segunda-feira, 24 de junho de 2013

Palidez - Parte 2

            Estou com muito, muito frio. Já faz duas semanas que estou doente, e o termostato da base não tem feito nenhuma maravilha. Eu tenho alucinado com coisas, palavras que surgem brilhando no escuro, grandes estátuas de povos esquecidos, olhando para mim com aberrantes olhos imperativos de argila. Tenho escutado algumas vozes metálicas a se locomoverem e gargalharem de mim ao longo da Base-Piloto. É tudo uma merda. Minha urina queima ao sair de mim, deixando uma dor rancorosa por estar sendo rejeitada. Mas o pior de tudo é a constante sensação de que existem coisas nos meus músculos: Eles doem, eles estão todos estafados (especialmente braços e abdômen), e ainda assim tremem em espasmos engraçados o tempo todo. Meu corpo está mais vivo do que eu, e isso é uma situação deprimente pra cacete. Recosto minha cabeça na mesa, desiludido, e começo a pensar, na tentativa de me distanciar daqui.
            Esse planeta é úmido. Eu senti o frio assim que eu cheguei, mas não imaginei que a sublime mágica da febre funcionaria tão bem para fazê-lo piorar. Coloquei a culpa da dificuldade em me locomover no longo período de hibernação dentro da nave (um clichê de viagens espaciais, que quase chega a me divertir), mas logo me lembrei do que diziam os relatórios dos robôs-pioneiros: A gravidade daqui é um tanto maior do que a da Terra. Não mais de três vezes, eu acho, mas isso já faz com que o ato de viver torne-se muito mais incômodo do que já o é por natureza. O relatório daquelas máquinas também dizia que existe uma biodiversidade exuberante por aqui. Quando eu desci da aeronave, o corpo dolorido e as articulações duras, e os olhos ardendo pelo sono resquicial induzido pelas drogas-de-hibernação que ainda me corriam pelas veias, tudo o que eu conseguia ver (além da base cinzenta, e dos esqueletos das máquinas tristes que a construíram) transpirava uma vida alucinógena e constante... Vegetais arroxeados de várias espécies, visitados por grandes animais (alguns voavam, e outros eram parecidos com os grandes pastadores que vemos na Terra. alguns eram translúcidos como peixinhos de aquário, e até os órgãos deles eram belos). De fato, esse planeta nomádico e indigente tem uma diversidade incrível de formas de vida para serem extintas pelo nosso progresso. E a minha função nisso seria a de digitar linhas de comando: Um verdadeiro profeta de um apocalipse artificial.
A umidade do ar é viscosa, mesmo aqui dentro da base. Do jeito que andam as coisas com meu abdômen, logo eu não aguentarei tossir como eu estou tossindo, ou respirar como eu estou respirando. Resta apenas recontar essa fábula irônica de desespero e tomar remédios que sequer fazem sentido, fazendo o possível para ignorar os grandes dentes que parecem brotar do teto e sorrir para mim, os corpos putrefatos de crianças correndo pela nave (talvez os filhos que nunca tive), e os grandes insetos iridescentes que ficam caçoando de mim com seus zumbidos amorfos em sânscrito. Deitado em minha cama desconfortável (como qualquer coisa poderia ser confortável?), observo as luzes do quarto enquanto elas derretem feito aquarelas psicodélicas frente a meus olhos de febre, meus olhos-braseiro, que ardem como a Condenação, ou como o coração perverso do Etna. Penso ver uma adaga se movendo nas sombras (que também derretem), e a paranoia e a taquicardia me comprimem a garganta e causam dor. Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
Desmaio pela terceira vez.
Dessa vez, vejo-me andando por aquela praia artificial, o sol falso a brilhar no céu de plasma. Minha esposa está ao meu lado, e ela se deslumbra com a ilusão de que aquele firmamento alcançável é algo próximo do real. Mal sabe ela que estamos em uma redoma, que flutua em uma pilha de lixo tóxico e entranhas, e almas nucleares de vítimas de uma série de holocaustos. No meu sonho, eu sinto meu corpo a tremer na cama, anos-luz de distância dali, em outro firmamento alcançável, infinitamente distante da radiação dos trópicos. Eu sinto meu desconforto do futuro, e ele decanta em minha barriga inocente na forma de um mau-pressentimento. No meu sonho, minha esposa me abraça, e diz que tudo ficará muito bem. Eu sei que ela não acredita nisso, sei que é mais fácil para ela acreditar no sol artificial (que provavelmente fui eu mesmo quem programou, numa ironia anacrônica) que nos bronzeia de tumores em potencial do que acreditar de verdade na projeção de que tudo ficará bem. “Nada ficará bem, querida! Olha para mim, no futuro, ardendo em febre, morrendo aos poucos de uma doença que ninguém nem terá chance de estudar para que ela ganhe um nome!”. Ela não entende nada do que eu estou falando. Diz que eu estou alucinando. Um ano e dois meses no futuro, eu estaria realmente alucinando. Por um momento, acredito na realidade mal-desenhada do sonho. Acredito que eu tive, naquelas férias, o pressentimento, a visão de que tudo iria mal nessa viagem. Eu soube, por uma fração de segundo, por algum artifício da quântica que o tal do Hawking que eu estudei no Ensino Médio não chegou a ser capaz de entender antes de morrer... Eu soube de tudo o que aconteceria, mas as ondas de água salinizada artificialmente se misturaram às ondas de ambição, e a carreira, e a remuneração, e os apenas dois casos entre vários sucessos, e os olhos da esposa, e as maletas elegantes... E não haveria nenhum pressentimento que me permitisse fugir dessa viagem, dessa tragédia que o Determinismo havia de me entregar numa bandeja, junto a uma salada de plantas roxas, e à carne translúcida de belos animais.
Desmaio pela quarta vez, e agora tudo são panos negros e retalhos de memórias que sequer são minhas. Vejo através dos olhos de um colonizador, morrendo pelo veneno de uma serpente tropical. Não existe medicina nesse lugar, e a mim só resta tremer, e amaldiçoar, e beber aguardente de péssima qualidade, enquanto espero que as pálpebras de minha alma se fechem.
Vejo através dos olhos de uma donzela na Inglaterra Vitoriana. Aquela adaga me penetrou quase gostosamente as costelas, beijou-me por dentro como uma deusa, e agora toda essa luz que me invade os olhos pertence a mim. Tusso sangue, deixando para trás algumas gotas de minha humanidade. Sou uma deusa agora, em um palácio de luzes claras.
Vejo através dos olhos quentes de um mendigo. O silencioso anjo da tuberculose bate suas asas dentro de meus pulmões, fazendo com que eu tussa para fora de mim pedaços enegrecidos da minha consciência. Ele me purifica aos poucos. Em breve, ficarei gelado como a noite, eu sei... E as pessoas olharão para mim e dirão: “Pobre coitado.”, sem nem se perguntarem o que eu fiz em vida. E o silencioso anjo da tuberculose terá terminado sua purificação, e estará livre para salvar outro mortal...
E salto de corpo em corpo: doses penetrantes de morfina para responder ao idioma do câncer; dentes de lobos que cravam-se na carne e nas vísceras escuras, criando padrões divinatórios sobre a neve; um vírus que consome as células, subjugando-as como um regime ditatorial, abrindo as portas para o Reich da Peste, e todas as doenças me consomem; radiação esverdeada e quente a me cobrir a pele como um lençol: num momento estou aqui, no outro sou apenas mais uma vítima em um batalhão de friorentos; a fome.
Desmaio pela quinta vez. E pela sexta vez... Talvez não aguente até a décima.
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            Acredito acordar e, alguns minutos depois, acordo de verdade. O tempo de reação é lento, por isso não grito ao vê-lo. Provavelmente é só uma alucinação como outra qualquer. A alucinação não se dissipa: É uma pessoa. Um homem alto e pálido, gigante. Um Golias vestido e composto de branco gélido, com olhos que fitam o corredor. Ele está sentado ao lado da cama desconfortável, o sarcófago que me abraça, respirando através de uma máscara estranha que lhe dá uma aparência alienígena. Mas eu sei que ele é um homem, e o mais assustador: Eu sei que ele está aqui.
            Ao perceber que eu comecei a tremer um pouco mais (queria poder dizer que o motivo é frio, mas mentir não vai me tornar mais corajoso), ele vira seus olhos, também pálidos, na minha direção, e começa a falar comigo. A voz sai engraçada e pouco crível, ao passar pelo filtro estéril de sua máscara cinzenta. A história que ele me conta é um pouco menos crível. O cara diz ser um médico de uma das Colônias antigas. Aparentemente eles também têm ideias expansionistas agora, e estão investindo em programas como o da minha estatal. Só que eles são avançados (éticos) o bastante para terem médicos a bordo de suas expedições iniciais de reconhecimento, e a equipe (vejam só, uma equipe!) não é obrigada a contar apenas com as unidades de auto-cirurgia das Bases-Piloto. Eles estavam instalando um centro de pesquisas em uma das luas daqui, e detectaram atividade humana na superfície do planeta. Esse cara foi mandado para cá para ver se estava tudo bem e estabelecer contato. Uma das regiões intactas do meu cérebro estala, tentando avisar que tem algo errado. Eu queria que eles apagassem essas luzes, e que essa porra desse barulho fosse embora. A região intacta está isolada, ilhada no lodo de neurônios ensandecidos pela alta temperatura, e eu paro de pensar nisso...
            O homem pálido é um médico. Ele veio me ajudar. É tudo o que eu preciso saber no momento. Desmaio pela sétima vez. Um corpo nu flutua num campo cheio de petúnias feitas de eletricidade, longe de qualquer atmosfera respirável. Eu demoro três anos, observando cada detalhe do relevo de seu rosto para perceber que sou eu. Ao longo desses três anos, eu envelheço, mas o corpo nu continua jovem, continua morto, congelado. Seus cabelos e suas unhas continuam a crescer por um tempo, por mais que eu tenha ouvido dizer que isso não acontece de verdade. Tento abraçar meu próprio corpo congelado. Meus braços tremem e se deformam. Eles doem, pontadas cada vez mais agudas, a pele dilacerando-se sob uma lâmina incômoda e fria. O sangue corre espesso, estou desidratado. Demoro um tempo para entender que acordei, e o corpo nu demora ainda mais, permanecendo a flutuar do lado de cá da realidade, com sua sombra morta e nevada em meio à sala de cirurgia. O que a ética médica teria a dizer sobre uma operação realizada nessas condições, certo?
            O homem pálido arranca de dentro do meu braço uma fibra muscular inteira. Eu gostaria que os anestésicos durassem para sempre. Daqui a algumas horas, eu sei, esse meu desejo será mais forte. Ele aplica uma pasta sobre meus músculos (os restantes), e começa a suturar a abertura.
            — Bem-vindo de volta. — Ele não sabe meu nome. Eu nem me importo com o dele. — Seu caso não é dos mais graves, mas também não é nada animador.
            Sua voz tem algo de estranho. Ela estridula, provavelmente por conta de sua máscara. Ele é estranho. Não é só a palidez, a textura de sua pele parece estranha. E seus olhos são frios, e fazem minha febre oscilar com seu toque à distância. Apesar disso, consigo ver que ele está preocupado com a minha saúde, talvez movido por uma compaixão genuína, e não apenas hipocrática. Estou sedado, não consigo falar grande coisa. Balbucio algo sem muito sentido, enquanto observo, aterrorizado, ele colocando uma quantidade imensa de fibras musculares (as minhas fibras musculares) em um jarro de incineração. Minhas pálpebras cáusticas se arregalam: Meus pedaços de músculo parecem vermes: Elas tremem e se debatem, em um quase-terror, apenas superável pelo meu terror genuíno. Essa visão estranha, possivelmente fruto de um cérebro cansado, dopado por febre e químicos, me leva a abandonar a realidade mais uma vez.
            Minha mente anda por um vale azulado, entre dois rochedos magníficos que irradiam certo calor confortável. Ao longe, uma cascata de água muito limpa faz-me crer que ficará tudo bem. Posso confiar no estranho de branco, e posso confiar nessa fuga psicológica otimista e azulada. Antes que eu consiga sorrir, percebo um detalhe que me havia escapado: A encosta dos rochedos está coberta por grandes casulos escuros, de superfície viscosa e coloração metálica. Dentro dos casulos estão adormecidas pessoas extremamente deformadas. Nunca tive tanta vontade de acordar.

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domingo, 23 de junho de 2013

Palidez - Parte 1

(escrevi esse conto há um tempo, estava esperando que algumas pessoas mais próximas lessem e opinassem antes de colocá-lo online. é um terror / suspense / ficção científica e, como ficou um pouquinho grande, será publicado em 4 partes. segue a parte 1, espero que vocês gostem, e comentem!)

Palidez


Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.
Cambaleio um pouco, com a palavra “sorte” ainda na mente. A palavra também cambaleia na minha mente, indo e vindo, escorando-se nas paredes frias da consciência. Que situaçãozinha fodida essa na qual fui me meter. Ando até uma mesa, na sala de jantar, e despejo descuidadamente o meu corpo febril sobre uma das cadeiras. Tenho vivenciado uma rotina de tosses intermináveis, e o meu sangue arde tanto dentro das veias ígneas de febre que minha visão já está um tanto embaçada. Ainda tenho alguma força dentro de mim, o bastante para digitar, na tela da própria mesa, um pedido qualquer de comida. Quando todas as variações do cardápio têm o gosto e a textura de uma simples ração de viagens, a dúvida entre pedir uma pizza ou um prato de gnocchi à parisiense torna-se obsoleta. A fome que sinto serve para encher o tanque de combustível do “Expresso-Indiferença”. Mastigo a comida sem gosto, com o auxílio relutante de músculos que doem, e tremem contra a minha vontade... Algumas pessoas nascem com sorte. A grande maioria das outras não está tão melhor assim do que eu.
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Há um ano e dois meses eu fui escalado para essa missão. Os caras das maletas elegantes me chamaram para a saletinha metálica, serviram-me doses e mais doses de qualquer coisa espumante e sem-graça, empurraram torradinhas cobertas de “patê Nutricon” dos mais diversos e requintados sabores pela garganta, e me deram uma puta temporada de férias em uma daquelas grandes praias paradisíacas artificiais. Deram-me a opção de ir com a minha esposa ou com “Duas acompanhantes maravilhosas que poderemos auxiliá-lo a escolher. Queremos que você fique bem à vontade por essas semanas, filho.”. Eles me garantiram o melhor e mais privado lugar na praia. Disseram que eu poderia até mesmo trepar na água e ninguém ficaria sabendo.
Eu não trepei na água. Curti minhas férias sozinho com a minha esposa (eu não precisei de ajuda alguma para escolhê-la), mesmo sabendo que ela estava puta comigo pelo que nós dois sabíamos que viria a seguir. Esse tipo de regalia não vem de graça. Os caras das maletas elegantes e das “acompanhantes escolhidas a dedo” e dos ternos com perfumes de nome impronunciável (ou, no mínimo, que você não conseguiria pronunciar sem um sotaquezinho afrescalhado qualquer) fizeram de tudo para que eu me sentisse um deles, para que eu percebesse o quanto o Sistema favorece aqueles que são leais a ele. Tentaram, e conseguiram, que eu acreditasse ser o melhor Engenheiro de Software daquela corporação estatal maravilhosa (“Você não sabe quantas nações inteiras dormiriam à noite com inveja de você se soubessem os detalhes do que você irá realizar, filho!”). Eles não têm ideia de quantas nações inteiras já dormem à noite com inveja de mim pelo simples fato de eu não ter uma mutação qualquer, ou pelo fato de eu ter o que comer várias vezes ao dia, alienados do caralho... Mas eu entrei no jogo deles. “Eu sou o único qualificado para esse trabalho, afinal!”.
Eu passaria dois anos fora do planeta, em uma Proto-Colônia um tanto mais afastada desse ponto da galáxia. Um ano dessa brincadeira seria gasto apenas nas viagens de ida e volta, e o outro ano envolveria fazer a atualização, manutenção e operação do software da Base-Piloto do lugar. As coisas funcionam assim: Uma trupe de robôs hiperespecializados é enviada para um planeta, faz um reconhecimento inicial do terreno e constrói uma mini-estação de vigília próxima ao ponto de aterrissagem da nave. Depois que a estação está pronta, eles entram em contato com a nossa base, no próprio planeta Terra, e torram o resto de suas baterias no processo. Quando nós recebemos o sinal, os pobres robôs já estão todos mortos, e a base está construída, mas com a grande maioria de suas funções totalmente inoperantes. Essa é a deixa para a minha corporação enviar um filho da puta como eu para um terreno desconhecido, totalmente sozinho, para mexer em todo o software do lugar, e deixar a porra da Base-Piloto funcional. É uma boa forma de “minimizar os riscos” da operação (que é a maneira que os drogados do setor de Comunicação arranjaram para vender a ideia de que, se der alguma merda, só o Engenheiro de Software toma no cu).
Eu topei. Na grande maioria das vezes, os planetas são previamente escolhidos com cautela (para “minimizar os gastos”), e os próprios robôs enviam relatórios (junto daquela mensagem final que eu mencionei) com informações sobre a composição da atmosfera, e do que se pode chamar, muito grosseiramente, de flora e fauna do local. Se for detectada qualquer ameaça em potencial, a corporação cancela a exploração do planeta em questão, pelo menos hipoteticamente. Na prática eu sei, e todo mundo sabe, que eles arriscam demais às vezes, e existem duas histórias famosas de caras que morreram em missões como essa minha. A verdade (e foi por isso que eu topei vir para cá), é que esses dois caras azulados e mortos estão diluídos em um verde oceano respirante de Engenheiros de Software que voltaram para casa, e esse tipo de serviço rende um pagamento que daria até medo. No fim das contas, as duas mortes pesam tão pouco na estatística que, mesmo levando em conta os inconvenientes da solidão e do risco, pode-se considerar uma oportunidade fácil de enriquecimento. Fora a emoção de ser o primeiro ser humano a colocar os olhos num planeta desconhecido. A grande operação “Anthroplosion”, de expansão da espécie humana por diversos planetas habitáveis já contava com um enorme número de sucessos, e grandes heróis corajosos construíram esse progresso (me ouvindo falar assim, sinto-me não muito mais esperto do que aqueles robôs que morreram aqui antes de mim). É tudo, no fim das contas, uma questão de sorte.

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quinta-feira, 28 de março de 2013

Urbe


Existe uma cidade dentro das galerias claras do meu crânio.
Nesse exato momento ela adormece, e seus sons se escondem por trás do meu cotidiano barulhento e cheio de música.
Mas eu sei que basta fechar os olhos para acessar as imagens sépia e sujas de suas ruas bagunçadas.

Às vezes, quando eu sinto a polícia paranoica de mim no meu encalço, gosto de me refugiar na minha cidade.
Ela possui bairros, mas eles são difusos,
E seus trens trafegam fumegantes pelos limites da memória. Todos os vidros estão empoeirados o tempo todo, mas os 
[alfaltos brilham.
(Os asfaltos sempre brilham na minha cidade. Ao brilhar, eles refletem um pouco da minha gigante estátua de inquietude)
Existe uma cidade em meu cérebro esponjoso e rosado,
E nem sempre ela gosta de mim.

Há uma galeria na minha cidade...
Ela é toda construída com base em um material resistente, algo estranho e raro, porventura maravilhoso;
Que seria lindo se não fosse ódio,
Se não fosse o barro frio e resistente das más impressões e dos preconceitos.
Nessa galeria estão penhoradas as memórias das quais mais me arrependo, mas não consigo me livrar delas.
Talvez porque o barro frio também as componha, e ninguém tem interesse nessa porcaria.
O ódio é uma matéria prima barata, e morreria de fome se dependesse dele.

As altas torres de concreto possuem, às vezes, vistas maravilhosas.
É uma cidade litorânea, a minha.
À tarde, quando o sol das ideias rasas começa a dar lugar à noite, ele reflete-se nas águas do oceano.
As águas não são das mais cristalinas, mas fornecem os sonhos necessários,
E o reflexo do sol entre as algas mortas e os sacos de lixo e embalagens é uma visão e tanto para a mente.
Uma cidade litorânea, com alguns pontos de cartão-postal, se você der sorte. Uma cidade quase bonita, um bom ninho para 
[aposentadorias, talvez.
Mas uma cidade, ainda assim. Construída de tudo o que se sente, e tudo o que se pensa, na encosta rochosa do meu crânio branco-amarelado.

Às vezes, quando os clubes estão agitados,
Quando há tráfego, talvez, e os estressados começam a buzinar ao longo das minhas ruas,
Eu tenho uma enxaqueca daquelas, e a vertigem e o desprezo pela vida me invadem.
Nesses momentos, eu gostaria de poder exilar a dor de cabeça em uma cela especial.
Uma cela só para ela, na grande e ostensiva penitenciária que há no centro da cidade.
Mas não há vagas para mais uma dessas dores bobas naquela penitenciária, e então eu fico deitado com um travesseiro no 
[rosto, odiando todos os sons do mundo.

Existe uma estranha metrópole nessa minha cabeça estranha (a mesma que dói de vez em quando)
Quando eu tenho tempo de olhar para ela de longe, eu posso ouvir o lento jazz que compõe o seu ar,
Eu consigo sentir a atmosfera de paraíso elétrico, da iluminação possível, e de uma agência imobiliária administrada pela 
[felicidade, com placas em todos os cantos.
E, então, a felicidade é alcançável, dona de tudo por aqui, taxando todos os lugares, e próxima de mim a todo momento.
É quando sinto a calma.
Mas existe também uma cidade fora dessa minha cabeça estranha, e ela sempre me chama de volta.

Às vezes um dos habitantes da minha cidade consegue fugir, consegue percorrer todo o caminho até a rota de fuga mais 
[próxima.
Então ele pode parar nas minhas mãos, e ser escrito em uma língua vulgar.
Ou ele pode desembocar na minha garganta, e puxar as cordas das palavras
(para que elas dancem, e a culpa seja dele)
Às vezes ele apenas foge, e eu não sei para onde ele vai, ou ele não é do tipo que se expressa na palavra escrita ou falada.
É quando eu sorrio sem motivo, ou gargalho de uma graça da qual não me lembro.
E então me calo, ciente de que o próximo censo perceberá a falta de mais um morador.
Às vezes eles desistem da fuga, e voltam para seus cubículos apertados, onde viverão vidas apertadas como cada um de 
[nós aqui do lado de fora.

Sim, existe mesmo uma cidade escondida pela fachada de pele e ossos e colágeno e endotélio e sangue que me compõe a 
[testa.
Uma cidade oculta pelos meus olhos cínicos e tímidos.
Uma cidade grande.
E às vezes, passeando por ela antes de dormir, eu desejaria que ela fosse um campo.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Espontaneidade

Hoje eu não vou usar meu cérebro, não vou vestir nenhum chapéu, ou boina. Também não pentearei o cabelo, não rasparei o cabelo, não desnudarei o couro cabeludo, não exporei nenhum milímetro de mim, nenhum milímetro de minha pele, do meu lado de fora, do meu lado de dentro, não despirei minha alma com o sentimentalismo barato dos mortos-vivos dos quais me cerco. Hoje eu não tentarei me entregar ao precipício que é a emoção, não tentarei explicar nada de mim que não eu mesmo, não hei de meditar, não hei de convidar o caos para me acompanhar, não hei de me sentir humano, e fraco, e frágil, e tímido como sempre me sinto, ou dar ouvidos à desesperança que me é irmã gêmea. Não serei erudito. Não serei chulo. Não tentarei deixar de ser eu mesmo, puro. Não deixarei que a violência manche as minhas roupas, queime a minha boca, faça-me dançar seu baile roto. Hoje eu serei racional, escreverei a escrita automática (consciente de que toda escrita é, no máximo, semi-automática), não censurarei meus horizontes, não me conformarei com a ordem do mundo, que me empurram como natural. Hoje eu serei sólido, e não me renderei à métrica dos versos, pois os grilhões dos versos (ah! os versos) me corrompem, deixam-me exposto, e nu, e metalizado. Não escreverei meu misto de linguagens, o português-inglês-francês-espanhol-alemão-élfico-finneganês-wakesiano, na tentativa de retratar dramas que desconheço burilados na argamassa de idiomas que não domino. Não romantizarei minhas paixões, ou minhas falhas, não abraçarei minhas aspirações como se elas não fossem sonhos, e não fossem infantis, e não fossem as crianças choronas elétricas de um psicológico despreparado. E tentarei lembrar-me da face de meus amigos, dos meus verdadeiros amigos, aqueles que são loucos, realmente loucos, afogados na aura da loucura que a psiquiatria não é capaz de detectar, mas que ainda assim não conseguem o sonho utópico e alienista de se adaptar a uma sociedade como aquela da qual somos frutos. Prestarei atenção na colisão entre todos os meus nêutrons e os núcleos dos quais se originam, e na energia que eu extraio disso em plena dinamização nuclear subjetiva. Hoje eu não escreverei ficção, não voarei nos ares de uma imaginação escapista, e maravilhosa, e inata, renegarei a fantasia dos dias, e não escreverei nada que possa ser chamado poesia, darei apenas a negação como resposta à ânsia de escrever a poesia, de me expressar por versos rasos que se fingem profundos, por trocadilhos e jogos de palavra teatro-mágicos, e apenas viverei a piromania da alma, ao recusar-me a explicar o conceito que chamo de dharma-cético-materialista-infinito, que é o fruto do autoconhecimento mais profundo, e da análise impessoal do “eu” e do “todo”, e do como eu acho esse “todo” realmente sagrado, sim, sagrado, por sua total falta de significado ou motivo diante dos meus olhos mal-dormidos. Por fim, hoje, pela primeira vez, não acordarei imaginando-me como algo mais do que uma simples e medíocre criatura humana, fruto de mutações acumuladas ao longo de gerações quase infinitas, dotado de um talento razoável e inútil, e nem abundante o suficiente para me causar real orgulho, mas ainda assim não renegarei o meu quinhão dessa habilidade, utilizando-a para o meu hedonismo, para evitar a emasculação psicológica da frustração, para evitar o sufocamento de meus arados tristes. Hoje, eu abraço a ciência, e a serotonina, e a literatura, e a escolha de ser feliz, e completo em mim mesmo, e visualizar minha existência, independentemente do que o nietzsche-dostoievsky-asimov-dick-lynch-mutarelli-ginsberg-burroughs-coelhismo tem a dizer sobre isso. Hoje eu decido correr, até que minhas panturrilhas derretam no ácido de si mesmas, pela estrada metafórica de mim.

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Conforme o título indica, escrevi esse texto quase inteiro de forma espontânea, enquanto eu corria, na minha mente. Depois cheguei em casa, tomei um banho frio e sentei-me para tentar transcrevê-lo. Perdi metade de sua essência, mas gostei de reler a metade que sobrou (mesmo que seja uma cópia clara do estilo de Allen Ginsberg. Foda-se)

sábado, 26 de janeiro de 2013

Estranheza (ou "Justificando o nome do blog, em um atípico dia na vida de Bruno Moraes")


           

           E eu acordo, fora da minha casa, de uma noite de sono peculiarmente complicada. Devido ao concurso que fiz para a vaga à qual estou concorrendo, teria de estar hoje muito cedo em um lugar muito longe, o que me levou a recorrer à estadia na casa de amigos (valeu, Paulinha e Daniel!). O problema não é dormir fora de casa. Eu já me acostumei ao status de um eterno peregrino, pertencente apenas à Estrada, com um coração incandescente que percorre os acostamentos como um único farol, prestes a falhar na insone e infinita viagem. Fico entre três cidades, nenhum lugar é a minha casa, e estou muito feliz por (apesar de não ter muito o que chamar de “raízes”) ter pequenas sementes de lar em vários lugares (a casa dos meus pais é o mais reconfortante deles). Mas eu estou divagando: Não dormi mal por não estar em casa. Estou longe disso em pelo menos quatro anos. Eu dormi mal por conta da tempestade (daquela que estava por vir às 8:15 da manhã, na qual nuvens negras de insegurança tentariam eletrocutar a garganta), e da tempestade real, física, que me acordou às 3 da manhã, com ventos e chuva e trovões barulhentos, queda de luz, e logo eu passei de “sentir frio” para suar uma própria tempestade particular: Os ventiladores pararam de funcionar.
            Antes disso, eu já estava um pouco insone. Depois disso, eu tive um dos mais estranhos episódios do que eu chamo de “estado de semi-vigília”, aquele momento no qual os sonhos estão passando por você rápido demais, e você ainda tenta analisá-los com sua mente desperta, consciente da sua existência sólida e depositada sobre um colchão confortável (porém quente). Talvez a palavra “tempestade” tenha puxado memórias, e eu logo comecei a pensar em “Deuses Americanos”, e sobre vários deuses, e mitos, coexistindo. Possivelmente batalhando enquanto eu tentava dormir e tinha estranhos sonhos, possivelmente enfrentando uns aos outros na tempestade. Não vou prosseguir na descrição, pois spoilers podem estar envolvidos. Mas eu tentava dormir, e só conseguia pensar em deuses, e isso foi a insônia da manhã. Além disso, sonhei uma hora exatamente que estava tentando dormir e não conseguia. Meta-sonho eu até entendo. Mas meta-insônia é demais.
            Depois de dormir pouco e mal, tomei a dose mais forte de café que consegui e fui para fazer minha prova didática. Exausto. PRIMEIRO DESAPONTAMENTO DO DIA (Já que insônia não conta muito, por fazer parte daquela penumbra entre dois dias, e por já fazer parte da minha rotina): O Edital dizia especificamente que, para a segunda fase do concurso, o candidato que falhasse em chegar com 1 hora de antecedência seria desclassificado. Simples assim... Se não chegou 1 hora antes, você é desclassificado, e eu até acho quase justo, já que há uma série de documentos a serem apresentados. Certo?
            Errado! Eu (bem como vários outros Desapontados) chego lá mais de uma hora e quinze antes do horário marcado, e me instruem a ficar do lado de fora, esperando, porque a entrada seria liberada apenas às 8 horas. Depois disso fiz a prova, vim para casa e comprei o SEGUNDO DESAPONTAMENTO DO DIA: Bib’sfihas de carne que, embora estivessem realmente muito gostosas, tiveram um reajuste de valor de 100%. Repito: De 0,49 centavos, elas pularam para 0,98! Vim para casa comento, e disse para mim mesmo: “Para desestressar, quero ver um filme bom nessa porra!”.

--- Momento Christopher Nolan de não-linearidade ---

            Era uma sexta-feira, uma outra sexta-feira à noite, porém depositada duas semanas antes do dia de hoje. Eu e meu amigo de república, Caio, estávamos indo ao mercado para comprar material para fazer um pequeno festival de comida japonesa, com a namorada dele e uns amigos. Eu estava empolgado com “Tiros em Columbine”, documentário do Michael Moore sobre a fixação estadunidense com armas. Apesar de ser tendencioso como tudo no que o Michael Moore toca, o documentário é muito bacana. Nele eu descobri que, pelo menos até 2003, Charlton Heston era o presidente da associação nacional do rifle. E pelo menos até 2003 ele tinha umas opiniões bem filhas da puta. Por conta disso, perguntei ao Caio:
             — Cara, o Charlton Heston é bom? Ele fez algo de realmente relevante que valha à pena?
            Ao que o Caio respondeu:
             — Além, claro, de “O Planeta dos Macacos”... Bem, sei lá... Eu nunca vi Soylent Green, mas parece ser bem nice.
            — Ah, sim.
            — Eu até tenho bastante vontade de ver. O triste é já saber o final, e a maior reviravolta do filme.
            — Sério?
            — Cara, é um dos spoilers mais fáceis de saber da história do cinema. É uma frase totalmente cultuada, e citadíssima.
             — Juro para você que eu nunca soube do spoiler final de Soylent Green. Mas a gente bem que poderia assistir esse filme um dia.
            Atenção para essa última frase. Uma estranha cadeia de eventos se desencadeou a partir daí, culminando com um desapontamento impressionante ao final desse conto. Voltemos para o dia de hoje.

--- De volta ao presente ---

            — Cara, vamos ver um filme?
— Pô, eu topo! Que filme?
— Ah, cara... A gente tinha pensado em Soylent Green ou Magnólia...
— Porra, Soylent Green, pode crer.
— Pois é... Antes que o spoiler dele me alcance.
Se vocês não sabem, spoilers são entidades de caos conceitual. Eles estão à espreita, manipulando conversas, manipulando a mídia e as tão-chamadas coincidências, apenas para que você tome ciência de elementos de roteiro de obras com as quais você se importa. As duas semanas de estudo intenso para o concurso do CEDERJ construíram uma muralha de produtividade, mantiveram o Spoiler de Soylent Green afastado de mim. “Hoje é meu dia de folga!”, pensei. “Melhor ver logo essa porra desse filme!”
O Caio procurou por “Green” em sua biblioteca de filmes baixados de forma estritamente legal e sem violação de copyright, e não achou. Ele ainda não havia pego o filme. O que ele achou foi um suspeito documento de PDF sobre cultivo artesanal de maconha. E ele se perguntou por que diabos isso estava no computador dele. (qualquer um que não use maconha provavelmente se poria a perguntar a razão daquilo, ou pelo menos eu me poria!). Era um manual que veio de “brinde” numa versão que ele baixou de Reefer Madness, um filme obscuro dos anos 30, feito com o intuito de mostrar os perigos dessa terrível droga (mais perigosa do que heroína e cocaína, segundo o filme; e responsável pela degradação da juventude e dos valores da música... aquilo que nós chamamos de “jazz”, sabe? uma puta degradação da música esse tal de jazz). Como o filme tem a fama de ser uma ótima comédia por conta de seus exageros e atuações forçadas, procuramos o filme. E, como ele já estava baixado, resolvemos assisti-lo ainda assim. Soylent Green ficaria para depois.

(Reefer Madness é um péssimo filme. Não vale muito nem como uma comédia de exageros. Sério mesmo, não assistam isso. A sala de cinema da minha república anda numa fase amaldiçoada, e os últimos filmes que vimos ali foram “Visitor Q”, “Pink Flamingos” e “Reefer Madness”. Reefer Madness é o menos pior. mas ele, em universo paralelo algum, é um filme bom.)

A namorada do Caio veio para cá no fim do dia. Livitchka estava de bom humor, e resolvemos todos sair em um feliz programa para assistir “Cloud Atlas” (“A Viagem”, ilustração de capa desse post). Fomos para o shopping, compramos a entrada, e ainda dava tempo de brincar um pouco na máquina de “Pump it Up!”. Eu nunca havia dançado “Pump it Up!”, sou um completo desajustado no que diz respeito a olhar para uma tela com setinhas e interpretar essas setinhas como movimentos corporais rápidos e precisos. Aliás, precisão em movimentos corporais é o que eu menos tenho, o que me rende equimoses, tropeços e cortes praticamente toda semana. Resolvi tentar dessa vez. Dançamos até cansar, e fomos para o cinema. Já em cima da hora para o filme, mas “Tudo bem! Compramos as entradas antes!”. Certo?
Errado! Cheguei lá em cima e percebi que as minhas entradas haviam caído quando puxei o cartão para comprar fichas no playground do shopping. Tarde demais para descer os 4 lances de escada do shopping labiríntico, vendo meu reflexo desesperado estampado em vitrines cheias de pessoas que riam de mim. Fora que alguém já deveria ter pego a minha entrada. E foi assim que, mesmo andando num orçamento bem fodido desde que resolvi comprar um encadernado de Sandman, eu paguei duas vezes a entrada do cinema (por sorte, ainda pago meia!).
Entramos no meio da primeira ou, talvez, segunda cena do filme. A sessão de cinema foi conturbada: Celulares tocando, pessoas falando alto, um projecionista que provavelmente foi admitido no serviço sem sequer fazer uma mísera entrevista, casais inconvenientes fazendo comentários em voz alta, e um casal de deficientes auditivos que ficaram brigando o tempo todo ao meu lado (a ponto de uma hora eu achar que o rapaz estava realmente agredindo a menina, mas sinceramente não sei dizer). Possivelmente uma das piores sessões de cinema da minha vida.
O filme segue bem até certo ponto, depois se perde numa espiral de frases new age sobre amor e vidas conectadas e reencarnação. Não esperava nada muito diferente, mas não precisava de tantas frases de efeito em clima brega. E o mais interessante é que, até o meio, as histórias estavam evoluindo muito bem, e eu estava realmente me divertindo. Num certo ponto (também uma penumbra, repousando entre a parte original e a parte batida do filme), porém, todas as profecias da minha vida ultimamente se uniram, de uma forma majestosa, quase paranóica, quase grandiosa, mística... E, certamente, muito irônica, e muito desapontadora:
No meio daquela sessão de cinema terrível, de um filme que não é ruim, mas não chega nem a ser bom, contaminada pelo ruído de pessoas inconvenientes que vão ao cinema para tornar as vidas das outras pessoas mais miseráveis, pela péssima projeção, com falhas no áudio e na troca dos rolos, e que, ainda assim, me custara o valor de duas meias-entradas... O Spoiler de Soylent Green me alcança, berrado aos quatro ventos por um dos personagens do filme. O spoiler, a porra do spoiler, que eu tinha conseguido evitar por duas semanas e que teria sido impertinente se não fosse pela péssima escolha de ver Reefer Madness.
Conclusão: Acho que vou abraçar parte de todo aquele ideal de Karma que “Cloud Atlas” tentou me passar. Para mim, especificamente, ele foi um exemplo de Karma. Eu só queria mesmo entender o pecado que gerou esse dia de hoje. Foi um dia muito, mas muito estranho!

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Escombros


O que me intriga em relação à humanidade é que somos uma espécie de símios sociais que evoluíram o suficiente sua estrutura de sociedade para que o direito de voltar a agir como outros símios seja ferrenhamente exercido e defendido pelas pessoas. “Olhem para o meu encéfalo desenvolvido. Não, sério! Olhem para ele! Cheio de curvas e giros, e massa cinzenta e massa clara. Uma proeza da seleção natural! Mas acho que eu vou afogá-lo sob um oceano antievolutivo de uísque e energético por hoje, e tentar impressionar o maior número possível de menininhas também bêbadas. O quê? Minha namorada? Quem me garante que ela não está solta por aí, fazendo a mesma coisa? Mulher não presta não, cara! Melhor aproveitar enquanto eu sou jovem!”.
A comunicação rudimentar e pós-rupestre da grande maioria das pessoas da geração que respira o poluído ar dos anos 2010 com pulmões ainda vívidos e não completamente corroídos pelo tabagismo voluntário ou por outros tipos de fumaça ou pela humanidade circundante só não é mais deprimente do que a mensagem que ela tenta expressar. E então somos bombardeados com a superficialidade alheia, temos de filtrar o que presta em meio a cascas malcheirosas de futilidade e desespero. Essa é a sociedade da informação, e essa é a informação infinita e ruidosa que escolhemos ignorar. E então as pessoas escolhem para si carreiras com as quais elas não têm a menor afinidade, baseadas na lei do “Eu tenho de fazer uma Universidade”, completada pelo parágrafo I: “que me dê uma carreira que pague bem”. E então as pessoas escolhem e traem parceiros tão vazios, rotos e socialmente atrofiados quanto eles, pelo medo de ficarem sozinhos, baseados nos critérios mais vagos que conseguem escolher. E então as pessoas compram carros novos e brilhantes para se potencializarem, e dirigem esses carros alcoolizados ou sob influência de outras substâncias, com alto-falantes gritando a música da qual são forçadas a gostar, dirigindo suas carcaças metálicas com motores de dezesseis válvulas pela luminosa auto-estrada da incompletitude. Guiam-se por um céu destituído de estrelas. Os astrolábios estão quebrados, as mentes inebriadas, e não há rumo. E então as pessoas abraçam existências vazias, e falam sobre ela de boca cheia.
Qualquer criatura inteligente forçada a caminhar ao lado de semelhantes como esses deveria ser pelo menos tão infeliz quanto Woody Allen. Esse é o nosso grande trauma, o nosso grande drama: Somos menores do que as opções. Nunca seremos grandes. Envelhecemos sem amadurecer. Somos recheados de uma fauna inquieta de sentimentos com os quais não aprendemos a lidar. Escondemos nossos verdadeiros espectros psicológicos por trás de comprimidos, ou apenas do medo de sermos diferentes de um jeito ruim. Somos crianças insinceras, e a nossa mentira não é nossa culpa: é a doença que se encista no nosso modo de vida. É o parasita a se alimentar dos reais prazeres, a larva albina da padronização. Esquecemo-nos de como é boa a chama destrutiva de nossa essência, quando utilizada em prol da cerâmica das reais ideias. E o mais interessante é que o irracional e estúpido irrompem ainda mais grotescamente numa época onde os feitos mais intrigantemente avançados da nossa espécie despontam.
Pisamos na lua há mais de quarenta anos. Enviamos sondas para Marte, e mapeamos com maior precisão nossa galáxia e nosso Universo a cada dia. Mas os verdadeiros alienígenas dormem ao nosso lado todos os dias. São os funcionários que movem os setores circundantes. São nossos amigos atordoados e tristes. São a nossa família que sequer chegamos a compreender. São os vizinhos e a atmosfera inóspita de seus gramados ou seus apartamentos. A galáxia distante de outras mentes. A incômoda e longa estrada que nos move para além de nossa zona de conforto. A estratosfera da relação interpessoal, onde comunhamos com seres desconhecidos. De que adianta descender das gerações que desvendaram o átomo se não sabemos lidar nem mesmo com a nossa própria ansiedade, com a instabilidade radioativa de nosso humor?
Somos uma tribo que nenhum antropólogo teria um real prazer em estudar que não o da vã estranheza. Somos um bando de gente sem-graça de mentes castradas, que espalham seus genes sujos e vergonhosos por aí, talvez aumentando a chance de que alguma consciência aflore nessa vasta cadeia de sistemas nervosos congelados. Escolhemos contrair doenças (venéreas ou não), pelo estranho prazer da autodestruição, mas sequer sabemos burilar esse suicídio de uma forma poética. Então apenas nos destruímos, talvez pela repulsa crescente da nossa feiúra, que deve surgir mesmo nas mais insapientes criaturas. Homo ignorans... Homo ignorans, Homo ignorans, Homo ignorans... Que a evolução confisque cada um dos que permanecerem como meros espectadores de um pós-apocalipse diário como esse. Homo ignorans. Cada um que se recusar a aceitar a injustiça de ter nascido em uma espécie de seres que deveriam mesmo buscar entender um pouco mais de si mesmos, de seus semelhantes, seus diferentes, do mundo no qual elas nasceram. E não apenas guardá-los na comodidade de um frasco de valium escapista (não entrando aqui o mérito daqueles que realmente necessitam disso), enquanto babamos nossa baba grossa e malcheirosa sobre todas as esferas da vida. Os maias estavam certos, e nós estamos mortos. Apenas mortos.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Música? Nostalgia? "We Drift Like Worried Fire!"

DISCLAIMER: Esse é o primeiro de uma série de posts inspirados nas sugestões de meus amigos do Facebook. Eu cheguei e gritei: "MANADA! Preciso de ideias para posts de blog!", e logo tive torrentes de possibilidades. Vou aproveitar a maioria delas, e tentarei fazer um post por semana a partir das sugestões já dadas. Com isso eu sinto que o blog fica interativo, orgânico, biológico e cheio de pseudópodes para vagar pelas mentes alheias. Atentem para o fato de que o post propriamente dito já começa com uma puta frase de velho. :D


Lembro-me de quando eu tinha mais ou menos uns 17~18 anos e comecei a me desanimar fortemente com a era em que estamos vivendo, no que diz respeito à sua produção musical. Eu olhava para os lados e só o que me esmagava eram gangsta raps, músicas coloridas, sertanejos universitários e (a melhor parte) as bandinhas indie que a Mtv chamava de "A salvação do Rock", e que nada mais eram do que clones ideológicos de Strokes e Arctic Monkeys (bandas das quais eu já não gostava nem um pouco, e pelas quais passei a nutrir um ódio realmente demoníaco). Eu sabia que existiam coisas boas (garimpadas com glória) sendo produzidas, mas acho que estava naquela beirada do precipício entre a adolescência e a idade adulta, e queria me revoltar com alguma coisa pela última vez. Enquanto eu ainda tinha a velha desculpa dos hormônios e toda a mimimice de sempre.

Foi então que eu tomei a genial decisão de ficar ouvindo apenas rock and roll dos anos 60/70, e música clássica, e ficar me fechando cada vez mais para o que vem dos desgraçados, terríveis, pavorosos e doloridos anos 80 para frente. Eu não poderia estar mais equivocado ao tomar essa decisão. E fico feliz de não tê-la mantido por muito tempo.

(quase me tornei um clone do Lou Reed. #SoQueNao)

Tão logo eu me animei para ouvir o In Rainbows, do Radiohead, e os primeiros álbuns do The Mars Volta, e fui tentar explorar a discografia do Primus além do "Rhinoplasty" e do "Antipop" eu descobri o quanto os meus contemporâneos poderiam me trazer boas coisas. Eu não precisava viver me lamentando de nunca poder ir a um show do Genesis com o Peter Gabriel vestido de Raposa e o Phill Collins de boca calada destruindo a bateria como um possuído pelo demônio. Ao invés disso, eu poderia aceitar o fato de que, sim, nós estamos em uma era muito, mas MUITO positiva para os apreciadores de música!

(e obviamente não é por causa deste rapaz)

"Eu vi as melhores mentes da minha geração(...)", e isso significa que eu tive a oportunidade de descobrir que existe gente como BadBadNotGood produzindo um jazz de qualidade que, embora não seja a mesma coisa que ouvir Miles Davis, me enche de orgulho. Principalmente quando leio o disclaimer no álbum deles de que "ninguém com mais de 21 anos esteve envolvido na produção deste álbum". E se eu quero algo que me faça lembrar Miles Davis, eu posso ouvir outro cara mais jovem do que eu, que é o genial Austin Peralta, que destrói o mundo não apenas com seu piano doentio-elétrico-alucinado-virtuoso-risonho, mas com suas composições de altíssima qualidade, que tanto me fazem lembrar uma sucessão ideológica do pai do Fusion. E o melhor de tudo: Se eu quero algo que me faça lembrar Miles Davis, eu POSSO ouvir Miles Davis. E de graça. E de forma legal.


Isso porque temos, hoje em dia, um acesso praticamente ilimitado a música (só não queira tentar baixar a discografia do Screamin' Jay Hawkins. mas dá para conseguir alguns álbuns sem problema, ou comprar a porra toda em mp3). Ano passado fui ao SWU, e lá pude ter acesso aos shows do Primus, Alice in Chains, Sonic Youth e Faith no More. Esse ano, fui ao show do Focus (banda pela qual sou apaixonado desde que eu era uma criancinha que não entendia porra nenhuma de porra nenhuma). Ainda esse ano, pretendo ir ao show do Flogging Molly, do Otto, e de quem mais vier. Algumas bandas boas da "antiguidade" (afinal de contas, AiC é dos anos 1990) ainda estão por aqui. E a obra das que não estão mais por aqui ainda se encontra pelo mundo afora, disponível para influenciar nossas boas mentes. Viver como eu estava vivendo, amaldiçoando os anos 2000 e seu 50 Cent era uma total ignorância. E estou guardando o trunfo maior para o final: Vamos falar sobre Post-Rock, e sobre quatro bandas que só fui conhecer por causa (acreditem) do Facebook?

"Thee Silver Mount Zion Memorial Orchestra". Ainda vou a um show desses caras, mesmo que tenha de viajar pro Canadá para tanto.

Em 2007 mesmo (eu ainda não estava naquela revolta infantilóide toda), um amigo de infância chamado Pablo Higuchi (que o ITA o tenha) mostrou-me uma música. Era de uma banda chamada Godspeed You! Black Emperor, e constava na trilha sonora do filme "O Extermínio", do Danny Boyle. Se não me engano, eu assisti aO Extermínio na casa dele, inclusive. Enfim, o nome da música era East Hastings, e ela era algo meio orquestrado, com blues, com ruído, com cinemática... Realmente parecia um filme. Parecia um filme pós-apocalíptico à parte, encerrado em si mesmo, na música, e, por mais que a canção coubesse bem no clima de O Extermínio, dava para ver que ela era um Universo à parte. Só que, à época, eu não percebi isso (genious).

Cheguei a procurar alguma coisa do Godspeed na época. Soube que eles eram considerados Post-Rock, mas não entendi muito bem o que era o estilo (sinceramente, até hoje não consigo explicar a diferença do Post-Rock para outros tipos de rock progressivo, apesar de conseguir perceber que o gênero tem uma identidade própria forte, apesar de difícil de explicar). Peguei para ouvir um álbum deles chamado "Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven", mas não consegui dar muita atenção à época. Estava em uma fase musical distinta, ouvindo Porcupine Tree adoidado e alguma Nação Zumbi, e algum Kraftwerk. O álbum não desceu mal, mas também não me saltou aos ouvidos. Fui redescobrir o Godspeed dois anos depois, mais ou menos, através de uma outra banda de Post-Rock, God is an Astronaut, apresentada a mim pelo meu queridíssimo Matheus Calvelli. O GIAA me chamou atenção, e me lançou em direção a um mundo de Godspeed, Mogwai, Explosions in the Sky, Sigur Rós e, por fim, a minha preferida, que é o Silver Mt. Zion da foto acima. O post-rock do fim dos anos 1990, início dos 2000 serve uma refeição musical muito decente, que me enche de felicidade por estar vivo, respirando e escutando música nessa era digital. Se eu vivesse nos anos 60/70, poderia ir a um show dos Doors (ou não, porque eles deviam ser carinhos, e nunca vieram ao Brasil), mas jamais teria a oportunidade de correr escutando "There is a Light", que dirá em um mp3 player. Da mesma forma, eu posso escrever alguns contos ouvindo Miles Davis e Jimmy Smith e, ainda assim, utilizar Post-Rock para gerar a atmosfera propícia para trabalhar no meu livro de ficção científica irônica.

Agora, a última história, o último parágrafo, e aí podemos voltar todos para nossas casas. No início desse ano estava Derpin' Around no Facebook e vejo um ad lateral: "Fã de 'Mogwai' e 'Godspeed You! Black Emperor'? Confira aqui o som do 'Labirinto', banda de pós-rock paulista.". Acho que vocês concordam que esse não é um ad ordinário, uma vez que ele não me oferecia nem botox, nem emagrecimento, nem rodízios de gordura tostada. Pus para tocar o som da banda e... BANG! Tomei um tiro direto nas zonas de prazer musical do meu cérebro. Juro que a primeira coisa que eu pensei foi "Essa porra não pode ser de verdade!". E isso foram só as primeiras linhas de guitarra acompanhada pelo cello. Me tornei um fã confesso e dedicado do Labirinto, comprei os dois álbuns, vou comprar a camiseta, e divulgo o som dos caras sempre que tenho oportunidade. (Se você está lendo isso e produz eventos no Rio de Janeiro, ou conhece quem produza, peça para que ALGUÉM promova um show do Labirinto aqui, pelamoràvida!). Depois de curtir o Labirinto, o facebook me trouxe também o Kalouv, uma banda de Recife ainda não-tão-madura quanto o Labirinto (até porque eles começaram há bem menos tempo), mas isso não é, de forma alguma, um problema. O Kalouv produz um som de qualidade muito nice, e que mistura um pós-rock "de várzea" com algumas toadas de jazz e algo até mesmo de praiano, extremamente tropical (não me arrisco a dizer "Surf-Music" porque não tem grandes tons de Dick Dale por aqui não). Anteontem, um ad similar ao que me levou ao Labirinto me chamou atenção: "Fã de Post-Rock, Jazz e Rock Progressivo? Ouça aqui o primeiro álbum do sexteto carioca 'Deus Nuvem'", ou alguma coisa assim. Novamente, quando pus para tocar, tomei um tiro no psicológico. Vale MUITO a pena ouvir o álbum do sexteto carioca "Deus Nuvem". Detalhe que as três bandas para as quais eu postei o link até agora têm seu trabalho totalmente gratuito disponibilizado em seus sites. O mesmo vale para a Mutuca Bacana, que me foi apresentada pelo meu caro Lianto Segreto, amigo de infância do meu irmão! Essa é a que menos ouvi até agora, mas gostei bastante do resultado. Apesar de o nome parecer com essa linha de músicas bacanudinhas de gente bacanudinha, no estilo de Cachorro Grande e Mop-Top, mas está muito mais próximo dos Mutantes do que a mente ousa crer. O que não quer dizer, vejam bem, que a banda não é original! Muito pelo contrário, eles têm um som com bastante identidade.

Então é isso, gente. Fica a reflexão final de que... Não, não irei nunca a um show do Led Zeppelin, e nem você irá! A não ser que arranjemos um DeLorean com um bom capacitor de fluxo. Mas podemos ir a festivais como o SWU 2010 e ouvir o Mars Volta (tecnicamente, para tal, precisaremos do DeLorean também). Podemos ser testemunhas oculares do lançamento de outras bandas, podemos venerar o Deus Nuvem e o Labirinto, podemos ouvir o álbum novo do Godspeed You! Black Emperor que acaba de vazar na internet. Lamentar a "perda" das grandes bandas que vieram no passado distante, embora válido como qualquer lamento, é meio perda de tempo. Nunca iremos a um show do Led Zeppelin, mas podemos assistir "The Song Remains the Same" com o volume no máximo, e dá até para abrir uma cerveja enquanto assiste. É a mesma coisa? Nem fodendo por nada!!! Mas pelo menos temos esse paliativo. A mensagem já foi passada e reforçada. Agora eu vou lá.

(Agradeço a meu amigo Júlio Victor pela ideia do Post. Confiram o projeto musical dele de noise-alternativo fodão e levemente perturbador, o Rabbithole. Fiquem agora com o álbum novo do Godspeed que mencionei acima. Foi o meu presente de aniversário do Caos. Já ouvi pelo menos 7 vezes desde ontem :) )