, explodindo em uma única luz incandescente, esvaindo-se em energia, abstraindo seu empirismo, assumindo sua real forma: Uma ideia nuclear, uma reação em cadeia fosforescente, uma energia capaz de ferir. 

O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, na forma de um conceito abstrato que se fixou permanentemente, como monóxido de carbono numa hemácia corrompida. E, na forma de fumaça luminosa, por lá o garoto ficou. E nunca mais deixou a cidade, convertido na chama que buscara.






P.S.: A ideia inicial do Tom Waits como um místico / exorcista / conhecedor da parte oculta da realidade é crédito de Caio Fittipaldi Kenup, e ele deve ter seu nome exposto aqui!

2 comentários:

  1. Gostei muito, Bruno. E você realmente precisa ler o Bukowski, só vai ser mais uma influência positiva para esse seu jeito espontâneo e envolvente de escrever.

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  2. Gostei muito! (Comentando pra vc não se sentir não-lido, vc já sabe que eu curti.)

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