quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Monóxido (precedido por uma introdução explicativa e semi-útil)

Anteontem a frase me veio à cabeça, enquanto eu andava pela Universidade: "O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies". Me pareceu algo beatnik, que poderia mesmo abrir um conto e, quem sabe, esse conto poderia até mesmo ficar bom! Ontem de manhã, para não perder a frase, comecei a escrevê-la enquanto tomava café. A frase me tomou ali, canalizando a possessão demoníaca frasal através do teclado do notebook. Ela se expandiu, virou um período extenso e cheio de orações, que deu as mãos a mais alguns parágrafos, mas eu estava atrasado, e tive de deixar aquela tribo de frases esperar pela minha volta.

Ontem à noite, terminei o conto, e me orgulhei dele ao reler (e alterar uma porrada de coisas), mas estava tarde demais para publicá-lo aqui. Afinal de contas, meu maior meio de divulgação é o Facebook, e pouca gente estava online naquela joça às 00:23. Portanto, lá vai o conto que começou num dia, terminou no outro, e foi postado em um terceiro ainda. Espero que gostem (E QUE ME DIGAM SE GOSTARAM OU NÃO!). Lá vai ele:

Monóxido


O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, fumando seus cigarros como se eles fossem feitos de oxigênio, perspirando violentamente a benzedrina, a codeína, a cafeína, a cocaína e quase todos os membros dessa família de sufixos. A simples chegada dele (em um trem, alguns diriam, ou talvez tivesse sido um ônibus, ou a quantidade de estimulantes em suas veias o permitiu vir correndo dois estados até esse lugar, quem sabe?) causou um estardalhaço em todas as camadas da cidade, especialmente nas camadas invisíveis, espectrais, imateriais, místicas e psicológicas. Todos se abalaram. Todos sabiam que algo estranho e especial e (de forma relativa) sagrado estava acontecendo por ali, escondendo-se por trás de cabelos desgrenhados, fios desiguais, desajustados e subversivos de barba mal-feita e uma camiseta dos Mutantes que ele não tirava nem para tomar dura da polícia. 

O garoto chegou à cidade falando de bandas de que ninguém nunca tinha ouvido falar, e de como o jazz mudou sua vida, em uma noite acelerada e tempestuosa, sobre como ele encarou os trovões de frente, rindo como um maníaco desesperado, e sobre como os trovões fugiram de sua muralha de trompetes e saxofones gritados a todo o potencial do diafragma. Falou de blogs de literatura subversiva na deep web, falou sobre o tráfico e o escambo de drogas, armas, artigos raros e anjos. Falou sobre os portais, e como eles cismam em se esconder por trás de molduras de cotidiano sem-graça, falou sobre as gigantescas, arquitetônicas, intrincadas e sombrias cidades que existem no interior das mentes dos homens. Ele falou muitas coisas. 

O garoto chegou à cidade, procurando pelo fogo que queima por trás de cada prédio, a chama refletida em cada janela e na porta de cada elevador, a pira de urbanismo que faltava em sua própria cidade. E todos os ratos de beco, todos os renegados e os invisíveis arderam em esperança quando ele subiu em um palanque e começou a contar-lhes sobre os mundos além do nosso, e as almas alienígenas e abstratas que pairam nas sombras e parecem Jim Morrison (elas sempre parecem Jim Morrison). E quando ele teorizou sobre as estradas que partem para a morte certa, e sobre estados inteiros escondidos entre as árvores, nos quais o sol queima forte o tempo todo e a fome e a sede são apenas memórias esquecidas. E quando ele desenhou os mapas entre os postes para guiar aqueles com a real fé, com a real loucura e o real compromisso na direção das cidades imaginárias (ainda maiores do que aquela) onde as lâmpadas elétricas estavam sempre piscando, convulsivas, vivas, enraivecidas, desejosas. Onde as pessoas não tinham compromissos que as desviassem de seus reais propósitos enquanto pessoas. E todos os mendigos o ouviam, sem entender, quando ele falava sobre as ondas sonoras, e as ondas radiativas, e as ondas do caos e do píer e das sombras, e sobre tantas outras ondas e cordas e supercordas que todo o raciocínio era inviabilizado em mantras iluminados. Ouviam quando ele teorizava sobre drogas intangíveis, sobre como havia laboratórios além do alcance da vista, escondidos em cada esquina, sintetizando o mais puro destilado de emoções, barrando-as em tabletes, em pílulas, escondendo-as em agulhas vulgares: a mais real felicidade dentro de uma seringa azulada. Euforia-de-mascar. Responsabilidade ou realização enroladas em papel de fumo. 

Ele falou sobre tudo, e quando as palavras pararam de existir ele continuou domando-as, reaproveitando-as em discursos sustentáveis, animadores, reciclados, desconexos. Falava de como Chico Science era uma força elétrica da natureza (que retornou para a natureza), de como os Secos & Molhados eram o mais claro exemplo de possessão de seres humanos por espíritos de arte, e sobre como Tom Waits observava todas essas coisas, entre mistérios naturais e seres de outras realidades. Tom Waits, na face os olhos detidos apenas por aqueles que sabem realmente o quanto o mundo é um lugar estranho e de leis maleáveis. Chegou à cidade com tudo isso a borbulhar nos giros de seu cérebro, a entupir suas veias e escaldar seus lábios. E fez residência nomádica entre os latões de lixo, e perto dos trilhos dos trens, e escondido em meio a tábuas. E desvendou as paredes pichadas com as escrituras das religiões que nascem todos os dias nas mentes dos desajustados. E enfrentou, física e metaforicamente, as várias bestas cheias de olhos que espreitam os solitários em busca de mais olhos. 

O garoto chegou ao coração da cidade, com as mãos trêmulas de um santo bêbado, marcando suas passadas como cicatrizes de vida no asfalto e nas calçadas, chegou desafiando e destronando as autoridades e questionando as formas de governo. E explodindo o conceito e a arquitetura dos edifícios com sua mente tão poderosa quanto fora de seu controle, raios eclodindo como larvas de seus dedos desvairados. E experimentando todos os ambientes que permitissem sua entrada. E forçando sua entrada (por meios escusos, místicos, silenciosos e secretos) em todos os que não a permitiam, apenas para experimentá-los também. Fazendo sexo com as mulheres, os homens, as formas de vida microscópica, as emoções, as mentes, as paisagens, com o coração da cidade, pois para ele o sexo era apenas uma explosão extracorpórea como qualquer outra. E se declarou messias, se declarou demônio, traidor, profeta, fiel, templo e latrina, na intenção de se declarar mentiroso logo após e gargalhar disso, com a intensidade de um tornado gargalhante, e sábio, e mentiroso. Ele conversou na língua dos cães, desafiou os corações e os desejos dos gatos. Uivou ao olhar para as guitarras que soam no espectro escondido da cidade, ao encarar a real face desse lugar. Uivou como se estivesse em batalha, uivou como antes uivou Ginsberg, e uivou toda a sua alcateia de amigos escritores. E se atirou, rosnando, em direção ao Sheol, à Gehenna e ao Tártaro que são a pinacoteca residente no espírito real da cidade, sabendo que a chama que veio buscar estaria ao seu lado em um momento como aqueles. E se reergueu vitorioso em meio a um pôr-do-sol especial, encharcado em suor e luz, as mãos trêmulas finalmente pacíficas e descansadas (ou talvez estafadas demais para tremular), sabendo ter vencido e possuído e ejaculado seu maior e mais urbano desafio terrorista e revolucionário. 

Passou noites e mais noites acordado, engolindo tudo o que poderia ser bebido, junto a outros loucos visionários (que também chegaram à cidade em meio às suas músicas particulares) em recitais sem-fim, indecentes pelo conteúdo e pela forma. Grandes saraus ao ar-livre sob viadutos ancestrais cravados com runas, saraus indigestos, cheios de obscenidades e profanação, que se faziam lindas aos ouvidos daqueles capazes de despertar. Piro-mania, piro-fagia, piro-óptica. Tudo dentro dos olhos espelhados do garoto, aquele que chegou à cidade atrás de tudo isso. Aquele que chegou à cidade e juntou legiões. Aquele que absorveu e se misturou a todos os que conheceu, um grande aglomerado canceroso de essências humanas, uma hidra de infinitas cabeças de dimensões incompreensíveis, a espreitar e ameaçar o núcleo da cidade. Aquele que acordou em meio a locais estranhos e extraterrenos em meio a tardes belas e sussurrantes, a tempo de almoçar largas refeições do Oculto. O garoto estava entre os seus, versando, hipnótico, seus salmos de subversão, empolgado, nadando em glossolalia e sonoridade. 

E apenas os aflitos olhos dos indigentes viram quando seu corpo desapareceu, substituído por luzes de cores inéditas. São estes olhos as únicas e escolhidas testemunhas de seu fim, quando seus tênis e seus cabelos e sua carne de garoto se desfizeram numa mesma malha de inexistência e morte. Ascendendo para sempre, destruído pelo que veio buscar, consumido pela pira que não conseguiu encontrar em sua terra natal. O jovem xamã, aprisionado para sempre na gaiola mágica que construiu para si. Morto. Morto pela quieta revolução que foi sua filha. Morto pela cidade que tanto buscou. Morto pela conquista. Por si mesmo. Pela canção que o embalou até esse momento. Pelas drogas que moveram seus passos. Absorvido pelas camadas invisíveis e pelas almas abstratas que pareciam Jim Morrison. Canibalizado pelos ideais que tanto pregou. Arrancado de si mesmo, como a camiseta dos Mutantes que a polícia puxou, exibindo a nudez de suas entranhas simples de garoto, a pele tatuada, obscurecida por hábitos insones e orifícios de saída. Gangrenada por completo por sua natureza de morto-vivo. E, por fim, explodindo em uma única luz incandescente, esvaindo-se em energia, abstraindo seu empirismo, assumindo sua real forma: Uma ideia nuclear, uma reação em cadeia fosforescente, uma energia capaz de ferir. 

O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, na forma de um conceito abstrato que se fixou permanentemente, como monóxido de carbono numa hemácia corrompida. E, na forma de fumaça luminosa, por lá o garoto ficou. E nunca mais deixou a cidade, convertido na chama que buscara.






P.S.: A ideia inicial do Tom Waits como um místico / exorcista / conhecedor da parte oculta da realidade é crédito de Caio Fittipaldi Kenup, e ele deve ter seu nome exposto aqui!

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte III, seguida da Parte III e um pedido final desesperado

É hoje a data da conclusão do conto que é tão hipster que nem os hipsters estão lendo. E a culpa disso é de você, leitor, que vem até aqui, lê o conto e não passa adiante. Seja parte você também dessa história: Compartilhe o link para os seus amigos. Uma campanha da Unidade Central de Desapontamento. Governo Federal.
Não! Governo Federal, não! Não quero greve no meu blog por conta de má-administração! Bem, vamos logo à Parte III. A menos, é claro, que você ainda não tenha conferido nem a Parte I e nem a Parte II. Boa leitura!

Febre - Parte III



Crônica,

Eu sei que você me conhece há apenas algumas horas, ou talvez nem isso... E se você aprendeu alguma coisa com o escritor, que é meu amigo e que foi mencionado acima, não é de esperar nada de mim, ou da minha vida, ou mesmo da sua vida de crônica. Mas, ainda assim, acho que você vai ficar tão impressionada quanto eu com o que acaba de me acontecer próximo à cafeteira. Se o café da Dona Jurema estava melhor? Não sei, mas imagino que não. Acontece que eu mal senti o sabor do café, porque todos os meus sentidos biológicos, e até mesmo alguns sentidos especulativos estavam voltados para uma nova companheira de trabalho, que fica no Setor 2 do escritório, e que estava lá tomando café também. Ela parece ser mais ou menos uns dois anos mais nova do que eu apenas, mas não conversei com ela o bastante para descobrir isso a fundo. Quando eu cheguei para pegar o café, porém, lá estava ela, comendo uma broinha de milho para acompanhar seu copo de açúcar-negro.
Para começo de conversa, ela olhou para mim. Não como as pessoas olham normalmente umas para as outras. Especialmente, não como as pessoas olham normalmente para mim. Não lembro de mulheres olhando na minha direção como ela fez, dentro dos meus olhos que ardiam em “Febre do Cubículo”, no meu rosto mal-barbeado (e cheio de falhas na barba), no meu cabelo meio grande, meio rebelde, meio “eu ainda não descobri que tenho vinte e oito anos”. Tá certo que a contrabaixista de jazz olhou para mim quando eu a conheci, com seus olhos melodiosos, mas ela estava encarando meu terno alugado. Eu não estou de terno hoje, eu nunca estou. E aquela menina olhou para mim, mas essa não é nem de longe a melhor parte. A melhor parte veio na mágica evolutiva que ela causou, um totem da seleção natural, ao encher os seus pulmões com um ar sem-graça e completamente silencioso e colori-lo, convertendo-o como uma máquina perfeita nas seguintes palavras:
— Cara, você precisa mesmo de um café, hein?
Eu demorei a entender que era comigo. Mas, por sorte, essa demora aconteceu apenas na minha mente, Crônica. Eu não fiquei de fato olhando para ela estupefato como um macaco de escritório. Mas quando percebi que era comigo, eu retruquei:
— Ah, é. Preciso mesmo... — Respondi. — Pena que esse não seja dos melhores.
Devo confessar que parte do meu tom de voz na última frase continha a vontade de que a Dona Jurema ouvisse, começando a incubar a síndrome que realizaria meu sonho-acordado num futuro próximo. Mas eu não precisaria de três ex-mulheres, e muito menos de qualquer amante. Eu teria os cinco filhos de uma vez com apenas uma mulher: A menina à minha frente. Ela se vestia com um estilo um pouco hippie-urbana, um pouco urbana-urbana, parecia vir de algum bairro nobre da cidade, mas sem nenhum tom de esnobismo. Parecia culta, parecia simpática, parecia um segundo sonho-acordado.
— Se você conhecesse o café do Jornal no qual eu era estagiária, você escreveria uma matéria de capa sobre esse daqui.
— Pois é, eu ia comentar que ainda não te conheço... Você seria...?
“Larissa” é o nome dela. “Larissa Puerto”. Sobrenome espanhol. Eu gosto de sobrenomes espanhóis, sei que combinariam com o meu.
— Eu fico com as Artes agora. — Disse ela, me abrindo oportunidade para finta.
— Uau, você fica com as artes? Que honra ter alguém assim no jornal!
— Hahaha, seu bobo! Eu sou responsável pela seção de artes, tá satisfeito agora?
— Muito. Bem, eu sou escritor, trabalho aqui como cronista.
— Escritor, ou cronista?
— Eu trabalho aqui como cronista... Mas estou escrevendo uma ficção também. — Foi aí que o nervosismo começou a se dependurar em mim. A cicatriz das inúmeras gravatas que já vesti foi se apertando, e as palavras maiores foram ficando retidas. As frases e ideias iam represando-se entre as mãos do nervosismo, permitindo que apenas as palavras menores passassem. Tinha de ir embora enquanto ainda não estava parecendo um idiota. — Vou entrar de licença amanhã, devo trabalhar um pouco nela.
— Licença? Tá tudo bem?
— Tudo, tudo... Sabe como é, um pouco de estresse.
— “Febre do Cubículo”?
— É, foi o que o psicólogo falou! Hehe...
— Dizem que é um pouco preocupante mesmo. Se cuida, hein? Tenta trabalhar nesse seu livro e, talvez um dia, eu fique com o lançamento dele.
— Você diz... Escrever...
— É, seu besta... Cobrir seu lançamento.
— Me cobrir, hehe... Seria legal! Vou tentar fazer um bom trabalho, então. Um trabalho à altura.

E me despedi. Agora eu só tenho de finalizar você, minha crônica-confessionário. Fechar você e trabalhar em uma irmã mais nova, em uma irmã menor, possível de se espremer em uma coluna tão apertada quanto a minha. Depois voltar para casa para ficar melhor, para cuidar da minha saúde, e do meu livro. Acho que dessa vez eu consigo avançar com aqueles capítulos problemáticos, e tornar alguns diálogos um tanto mais espontâneos. Tudo o que eu preciso é trabalhar um pouco no livro, e me afastar desse escritório por uns dias. E aí continuar a conversar com a senhorita Puerto, trazê-la cada vez mais perto do meu mundo, apresentar a ela os meus hobbies, os meus defeitos, o meu amigo escritor...
Não! Talvez ele não. Não por hora, o cara é muito mulherengo, e muito cheio dessa autoconfiança niilista de “não acreditar em nada”. Deixa eu curtir a menina um pouco só para mim. Tenho certeza que eu e ela passaremos boas noites, discutindo literatura e pinturas, e ela vai gostar de ouvir a minha opinião sobre a arte-de-rua. E falaremos de livros de mistério e de Douglas Adams durante o banho. E ela provavelmente tem a mesma paixão que eu pela culinária, e adorará que cozinhemos juntos, ao som de Miles Davis...


Bem, pessoal, foi esse o Conto que eu escrevi no Domingo. Gostou do conto? Gostou do personagem (que não é inspirado em mim, o personagem inspirado em mim é amigo desse)? Deixem a sua opinião ali embaixo, para que eu me sinta amado ou odiado.

Aliás, por favor, se der para compartilhar essa joça com as pessoas à sua volta que gostam de ler, eu agradeço imensamente. Convençam-nas a ler, quem sabe elas gostam? É uma boa forma de divulgação da minha escrita e, por mais que o estilo do "Febre" tenha pouquíssimo a ver com meu estilo regular, divulgação é sempre positiva. Pode me ajudar a publicar coisas algum dia!

Muito obrigado,

Bruno.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte II, e a Parte II propriamente dita

Essa é a segunda e penúltima parte do conto "Febre". Se você for grande fã dos filmes do Christopher Nolan ou outros tipos de narrativa não-linear, acho que não ficará tão chateado assim em ler a Segunda Parte antes da Primeira. Mas eu aviso que esse conto não foi escrito pelo Jonathan Nolan e, portanto, foi pensado de forma linear. Caso você queira respeitar a ordem que o autor deu às coisas, clique aqui para ler a Parte I.

Bem... Para vocês que já leram o início, terminamos quando o nosso protagonista estava relatando os comportamentos que deveria evitar para que se recuperasse da sua "Febre do Cubículo", o que diabos seja isso! Aliás, para vocês que já leram o início, eu não preciso ficar contextualizando porra nenhuma nada, porque imagino que vocês tenham uma boa memória. Portanto, pulemos logo à Parte II:

Febre - Parte II



Ah! Chega disso! Todas essas coisas, todos esses pequenos vícios retroalimentam minha insatisfação, e essa é a raiz do meu problema. Não é o Rui, da seção de esportes, e sua conversinha de fim de semana sobre igrejas e sanduíches defumados raros, e viagens com a família. Nem a Vanessa, da seção de economia, e suas fórmulas mágicas para enriquecer, aplicando seu dinheiro nas empresas certas. Não é a dona Jurema (Jussara? Jurema?) que sempre faz o cafezinho adoçado e antidiabético demais. Claro que eles têm a parcela deles de culpa. Mas não é por conta deles que eu não consigo me concentrar. Não é por conta deles que eu não estou conseguindo escrever essa porra dessa crônica de despedida. A culpa disso é minha. Eu sofro de stress pós-traumático, e o trauma em questão é a vida. A culpa disso é minha, e por mais que seja tentador culpar a minha insistente falta de sorte (lembro-me da fala de um filme: “Toda vez que eu tenho algum tipo de sorte, é má-sorte”), a minha visão das coisas não me ajuda muito a me animar. Eu tenho um amigo escritor que tem uma visão muito agradável do mundo:
“O mundo é uma total porcaria!”, ele diz, “Com o caos espreitando em todos os cantos, te oferecendo o bom e o ruim, te excitando e te deprimindo, te fazendo sangrar e orgasmar. Não dá para esperar nada do mundo, não dá para esperar deus do mundo, não dá para esperar alegria ou tristeza do mundo. A gente pulsa nessa poça de probabilidades imprevisíveis, nós mesmos sendo um monte de impossibilidadezinhas respirantes. Só que a gente usa gravatas e reclama do ar-condicionado. Nenhuma vida foi prevista para acontecer nesse cosmo, e a pouca que acontece nos planetas por aí acaba sendo retribuída com um monte de ironia. Você vê, cara? Isso é que é um mundo maravilhoso! Quando você pára de cobrar que ele te faça feliz, você descobre o que é, de verdade, ser feliz. É aí que reside toda a magia, e é por isso que eu amo esse mundo!”
Eu penso de uma forma razoavelmente parecida. Mas enquanto aquele escritor-cervejeiro-maluco pensa que o caos faz o mundo ser algo maravilhoso, eu me deprimo ainda mais. E acabo, mesmo que inconscientemente, esperando algo que o mundo não tem a obrigação de me dar. Criando expectativas para acompanhar as situações tímidas, os acasos fortuitos, as pessoas randomicamente dispostas no dia-a-dia. Acho que todos traçamos alguns padrões sobre como os outros deveriam agir, não? Ou seria eu um tipo estranho de gente, aquele tipo de gente fadada a uma existência infeliz, porque impõe ao mundo a responsabilidade de felicitá-lo? Meu amigo sabe que não se deve esperar nada dos outros, ou do acaso. Ele não espera, e é feliz. Eu, por outro lado, dotado dessa mesma certeza, escolho acortinar minhas esperanças com a estupidez obstinada de quem aposta em um cavalo sem pernas. Talvez seja essa a diferença entre o cronista e o escritor. O psicólogo do convênio do Jornal diria que existe uma grande diferença. Diria que eu não estou tendo “bloqueio de escritor”, eu estou tendo uma “dificuldade de cronista” que é, claro, um dos desdobramentos da minha “febre do cubículo”. É o que me fez perder mais de uma hora hoje cedo, lendo notícias online e pressionando F5 na minha página de e-mails à espera de uma salvação ou uma epifania. E é o que me fez ter a ideia de digitar esse bando de baboseiras para, pelo menos, parecer que estou trabalhando em alguma coisa. “O próprio conceito de cronista”, diria ele, “é primitivamente diferente do conceito de escritor. A sociedade não os encara da mesma forma, pois eles servem a musas completamente distintas. E, logo, a sua mente não os encara da mesma forma. E é por isso que a raiz empírica do seu problema está em outro ponto. Não podemos encarar isso como um simples ‘bloqueio de escritor’. Esse foi o erro de três gerações da psicologia, e cometer esse erro novamente seria negar mais de cinquenta anos de evolução. Creio, porém, que eu não vá ter, sozinho, a base para chegar ao motivo do seu problema. Mas é claro que ele tem a ver com o seu episodiozinho de ‘febre do cubículo’, não é mesmo, campeão? Hehe! Mas conte-me um pouco: Com o que você sonhou hoje?”.
Eu não me lembro dos meus sonhos há semanas. Mas nesse momento, de frente para o meu computador, os olhos tão objetivamente abertos quanto é possível, eu sonho. Sonho que me levanto e saio de meu cubículo, o meu tão amaldiçoado cubículo, tendo em vista os conceitos mais modernos da ciência do estudo da alma. Sonho que passo pelos mini-setores onde as pessoas discutem o comportamento dos filhos umas das outras, e as melhores raças de cachorro, e o que fazer com a happy hour de sexta-feira e o que comprar para bajular os superiores em seus respectivos aniversários. Sonho que alcanço uma cafeteira, que é diferente da cafeteira rotineira, pois está afastada de mim pela distância infinita entre a realidade e o hipotético. É diferente da cafeteira rotineira porque foi outra pessoa que a preencheu de café ou, melhor ainda, porque a Dona Jurema-Jussara-Jurema acaba de ter um acesso de um distúrbio psicológico que nada tem a ver com a “febre do cubículo” (apesar de também envolver uma série de mazelas única e completamente relacionadas a problemas que acontecem em um escritório). Sua ainda indigente síndrome a levou a preparar o café com alguns quilos a menos de açúcar refinado, numa tentativa falha de demonstrar o ódio que ela vinha alimentando há tantos meses. E então a própria doença mostra-se como a cura de si mesma, pois a Dona Jurema começaria a se sentir muito amada no serviço, tão logo os elogios fossem feitos ao café, e o Jonas da contabilidade comentasse que tomou apenas um quarto da sua dose regular de insulina. No meu sonho, todos ficam felizes. O meu café, adoçado a um nível apenas próximo da letalidade, me inspira a escrever não apenas uma crônica, mas três. E ele continua fazendo efeito ao longo de semanas, e eu termino a minha ficção científica, e começo um romance épico sobre índios, e uma alegoria filosófica sobre uma padaria na Florença do século XVIII. E então, graças ao café do sonho, eu ganho o Pulitzer, e morro feliz, por saber que apenas o veículo de minhas palavras morria, mas não os textos em si. E em meu funeral, meu corpo morto e destituído de sentidos seria testemunha dos olhares tristes e saudosos de pelo menos três ex-mulheres, e pelo menos três ex-amantes, e pelo menos cinco filhos. No meu sonho, eu venço a vida. No meu sonho, o caos torna-se meu amigo graças a um enigma envolvendo autoconfiança e cafeína. No meu sonho é o meu amigo escritor que comenta sobre a minha visão de mundo.
Na minha realidade, porém, eu sei que vou me levantar, deixar esse cubículo, andar minha finita caminhada até a cafeteira, durante a qual terei de ouvir as conversas sobre futebol e piqueniques e pet-shops, para ser recompensado apenas com o mesmo café-homicídio-culposo de sempre. E nada mais. Volto a você em breve, minha crônica-morta-viva que não será publicada jamais.

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(Literalmente, pausa para o café. Literalmente, ela demorará até amanhã para vocês que estão lendo no Blog :D Não percam a emocionante e controversa conclusão amanhã, nesse mesmo blog -- Se alguém não hackear meu computador.)

P.S.: Quem de vocês conseguiu pegar o "cameo" de mim mesmo nesse conto?


(a Parte III, contendo a emocionante conclusão na qual os aliens invadem a Terra e possuem as mentes de todo mundo no Jornal já está disponível aqui. Confira!)

domingo, 2 de setembro de 2012

Febre - Introdução e Parte I

Oi, gente! Hoje eu tirei o dia para escrever um conto que me brotou na cabeça. Ele ficou grande demais para um Blog, portanto devo postá-lo em três ou quatro partes e aí vocês vão lendo com calma. Espero mesmo ver comentários ali embaixo, uma vez que contos são muito mais importantes para mim do que posts num blog, OK? E, claro, espero que gostem dessa joça.

:)


Febre - Parte I


            “Febre do Cubículo”. A chamada “Febre” ou “Síndrome do Cubículo” nada mais é do que um desses tipos modernizados dos clássicos problemas de histeria e stress. Eu estou estressado, não estou com “Febre do Cubículo”. Por mais que o psicólogo tenha tentado explicar a origem do termo, a razão pela qual meu problema se difere de qualquer outro tipo de desgaste psicológico não consegue entrar na minha cabeça. É claro que eu estou cansado do meu escritório e do meu estilo de vida. Quem não estaria, afinal? Mas daí a inventar uma nova síndrome para aqueles que, como eu, sentem vontade de enfiar os minigrampeadores de mesa pela traqueia daqueles a sua volta e apertar o botão ejetor até que todos os grampos tenham se acabado... Isso não faz nenhum sentido.
            Acho que é uma tendência da psicologia moderna... Como os estudos avançam mais rápido do que a capacidade das pessoas para inventarem doenças realmente novas para si, eles acabam tendo de setorizar e burocratizar as síndromes já existentes, tratá-las como entidades separadas, estudá-las a fundo e até a exaustão. Acabam tendo de explicar porque jornalistas e corretores de impostos e programadores sofrem da “Febre do Cubículo”, enquanto motoristas de ônibus sofrem da “Síndrome do Volante”, geneticistas sofrem da “Síndrome do Laboratório Apertado” e neurocirurgiões sofrem da “Febre da Sala de Lobotomia Transorbital”. Será que essas síndromes compartimentalizadas também sofrem da febre do cubículo? No fundo, acho que somos todos um bando de desesperados, tentando rotular o desespero uns dos outros.
            A questão é que eu estou aqui, na minha saletinha de meio metro cúbico no escritório do Jornal e, apesar da mente extremamente dialética ao analisar a “Síndrome do Caralho a Quatro”, não consegui digitar uma palavra sequer da minha crônica. Logo essa crônica. Logo uma crônica de despedida antes da licença médica, durante a qual eu devo tentar relaxar de verdade, e não apenas recair em algum dos vícios de sempre, como uma tentativa autolimitada de aliviar o estresse: Não devo ficar jogando pôquer online e perdendo, bit por bit, meu salário de cronista (que não é nem freelancer e nem um funcionário de verdade). Não devo ficar assistindo vídeos de pornografia, mostrando mulheres que eu nunca teria a capacidade de agradar beijando outras mulheres que eu nunca teria capacidade de agradar, a navegação anônima do meu browser ligada (por uma paranoia injustificada, uma vez que eu moro sozinho e pouco me importaria a opinião a meu respeito formada por um ladrão de computadores em potencial). Não devo tentar mexer na minha obra de ficção científica, que nasceu como uma tentativa dupla de sucesso (Conseguir um Pulitzer; Conseguir usar a arte como terapia), e duplamente frustrada pelo fato de que eu daria um péssimo Arthur C. Clarke (o que aumentou ainda mais a minha necessidade de terapia). E o campeão de todos os vícios para se evitar ao longo de uma licença médica devido à “febre do cubículo”: Não devo ficar lembrando-me de todos os meus relacionamentos passados ou hipotéticos, o primeiro tipo compreendendo aqueles consumados com mulheres que nunca teriam a capacidade de me agradar, e o segundo com mulheres que, na maioria das vezes, sequer existiam. Ou pelo menos, sequer existiam da forma como eu as idealizava.
Era o caso daquela bela escritora que conheci numa vernissage de abertura para uma exposição peculiarmente ruim. Eu achei que uma senhorita com aquele sorriso, que entendesse tanto de vinhos chilenos e literatura inglesa seria uma companheira requintada, com um olho clínico perfeito para uma boa oportunidade de relacionamento, que saberia temperar com muita calma um namoro intenso, vívido, cheio de cores e viagens. Que saberia se entregar e se conter na medida certa, jogando um jogo cooperativo, e não uma competição. Ela acabou sendo uma dominatrix com práticas sexuais absurdas e brinquedinhos assustadores, que odiava o fato de não conseguir se relacionar com outra coisa que não as criaturas odiáveis que são os homens, que ela realmente detestava. Ou então aquela contrabaixista de jazz linda, pequenininha e tímida que escondia, por trás daquele imenso corpanzil acústico de madeira e cordas, o fato de que ela tinha uma das mais potentes e doces vozes que o mundo da música esperava para conhecer. Ouvindo seu discurso dialético e bem-construído a respeito de como o mundo merecia ouvir mais krautrock e menos música eletrônica cheia de batidas, e sobre como os pais dela a levaram à Louisianna uma vez, quando ela era uma criança, e retornou ao Brasil cheia de sonhos e LP’s da Nina Simone... Ouvindo a canção quieta que seus olhos tocavam sobre o meu terno alugado (odeio ternos)... Eu me apaixonei ali, na convenção mesmo, e imaginei diversas noites nas quais nós, mamilos a conversar com o ar da noite, escutaríamos Sinatra e assistiríamos filmes antigos e misteriosos antes de dormir, doses de conhaque e sorvetes de amêndoas. O que eu não imaginei é que ela tomaria doses e mais doses de conhaque, e me trairia com o saxofonista quarentão pai de família antes mesmo do nosso primeiro encontro. Ou então...




(confira a continuação aqui! Ou seja um apressadinho e vá logo para a parte final do conto aqui, descontextualizando todo o final :D)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Alguma coisa existencial que nunca vai mudar sua vida, mas você pode pensar que vai, mas acredite, não vai...

Esse post veio à minha cabeça há um mês e meio, mais ou menos, mas acabei não escrevendo-o por preguiça diversos motivos pessoais. O texto veio quando eu estava correndo por Porto Real (que é a pocilga, vilarejo ou qualquer buraco de goiaba cidade para onde meus pais se mudaram). À ocasião eu ouvia "A Silver Mt. Zion", mas hoje o texto voltou a pipocar por aqui enquanto eu ouvia Led Zeppelin, então resolvi que, se o texto gosta de Led Zeppelin E Silver Mt. Zion, ele deve mesmo ser escrito.

Só para finalizar o build-up do texto, eu preciso colocar aqui um disclaimer. Aliás, um disclaimer em negrito. Por algum motivo, esse texto contém spoiler sobre o final de todos os meus livros alguma pieguice conceitual, uma vibe residual meio fim de vida, um #PauloCoelhoFeeling. Peço desculpas, mas vocês estão avisados! Em negrito! O texto começa ali embaixo, para os corajosos, ou as tiazinhas solteironas que choram à toa:

Hoje eu estava correndo esportivamente pela cidade, como sempre costumo fazer, música explodindo alta nos ouvidos que logo perderão a sanidade (pelo menos tanto quanto o cérebro por trás deles), e logo um impulso quase infantil apareceu para puxar a barra da minha bermuda. Aquela criança chata pra caralho curiosa dentro de mim olhou para fora através das minhas pupilas e viu que o horizonte em torno da cidade estava quase escondido por uma muralha de morros verdes. Muito verdes. A questão é que eu sempre, desde quando consigo me lembrar, quis escalar morros não-habitados, deitar-me sobre eles e ficar sentindo a brisa no rosto, pensando na vida de olhos fechados, preferencialmente ouvindo "A Pillow of Winds" do Pink Floyd. Só que na época eu não sabia o nome da música.

Detalhes à parte, eu sempre represei a vontade de ir até os morros e me deitar até que formigas devorassem cada migalha dolorida do meu corpo animal e nutritivo enjoasse e quisesse voltar para casa, em parte porque minhas pernas eram curtas demais, e depois porque meus pais não se juntariam a mim, e nem me deixariam ir até lá sozinho. Mas agora eu estava munido de tudo o que precisava (menos Pink Floyd no mp3, mas eu poderia arranjar uma boa substituta), e resolvi explorar a possibilidade das ruas, sempre com o objetivo dos prados em mente. E foi aí que as coisas ficaram nebulosas. (não isso não vai se tornar um conto de terror, escolhi a palavra nebulosas apenas para dar um ar dramático)

(O seguinte trocadilho não foi proposital. Percebi o tal trocadilho ao final do texto e inseri essa nota aqui. Não vou alterá-lo, porém, porque isso seria censurar minha escrita automática. Obrigado) O primeiro problema que me separava do sonho dos morros não era, nem de longe, a distância. O principal problema era o fato de que em algum momento da estruturação da nossa espécie em sociedades, as pessoas resolveram que seria uma boa ideia comprar terras e delimitá-las com cercas. Não estou reclamando disso, é uma forma bem organizada de se fazer as coisas, por mais que seja um bom tanto desigual, mas esse não é um texto político. O problema que interessa a esse texto é que boa parte dos acessos aos morros que eu tanto queria alcançar estava delimitada por cercas individualistas, que separavam o que é o mundo do que é a propriedade do "Senhor X". Eu teria de achar alguma outra estrada, ou invadir a propriedade alheia, o que eu não faria por uma questão de ética pessoal e medo de tomar um tiro de espingarda na cabeça.

As coisas tomaram uma dimensão ainda mais interessante quando eu olhei um tanto além do arame farpado das cercas, e descobri que elas separavam o mundo de um grupo imenso de bestas. Grandes bestas gordas e monstruosas e cheias de chifres, que pastavam calmamente e aguardavam. Apenas aguardavam que alguém resolvesse cruzar a barreira entre o mundo e a propriedade, apenas aguardavam a coragem, para perseguir o corajoso com bufantes e espumosas bocas, mugindo seus mugidos de touro. Grandes bestas (que também eram propriedade, de certa forma, do "Senhor X"), contidas em um grande pasto, e impedidas de entrar no nosso mundo por um pacto de sangue, pentagramas e evocamentos uma cerca vulgar, mas que também me impediriam de dar um tropeção na minha ética pessoal e invadir a propriedade alheia. Até porque eu só queria chegar aos morros, mas não faria a minha jornada alimentado pela pressa de estar sendo caçado por um boi furioso. Eu simplesmente não faria isso. Portanto teria de procurar estradas.

Depois de correr (e alternar com caminhada, porque sou fraco) por um tempo, vi que a busca por estradas que me levassem até os malditos elevados verdes não estava sendo muito boa. Havia poucas estradas na direção certa, e as poucas que havia levavam na direção de mais cercas e mais feras churrascáveis e, claro, a mais decepção. Portanto, tive de correr, e buscar, e desistir de alguns caminhos que não levariam a nada (ou que pareciam o lugar perfeito para ser atacado pelo Slender Man por algum assaltante). E então fui elaborando esse texto, enquanto continuava a jornada, e pensando no quanto isso parece a constante luta humana para chegar aos objetivos de vida.

Não os objetivos simples como "hoje eu vou comer sushi", mas os objetivos de polpa, aqueles grandiosos que definirão mais ou menos o centro da sua vida. "Eu vou namorar aquela garota, e fazer as coisas darem certo". "Eu terei uma família foda". "Eu terei uma carreira satisfatória". "Eu serei um escritor de peso e reconhecido, e não ficarei restrito a escrever em um blog fantasma que quase ninguém lê (muito obrigado se você lê)". Estes são os morros, os nossos morros. Todos esses objetivos estão longe de nós, com diversas cercas e bestas nos impedindo. Nesse plano pessoal (fazendo livre-associação do mundo desperto como se eu estivesse sonhando) creio que as cercas são nossas. Elas são erguidas por nós mesmos, por camadas subconscientes ou semiconscientes de nós, aquelas que desacreditam, ou que, literalmente, querem ver a gente se fodendo. É sério: Você quer se foder, mesmo que não seja 100% do tempo, e mesmo que você não saiba disso. Mas nós vacilamos, nós temos o medo, o arame farpado do medo entrelaçado nas estacas de madeira da sensação de incapacidade e do desejo pungente de "deixar as coisas como estão". As estacas de madeira, por sua vez, estão na periferia daquilo que Freud chamou de "Death Drive", ou "Punção de Morte", que é a parte de nós que quer nos sabotar, que quer nos impedir. Que quer nos estrangular. É o desejo de autodestruição que nos faz sentir realizados por atitudes negativas, potencializados por comportamentos pouco saudáveis. É o que nos faz querer explodir o mundo, começando pela explosão de nós mesmos. Ou só explodir a nós mesmos, deixando o mundo quietinho na dele. E é o que ergue as cercas que separam a parte consciente de nós dos nossos morros em questão.

As bestas eu já associo como sendo os fatores externos. Elas são o que alimenta a inabilidade de saltar as cercas. São o inferno dos outros que o Sartre falava, no contexto original de que algumas pessoas podem ser a melhor forma de inferno. E elas podem. Mas os bois, as tão referidas "bestas" desse texto, bestas negras de pelos escuros e almiscarados com um cheiro terrível (mas não bois-almiscarados), não são necessariamente as outras pessoas. Nem tudo é culpa dos outros, bem como nem tudo é culpa nossa, e não podemos excluir os dedos do caos, que quando resolve ser babaca, deposita todos os seus esforços nesse objetivo. Desde despertadores que não tocam, empresas que nunca abrem vagas, concursos públicos que nunca acontecem, editoras que não respondem e-mails, encontros desastrosos que às vezes nada tem a ver com a vontade das duas pessoas de estarem ali... Toda essa amálgama de bestas nos encara, mascando calmamente seu capim metafórico, crescendo, nos ameaçando mais e mais, mesmo que de forma silenciosa, nos encarando, nos desafiando a sermos corajosos e quebrarmos a cara inúmeras vezes, tudo para alimentar ainda mais as bestas daqueles que nos rodeiam, que temerão ainda mais depois de ver o que elas são capazes de fazer para nos impedir de nossos sonhos.

E a conclusão final é essa: Não existem morros de verdade sem a escassez de estradas, e sem cercas e bestas para ladeá-las. Não existem morros de verdade que sejam fáceis de alcançar, e a recompensa verde, plácida e cheia de brisa refrescante desses morros sempre estará bem próxima do inalcançável. Não temos a capacidade de alcançar essa recompensa em qualquer lugar, precisamos dos morros. Mas precisamos de coragem, e tempo e às vezes de transpor cercas e fugir de bestas, se quisermos alcançar os morros de verdade. Precisamos de uma perseverança que não é nossa quando nascemos. Precisamos encontrá-la primeiro, precisamos de autoconhecimento para saber ignorar as cercas, e para saber que é possível acalmar ou ludibriar cada besta à sua forma. E precisamos, por fim, ter em mente a solidez da possibilidade que é a de alcançar os morros. Por mais trabalho que nos dê, e por mais que seja exigido de nós, existe em algum lugar, na maioria das vezes, uma estrada fácil, ainda que perdida e de difícil acesso, que levará aos morros sem a necessidade de enfrentar ou amansar as bestas. Existem músicas tranquilas ou porretes para todas as feras. E existem machados ou escadas para todas as cercas. Até para as elétricas, eu acho.

Tenho apenas duas notas a fazer:

1 - Aos curiosos, eu não consegui chegar a nenhum morro, no plano físico dessa história toda de corrida. Ao invés disso, eu corri em direção a uma mina de água que tem nessa joça de cidade. Lavei o rosto com água quase gelada, reidratei um pouco a garganta e corri de volta para casa. Hoje foi a mesma coisa. No plano das ideias, não consegui alcançar nenhum morro metafórico ainda, mas estou trabalhando fortemente na exclusão das minhas cercas.

2 - No percurso até a mina, encontrei uma estação de geração de bioenergia e parei um pouco, impressionado e um tanto diminuído (as duas palavras foram uma tentativa de traduzir e sintetizar o conceito de "overwhelmed", e essa tentativa deu bem errado) por aquele quase vasto parque industrial. Fiquei ali, encarando aquela maravilha tecnológica por um tempo, até meu fôlego normalizar um pouco, e foi um substituto momentâneo muito interessante para um morro. Acho que é esse tipo de momento idiossincrático (até porque, convenhamos: Porra, eu tava impressionado com um parque industrial pequenininho no meio de  Porto Real) que nos acalma um pouco, nos ajuda a nos focar no seguinte fato: Se você se organizar, pegar uns mapas, montar uma trilha e seguir, fica um tanto mais fácil chegar a um planaltinho qualquer. Precisamos de organização, e muitas vezes, mesmo assim, não chegaremos a lugar nenhum que preste, porque alguém resolveu criar gado no meio do seu caminho! Mas, mesmo que alguns morros e montanhas sejam inatingíveis, uma vida com tantos parques industriais não deve ser assim tão ruim, e uma vida não-tão-ruim merece ser vivida, e vivendo essa vida não-tão-ruim, quem sabe a gente não encontra aquela tal estrada que dá certo?

Enfim, chega desse texto, ele está imenso, e cheio das clichezadas. Mas pelo menos foi divertido escrevê-lo!

Até o próximo desapontamento!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Beer and Love, dude!


Hoje eu trabalhei por onze horas. Aliás, você sabe que seu post está começando bem quando o primeiro verbo inserido é “trabalhar”, especialmente se ele vem seguido de qualquer referência, mesmo que vaga, ao intervalo de tempo de 11 HORAS. Por que essa informação é necessária? Simples: Depois de trabalhar por tanto tempo, resolvi que merecia uma Heineken bem gelada, dei meus R$ 3,50 para a chinesinha do trailer no fundão, e vim para casa feliz tomando a minha Heineken. No ônibus, após secar a breja, fiquei olhando para os títulos da Heineken no rótulo, com uma pitada de orgulho alheio, e comecei a imaginar o quanto as pessoas à volta deviam estar me achando um puta alcoólatra, pois parecia que eu estava apaixonado pela cerveja. E, de certa forma, eu estava, Não pela cerveja em si, mas por todos os méritos que ela já conquistou, mas essa introdução já está se desviando muito do propósito do post... Junte a ideia do quanto as pessoas deveriam estar me julgando a uma mente extremamente propensa a epifanias (criativas ou não), e você tem toda a ideia desse post me ocorrendo de uma vez. E aqui ele começa:

Cerveja é igual a amor. Ponto. Por uma série de aspectos possíveis, essa máxima é extremamente verdadeira, e deve ser encarada com a maior seriedade daqui por diante. Por exemplo, cerveja pode, se ingerida em quantidade suficiente, mexer um tanto com a sua cabeça. O amor também. Cerveja traz um equilíbrio delicado entre o amargo e o adocicado, e para continuar tomando cerveja você tem que aprender a apreciar (e não apenas aceitar) ambas as partes, e o amor também. Às vezes você gosta tanto de uma cerveja, que não a trocaria por nenhuma outra marca de cerveja, ou, para os mais extremistas e carentes, por coisa alguma, e exatamente a mesma coisa pode se dizer do amor. Eu seria capaz, e acredito que muitos apreciadores de cerveja iriam pelo mesmo caminho, de passar um dia inteiro com cerveja, e estaria muito satisfeito, obrigado. A mesma coisa se diz a respeito do amor. Ambas as coisas dependendo do dia, é claro! Cerveja é um item muito bom para se levar ao cinema, e a estreia de Prometheus pode confirmar isso muito bem por mim. Da mesma forma, é sempre um bom programa levar seu amor ao cinema (e interprete isso como quiser, inclusive como amor PELO cinema). Uma verdadeira cerveja nunca te abandonará, a não ser que você esqueça onde botou o copo. Fica a dica em relação ao amor também, e acho que essa é a frase mais piegas que já escrevi. Às vezes, ao final de um dia cansativo, uma cerveja pode te servir de recompensa e abrigo. So does love. A cerveja e o amor são capazes de te munir da coragem para quase qualquer coisa, seja essa “qualquer coisa” uma discussão dialética, uma situação difícil envolvendo vizinhos, um cara estranho olhando para a sua namorada, a dificuldade de ser sincero com alguém, ou uma batalha épica contra gigantes do gelo. Você escolhe! Mas nem sempre a coragem vinda do amor, ou da cerveja, deve ser levada adiante. Beber cerveja e dirigir não é uma boa ideia. Em certas ocasiões, isso é válido também para o amor, vocês entendem?  Cerveja pode ser um estilo de vida, pode te fazer despertar novas facetas de você, pode te mover a escrever poesia, e o amor também. E, é claro, cerveja demais pode deixar tonto, piorar bastante a sua silhueta, te deixar barrigudo e, talvez, até indesejável. Mas experimente estar em um relacionamento amoroso para ver o quanto a nossa máxima permanece verdadeira? Cerveja demais pode te fazer falar coisas das quais você provavelmente se arrependerá, e serão motivo de embaraço na frente de seus amigos, mas nada tão grave quanto estar apaixonado, e você sabe disso! Nem sempre é bom misturar duas cervejas diferentes, e eu tenho pena de você se você está apaixonado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Por fim, cerveja demais pode te deixar com ressaca, mas nada como a ressaca moral de quando você cai do status de “amor demais” para “acabou o amor”. Com todos esses sofismas babacas ditos, reafirmo a máxima: Cerveja é igual a amor. Eu diria que há apenas uma diferença, mas acabo de me lembrar que, embora eu não saiba muito bem qual a composição do amor, eu sei que cerveja (salvo algumas exceções mais elaboradas) são compostas de água, malte, cereais não-maltados (às vezes), e levedura. Além disso, você pode amar antes de ter 18 anos, além de alcoolismo ser algo muito mais triste do que ser viciado em amar demais. Mas, tirando esses mínimos detalhes, podemos dizer que a PRINCIPAL diferença entre as duas coisas é a seguinte: Sem exceção, todos os tipos imagináveis de cerveja têm, necessariamente um fim. Ele fica ao fundo da garrafa e, se você beber rápido demais, sua cerveja acabará logo. É triste, crianças, mas é verdade: Todo tipo de cerveja acaba um dia. Mas nem todo tipo de amor.

Isso pode ser encarado, na realidade, por duas óticas:

1 – Se bem cultivado, e ocorrer entre duas pessoas dispostas e minimamente compatíveis, o amor é melhor do que cerveja, uma vez que pode te embebedar para sempre, e você não necessariamente agirá igual a um idiota por isso. Love rocks!

2 – Enquanto o amor pode se arrastar para sempre e se tornar extremamente monótono e afogante, se você estiver enjoado da sua cerveja, você provavelmente irá parar ao final da sua saideira. Beer rocks!

Foi esse o post. Pareceu melhor quando eu escrevi na minha cabeça, no ônibus do que agora quando ele está, de fato, sendo escrito. Mas provavelmente é só a Heineken indo embora do sistema. =D

quarta-feira, 28 de março de 2012

Cordas, Sopros, Percussões e um Teclado Esfaqueado




Retorno ao blog para desapontá-los mais uma vez, mas no post de regresso eu tratarei de algo NADA desapontador.

Ontem eu, a namorada e um grupo considerável de amigos, conhecidos e desconhecidos nos encaminhamos para o Centro Cultural da Justiça Federal para assistirmos a uma apresentação ímpar. Mesmo antes de chegarmos lá, a apresentação já era ímpar: Era um concerto da Orquestra de Solistas do Rio de Janeiro com uma proposta muito incomum: Tocar um programa composto por versões de músicas do grupo Emerson, Lake & Palmer.

Se você desconhece o Emerson, Lake & Palmer, acho que eu não posso fazer muita coisa pela sua alma, e não vou gastar caracteres com você, mortal! OK, é brincadeira, e aí vai um pouco de histórico: O ELP foi um dos grandes nomes do cenário setentista de Rock Progressivo, que começou com a junção de três jovens ingleses cabeludos e virtuosos (os três vindos de bandas anteriores com alguma notoriedade) com o ideal de misturar música clássica, música folk, eletricidade e salada de neurocirurgia. O repertório da banda contava com composições próprias mescladas a releituras de música clássica (ideia responsável pela visibilidade inicial do grupo), tudo isso executado com um contrabaixo muito bem colocado nas músicas, pelas mãos do também vocalista Greg Lake, uma bateria ultrarresistente (porque o Carl Palmer batia nela com uma ferocidade assustadora), e os múltiplos teclados, órgãos, sintetizadores, mesas de som e outros aparatos tecnológicos de Keith Emerson. Este último, na minha opinião, o grande gênio do trio, era tão enérgico nas suas interpretações que montava em cima de um dos órgãos pneumáticos para distorcer o som, e enfiava punhais nele. Tudo em prol da sonoridade e do espetáculo, é claro. Enfim, o grupo era muito bom, muito explosivo e muito melódico também.

E é aí que entra a Orquestra de Solistas com uma sagacidade interessante: Por que não percorrer o caminho contrário e adaptar as composições do trio para orquestra? Com os arranjos do percussionista, Philipe Davis, eles nos presentearam com uma apresentação absolutamente bem-feita. Os arranjos foram muito bem pensados, e imagino o quando não deve ter sido trabalhoso (e prazeroso) fazer a conversão das linhas de baixo e teclado para os instrumentos clássicos apresentados. Os caras apelaram bastante também na hora de selecionar o repertório da apresentação que, embora curta, continha uma seleção muito digna: Só melodias que, para um fã, explodiram o cerne da alma.

Sobre a performance, a orquestra estava muito sintonizada, os músicos pareciam estar bem a vontade com o público (o teatro, além de tudo, era bem pequeno), e o maestro conduziu a trupe com bastante leveza, que não escondeu sua técnica em momento algum. Aliás, ele é bem simpático, e interagiu com o público como em um show de rock and roll mesmo, sem aquela impessoalidade austera de lorde Sith de maestros como Karajan. Toda a orquestra parecia estar se divertindo muito e acredito que, mesmo com a responsabilidade sobre os ombros, de estar realizando um espetáculo singular e referencial como aquele, eles estavam se divertindo mais do que a gente. A mezzo-soprano que realizou os vocais em "Jerusalem" (aliás, uma grata surpresa, pois é uma das minhas preferidas do ELP) tinha uma ótima técnica, e uma presença bem marcante da voz. Os versos de William Blake tomaram impulso no diafragma dela e ficaram muito bem executados (muito embora eu não seja o maior fã de vocal lírico feminino). Só senti falta de um tanto mais de explosão nesta versão especificamente. Percussão, talvez. O fagote marcando alguns graves, com aquele tom marcial que ele tem. Talvez um trompete para executar as linhas de teclado da segunda estrofe. Mas os arranjos foram feitos por um músico de verdade, e não por um blogueiro-microbiologista-idiota como eu, e ele sabe (muito bem) o que faz.

Outro bônus fantástico foi a composição do trompetista (acho que Gilson Santos, desculpem-me se eu errei), "Libras". Muito bem-feita, e com a ideia base (imitar com os movimentos do trompete uma conversa na Linguagem Brasileira de Sinais)

O concerto foi curto e (mesmo com o inesperado Bis da primeira impressão de "Karn Evil 9") não chegou a duas horas. Deixou muita vontade de mais. Pergunto-me como teria ficado "Tarkus" (insistentemente pedida pelo casal atrás de nós), "A Time and a Place", "Knife's Edge", "Living Sin" e alguma bem Honky-Tonk, como "The Sheriff" ou "Jeremy Bender". Enfim, por mim, eles tocavam toda a carreira dos caras, e eu não iria mesmo me importar.

No fim das contas, fica aqui a vontade de mais concertos como esse. E caso Philipe Davis leia esse post, reforço o que falei: Os álbuns antigos do Genesis (aqueles com o Peter Gabriel) também merecem um concerto similar. Bem como Focus, Jethro Tull, The Doors (que também tinha bastante influência clássica), o Meddle, do Pink Floyd, o In the Court of the Crimson King, do King Crimson(maravilhoso, além de contar com o Greg Lake como vocalista), uma possível adaptação de Godspeed You! Black Emperor e Silver Mount Zion (dois dos poucos nomes atuais que têm realmente muita criatividade) e provavelmente muitos outros artistas e álbuns mereceriam homenagens como essas.

Enfim, que os caras continuem o ótimo trabalho deles. E vocês, meus raros leitores, quando surgir a oportunidade de assistir a uma apresentação da OSRJ (especialmente se eles reapresentarem o espetáculo do ELP) agarrem esta oportunidade. Além de tudo, foi "cinco reau" para estudante.

É isso, manada de leitores enfurecidos. Estou de volta no blog, mas vou perder muito da minha periodicidade, pois é ano de monografia, e eu deveria estar escrevendo a minha, ao invés de me dirigir a vocês. Mas a Orquestra merece!

Semana que vem tem mais um post sobre música, mas ele será mais espiritual, analítico e reflexivo, e bem menos groupie empolgado com o concerto, OK?