Eu preciso de uma bolsa nova.
A que carrego comigo está rasgada demais, surrada demais,
Sinto-a suja pressionada contra minhas roupas,
E espaçosa, e desconfortável.
Eu preciso de uma bolsa nova na qual eu possa guardar minhas memórias.
Não, não venha me dizer sobre "Utilizar até o fim". Esse é o fim.
Já não posso mais fingir que essa mochila aguenta sequer mais um dia,
Sem uma mudança radical em sua forma, e em sua organização interna.
Essa é uma bolsa morta.
Suas alças já não aguentam mais o próprio peso e ela me escapa do controle toda hora.
Continuar exibindo-a por aí, com um sorriso fingido, enquanto meus dias escapam por seus rasgos
[de tecido puído seria irresponsável.
Eu preciso de uma bolsa nova!
Preciso de uma que seja menor e mais calma.
Uma que não esbarre tão dolorosamente naqueles à minha volta.
Uma que não comprima aquilo que há em mim, que não torne tudo em espinhos voltados para todos [os lados.
"Desculpe, caro amigo!"
"Foi mal te ferir, menina!"
"É essa minha bolsa velha, cheia de remendos. Ela anda pesada demais ultimamente."
"O ônibus sacolejou, eu não consigo ficar em pé direito com isso nas costas!"
Preciso guardar minha alma em uma bolsa diferente, vocês veem...
Que não mais soterre meus problemas em um fundo falso de escapismo,
Onde caiba minha mente inteira, minha rotina inteira, e ainda haja alguma folga.
Preciso de uma bolsa onde caiba um instrumento musical,
Alguns livros, talvez,
E que proteja melhor meus frascos de tormenta.
Algo de tecido não inflamável,
Com zíperes que funcionem melhor,
Algo que não questione tanto o porquê de encerrar em si coisas pesadas e amargas.
Uma bolsa com estampa mais serena.
Onde caiba um tanto de perdão para mim e para os outros.
Que não tenha um compartimento para tanta autoflagelação, eu não preciso tanto dela assim.
Algo que não agrave minha escoliose,
E que não carregue em si o logotipo
"Samsara, LTDA"
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
domingo, 16 de novembro de 2014
[REFLEXÃO INTIMISTA] Cromossomos (ou metade deles)
Eu tenho uma série de livros começados que eu nunca terminei. Alguns deles, inclusive, realmente compõem "séries de livros", como é o caso de Schrödinger, the Cat. Terceira parte de uma trilogia vaga (conectada apenas por um conceito, e pequenos elementos, mas composta de três histórias independentes), Schrödinger está em sua reta final. Há muito tempo. E outro dia eu realmente avancei algumas páginas, e novas ideias para o final do romance sci-fi têm brotado aqui e ali no meu cérebro ultimamente. Hoje, quando cheguei de viagem de Campinas (casa do meu irmão), pensei em trabalhar um tanto na direção de colocar um ponto final no Schrödinger logo!
Ao invés disso, eu acabo de colocar o "Dark Side of the Moon" para tocar, e vim escrever esse texto. Ele não tem tanto a ver com ficção científica. Ou talvez tenha.
Contextualizando, amanhã meu pai faz 62 anos, e hoje viemos de viagem conversando, ouvindo música e dividindo pequenos silêncios, através de quatro horas e meia de estrada e pedágios obscenos. Minha mãe ficou por Campinas para ficar um tempo a mais com minha sobrinha, então amanhã será um dia só meu com o meu pai. Depois de tomar um banho hoje, e lavar toda aquela Nova Dutra de mim, o pai estava me esperando com uma cerveja e um pouco de pernil acebolado. Foi nesse contexto que tivemos o que creio ter sido uma das mais emocionantes conversas da minha vida, um excelente prelúdio para meu dia dourado de amanhã. O texto em si começa agora:
De Guerrillero a Bom Velhinho
Eu sempre conversei mais com a minha mãe. O pai gosta de ressaltar o quanto ele é "ruim com as palavras", enquanto minha mãe, psicóloga amadora, sempre faz mais questão de nos perfurar a crosta de aparências, e prospectar a alma até que falemos de tudo. O pai, enquanto isso, observa de longe, com um sorriso no rosto e, às vezes, com música nos ouvidos. À parte isso, minha memória mais antiga é de um simbólico momento no qual, acordando no meio da noite choroso, eu fui acolhido pelas mãos grandalhonas do pai, que me embalou no colo, cantando uma música qualquer, e me botou de volta no berço. Essa é a minha primeira memória de conforto, o ato mais antigo de zelo e amor que eu me lembro de ter tido, e o protagonista disso é o meu pai.
Algum tempo depois disso, o pai deu a mim meu gosto musical, deglutido e servido em discos de vinil (alguns dos quais eu retenho até hoje) e CD's tocando no carro. Orgulho-me de não conhecer um mundo sem rock progressivo, sem Kraftwerk, e sem o Dark Side of The Moon tocando nos churrascos de família. E tenho o orgulho, hoje, de trocar sons com o meu pai, de conversar com ele na língua dele no que diz respeito a música. E daí vem tantas outras coisas: Sempre fascinado pelo mundo natural e pela ciência, foi meu pai que me eletrizou os olhos com o brilho que faz de mim hoje um aspirante a cientista. Todos aqueles documentários e revistas sobre o funcionamento das formas de vida e do Universo são a base para o biólogo que eu quero me tornar. Foi ele que alimentou o meu "bichinho da escrita", com livros e gibis quando eu era criança, com filmes de ficção científica, e mesmo com pequenas reflexões escritas de próprio punho a respeito da vida. E lembro-me de, bem pequeno, espelhar-me no seu jeito trovador de escrever pequenos bilhetes e sonetos para minha mãe.
Foi com o meu pai que eu aprendi a ser eu mesmo. Foi inspirado em sua retidão e ética pessoais que eu desenvolvi meu jeito "quadrado" de encarar certo e errado. E é inspirado em sua figura paterna, sempre sólida, sempre determinada ao melhor e mais dourado de si, que eu desenho o pai que eu quero ser um dia. O que eu mais gosto é da forma como ele transpira leveza, mesmo sendo um homem feito de preocupações a respeito do serviço, da vida e de nós. "Meu filho, o que eu faço é trabalhar e vir para casa ficar com sua mãe. Eu tenho o meu cigarrinho e a minha cervejinha, e essas são as minhas diversões. No mais, foda-se se me condenam por isso, eu tenho orgulho de fazer meu trabalho, e de curtir minhas alegrias, e de curtir vocês, que são o melhor que eu deixei no mundo."
Porra, pai... Você vem me falar de orgulho? Você, a pessoa mais ciente de si que eu conheço, mais consciente de suas limitações, mais exercente do "caminho do meio"? Eu é que me orgulho de ser veículo de metade dos seus genes, misturados com a metade do único ser humano que empata com você no conteúdo metafórico de ouro. E de ter aprendido com vocês dois a ser eu mesmo.
Hoje, em um momento de reflexão e insegurança (eu ando tendo MUITOS desses), perguntei ao meu pai se ele já teve medo de suas escolhas, e quando ele parou de senti-lo. Ele me disse que não, que sempre foi impulsionando a vida com calma, sem se projetar muito para o futuro. "Eu perdi meu pai muito cedo, e fiquei sem pai em um momento muito importante da minha vida", disse ele. "E minha mãe trabalhava, então eu me virei sozinho. A vida sempre foi muito instável, então eu percebi que não valia tanto a pena ficar se preocupando com daí a dez anos. Acho que pode até ser bom isso... Mas eu nunca fiz muito."
Era o que eu precisava, no momento. Aquele era eu, despertando choroso no que São João da Cruz chamou de "A Noite Sombria da Alma". E aquele era meu pai, me acolhendo e me cantando uma canção de novo, dizendo que tudo vai ficar bem.
Ao contrário do meu pai, eu não fiquei órfão cedo. E é pensando nisso, ouvindo a música que meu pai me deu, que eu escrevo essa homenagem a ele. Porque por mais que ele tenha quase partido algumas vezes, fruto de uma saúde tão instável quanto tudo na vida, ele ficou aqui. E, graças a isso, hoje ele me deu mais uma demonstração de como sua sabedoria simples e seu "budismo espontâneo" podem me guiar ainda hoje.
Nunca estarei pronto de tudo para perder esse homem, com todas as suas falhas e suas virtudes, e o seu cigarrinho e sua cervejinha. Então eu escrevo essa pequena ode, e torço para que demore muito até que eu tenha de cantar junto com o Ginsberg:
terça-feira, 11 de novembro de 2014
[POEMA] Matéria Escura
A noite se desbrava com a estrela
solitária de um cigarro.
Meus passos não ecoam na calçada.
Apenas a minha mente é ampla e vazia o bastante.
Existe um calor à solta. E eu nem
sequer me importo mais em caçá-lo,
Em extingui-lo com uma chama
fria, com uma água morta.
Hoje é um dia de alegrias
vulgares,
De revoadas tristes.
Não sinto falta da cidade que se
alicerçou na minha pele e se entrançou nos cabelos.
A minha música ficou para trás, e
o silêncio já não soa estranho.
Não choro mais minha cincuncisão
da alma,
Minha circunscrição afoita.
Não choro mais o sangue dos
valentes, que se perderam nos meus olhos parvos.
Eu vejo a vida em lentes
embaçadas
E não me importa em nada.
Porque de um palácio de trinares
de ave,
Eu escolhi dançar entre os
morcegos.
Minhas mãos têm queimaduras do
outrora,
E a memória já se esconde aos
ventos.
Foi-se o apetite de engolir o
mundo, apenas o encaro em sua vitrine infecta.
Ontem havia uma floresta, hoje o
nada.
Não lamento.
Entrego ao nada um presente de
parelhas brancas
desencaixadas
segunda-feira, 24 de junho de 2013
Palidez - Parte 4
Não houve um décimo desmaio. Ao longo dos dias, minha saúde foi
melhorando, e agora eu já consigo andar, apesar de ainda estar sentindo uma dor
escrota em boa parte do meu corpo. Agora que não estou mais debilitado, o
homem-pálido encontra-se mais distante. Eu o agradeci imensamente por ter salvo
a minha vida, disse que ele é um bom homem, quase um anjo, e esse monte de
merdas que eu nunca falaria por ninguém se não me sentisse moralmente
obrigado... E ele mal esboçou reação. Às vezes passo pela porta de seu quarto
(um cômodo espaçoso da Base-Piloto, próximo ao ambulatório onde eu repouso), e
vejo-o fitando uma parede, ou dormindo, ou mesmo sentado como se meditasse.
Deve ser uma prática comum às Colônias, que ainda têm um resquício de
espiritualidade não esmagada pelo ápice laico do desenvolvimento. De qualquer
forma, o médico está desenvolvendo um comportamento estranho, e algo em toda
essa tensão me assusta e contamina.
Ele mal tem falado.
Apenas monitora meu estado de saúde e volta para o quarto, silencioso como um
inseto. Ele tem comido muito pouco também. Sinto que eu deveria estar fazendo
algo por sua saúde, mas o sujeito trata de me tranquilizar sempre que eu
pergunto alguma coisa. Frente a todos esses indícios, fica muito difícil
segurar desconfianças antigas. Elas também estão de volta ao labirinto dos
saudáveis, e também já conseguem andar. As dúvidas estão organizando passeatas
frente aos meus olhos: Existe algo de errado com esse médico.
Hoje cedo eu me lembrei
que tenho de enviar o primeiro relatório para a base terráquea da corporação.
Esses relatórios são uma completa merda, a sorte é que a restrição energética
para envio de mensagens pela cadeia de satélites faz com que eu só tenha de
enviar um relatório por mês. Passei pelo quarto do doutor, e perguntei se ele
queria acompanhar o envio, já que ele se interessava tanto pela operação da
base. Ele olhou para mim de forma apática, e sibilou um “não” desanimado. Se
houve um “obrigado” ao final desse ruído, eu já não sei. Foda-se esse cara
estranho! Eu tenho obrigações a realizar.
Sento-me em frente ao computador, apenas para
constatar que o relatório já havia sido enviado, três dias atrás. Abrindo a
cópia salva, deparo-me com um documento extremamente completo, que deve ter
enchido de orgulho os caras das maletas elegantes. “A Base-Piloto já está
praticamente toda funcional, e o planeta possui ótimas condições.”, diz o
resumo do relatório. Um corpo de texto extremamente bem redigido dá os detalhes
de minha doença, de meu tratamento (com a utilização dos módulos de
auto-cirurgia, um detalhe bem interessante), e ressalta a importância de a
próxima equipe ser completa, com um time de médicos e biólogos para um melhor
estudo da biodiversidade local, e da doença em questão. Sobre esse assunto, o
relatório recomenda a utilização de máscaras especiais, para evitar
contaminações futuras. Eu não me lembro de...
Minha cadeira é bruscamente virada para trás.
Olhando para mim, com olhos mortos e ressequidos, o homem-pálido tomba sobre
meu peito. É quando eu tento me levantar para socorrê-lo que percebo um detalhe
incômodo: Sua máscara fincou-se no meu abdômen, mas eu sequer sinto dor.
Empurro o médico para longe de mim, e a máscara fica cravada na minha barriga.
Caralho! O que está acontecendo? Eu não consigo me levantar! É mais uma
daquelas alucinações? Mas eu não tenho febre há temp...
— Essa é a hora em que você se desaponta, não é
mesmo? — Sua voz está ainda pior agora. Ela adquiriu uma qualidade de
gargarejo, um ruído constante e nojento. O homem-pálido apoia-se numa cadeira e
faz força para levantar-se do chão, despejando seu corpo magro e estranho sobre
a cadeira. Uma vez esparramado pateticamente sobre a cadeira, ele também parece
não conseguir se levantar. — “Você é um homem bom, cara!”... Acho que o seu
anjo se foi, garoto!
A boca dele... Se antes havia uma desconfiança,
agora eu estou cem por cento certo: O homem-pálido pode ser qualquer coisa,
desde que essa coisa seja não-humana. A máscara era um envoltório que fazia
parte do corpo dele, como um bico. A coisa mole e pegajosa que havia por baixo
daquela “concha” não se assemelha nada a uma boca humana. Volto a tentar
arrancar a máscara escura do meu abdômen. Nada! Não tenho essa força, talvez
nunca tenha. Talvez nunca tenha novamente.
— Não arranque meu ovopositor, seu merda! Eu
ainda não terminei com você... Quer dizer, meus meninos ainda nem começaram. —
Ele tosse, e algo escuro goteja e borrifa-se, manchando a face do ar, transcrevendo
a tosse em cores indistinguíveis. — É, eu mandei o relatório por você. Mas não
é porque eu sou “um homem bom” ou posso ser comparado a um anjo guardião,
garoto... Foi por uma pura questão de biologia. Por esse mesmo motivo eu gastei
tanto tempo de vida brincando de picotar e salvar você. De fato, eu vim de uma
das colônias humanas, onde o meu povo fez um certo estrago no seu pessoal.
Vocês são bons hospedeiros. Vocês têm uma carne nutritiva, e vivem em grupos
grandes. Esse negócio de “cidade” ajuda bastante no nosso ciclo de vida, sabia?
O “ovopositor” cai. Três esferinhas escuras
estão depositadas lá dentro, mas os meus braços nem se movem mais para tentar
tirá-las (a dor propriamente dita já me deixou há um bom tempo. ela foi
substituída por um formigamento quase completo, uma clara noção de inexistência
de tudo abaixo do pescoço. tem algum químico pesado nessa máscara natural do
caralho). Tento xingá-lo de “parasita filho de uma puta”, mas apenas parte da
palavra “parasita” chega, de fato, ao salloon sonoro dos insultos.
— Não, não, rapaz... Parasita, não...
Parasitóide! Você sabe o que isso significa?
Lembro-me da palavra, mas o conceito foge-me do
alcance rotineiro da memória.
— Significa que, quando esses ovos eclodirem,
as minhas seis larvas vão te devorar por dentro, lentamente, saboreando a
nuance de cada órgão, de cada tecido, cada líquido, cada célula... Até você
morrer. Parasita era esse fungo escroto! Além de roubar um pouco dos seus
músculos, essas porrinhas resolveram roubar bastante do meu tempo. Um pouco
mais de demora e eu poderia morrer antes de conseguir colocar meus ovos em ti.
Mas... Como tudo ia dar errado de qualquer forma, se eu fizesse meu ninho antes
de curar você, não é verdade? Acho que valeu a pena... É, valeu a pena sim.
Ele tosse um pouco mais, e afunda na cadeira.
Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus
músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
— E agora, eu morro. Bons sonhos, garoto!
Ele pega os livros de programação e deposita
sobre o colo, possivelmente para que suas larvas aprendam alguma coisa depois
de sua primeira refeição. Um pai preocupado com a educação de seus filhos.
Tomara que eles, ao menos, enviem os meus malditos relatórios. Os velhos olhos
da criatura param em um ponto fixo de um nada difuso e distante, e ele morre.
Morre, com sangue (ou o análogo de sangue que mantém vivos os outros de sua
espécie) gotejando pela boca amolecida e levemente dilacerada pela ovoposição.
Morre sangrando pela boca, sentado, olhando para além do que se pode tocar.
Morre como eu mesmo morrerei em alguns dias. Não consigo sentir minhas pernas,
mas sei que elas já começam a doer. Sempre começa pelas pernas: Logo, eu sei, a
febre estará de volta. E, com ela, vêm os adoráveis delírios de sempre.
Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.
FIM
Palidez - Parte 3
Ainda estão tentando classificar e nomear a espécie causadora disso que
eu estou sentindo. Para traçar um paralelo com o que temos na Terra, ela seria
um fungo, e eu fiquei doente exatamente por ter aspirado os esporos desse
fungo. Os sintomas são sonolência, tosse, febre alta, inflamação sistêmica,
possíveis alucinações por conta da febre, e perda de força e controle dos
músculos. E o motivo por trás disso é um tanto mais obscuro do que eu gostaria
de saber. O homem-pálido me contou tudo antes de fazer a incisão no meu rosto,
para a raspagem e o tratamento com antibiótico.
— Dos pulmões eles
passam para os músculos através da circulação. Alguns esporos acabam ficando no
pulmão, e com isso a dispersão fica maior, eles infectam hospedeiros próximos
pelo ar, com a tosse. Não é o caso dos seus, é claro, porque eu estou de
máscara. Basicamente — nesse ponto, ele me anestesiou o rosto. A agulha é quase
mais dolorida do que o fungo, e o anestésico em si parece uma dose de morfina
diluída em soda cáustica. — eles procuram células com capacidade de contração.
Por isso eles param nos músculos.
Com o material da sala
de auto-cirurgia, ele prepara o bisturi, os antissépticos, a tesoura e o
conjunto de fórceps. Tento não ser tragado para a mente atemporal de um
torturado na Idade Média. Metade de mim ouve o que o médico tem a dizer. A
outra metade está sendo humilhada, mutilada e estuprada por Cruzados, que
acreditam que eu não tenho alma, e que minha crença e minhas cimitarras e a
areia entre meus cabelos e barba fazem de mim um ser impuro e imundo.
— Seus músculos agora
estão infestados por uma forma especializada desse fungo. O que ele faz é
sequestrar as fibras musculares para adquirir mobilidade. Se você vir uma
dessas grandes criaturas musculosas por aqui, talvez tenha a chance de ver as
fístulas em sua pele, por onde as fibras musculares infectadas eventualmente
escapam. — Seus dedos frios afastam minha pele. São frios o bastante para
subverter a barreira anti-sensitiva do anestésico. Começam as lentas e precisas
incisões na carne infecta. — A ideia é que essas fibras migrem para regiões
mais altas e áridas, onde o calor induz uma nova diferenciação celular: Sobre o
tapete de músculos do hospedeiro, crescem corpos de frutificação, que trocarão
algo parecido com material genético (não em composição, é claro), formando
novos esporos, que explodirão no ar e serão carregados pelo vento. É um ciclo
de vida fascinante!
O fórceps agarra o músculo, que se debate feito
um parasita intestinal surpreendido. Minha visão periférica observa enquanto
aquela tripa empalidecida se contrai, tentando escapar de seu carrasco
metálico, a conduzi-lo para sua condenada incineração em um jarro de
bioplástico. Minha visão periférica também observa, em paralelo, enquanto um
dos homens ostentando cruzes vermelhas no peito ateia fogo sobre uma pira de
lenha. A urina deles toca meu rosto e fere meus olhos. Ela também é fria.
...
Meus momentos de lucidez têm sido mais
frequentes agora. Meus músculos doem ainda mais, por conta das inúmeras
cirurgias, mas o antibiótico está funcionando muito bem, e eu estou
progredindo. A tosse ainda não foi embora, mas o homem pálido crê ser apenas o
tecido inflamado. Eu já sinto o gosto da comida (o que não é necessariamente
agradável), e minha febre tem estado mais controlada. Quando não está
arrancando fibras musculares de mim, o médico lê alguma coisa, ou explora um
pouco a Base-Piloto a passos inquietos. Às vezes eu ainda alucino, e vejo gatos
se escondendo no escuro, ou mesmo as paredes derretendo, ou cobertas por larvas.
Minha mente tem sido visitada pelos dois Engenheiros de Software que sucumbiram
antes de mim. Existe um mural com as fotos deles no salão principal da empresa.
Não importa o que eles sussurrem às minhas orelhas febris, eu não pretendo ir
atrás de uma homenagem similar.
Agora que meu cérebro
está funcionando um pouco melhor, volto a me perguntar onde estaria o resto da
equipe do homem-pálido, e porque eles arriscariam enviar exatamente o médico na
missão de reconhecimento, para investigar uma possível presença humana na
superfície de um planeta que tem esse tipo de merda no ar. Mas se ele estivesse
inventando essa história, de onde veio essa porra desse cara, e por que ele
estaria me ajudando? Pode ser apenas a paranóia voltando a atacar, uma adaga movendo-se
nas sombras, a taquicardia dolorida, ainda bem que eles não chegaram ao meu
coração, ao meu cérebro, que está acontecendo comigo, com o meu cérebro? Que
porras de luzes são essas, e essas palavras, e... Silêncio.
Tudo é silêncio.
Eu sei que tenho de
continuar cavando. A terra é muito vermelha e esponjosa, mas ela é macia. É
divertido observar que, quando eu cravo a metálica pá, a terra sai em nacos
sólidos. Ela não esfarela, ou cai na forma de lama comum. Existe uma umidade
também, um líquido espesso que verte da terra revirada. Água fria chove sobre
mim, mas eu sei que tenho de continuar cavando. De qualquer forma, é
confortável estar aqui, cavando meu lugar, minha casa, minha toca, em meio a
essa terra rubra e esponjosa. Quando percebo que cavei o suficiente, largo a pá
de lado. Não precisarei dela agora, e nem teria como usá-la, se necessitasse. Sorrio.
Minha cabeça explode em uma névoa branca de esporos férteis, que chovem como
gotículas macabras sobre a terra rubra que eu cavei. Meu antigo corpo cai e
definha sobre minha nova toca muscular. A terra começa a se mexer agora,
agitar-se freneticamente, movida pelos meus muitos filhos, que tem pressa.
Pequenas tripas vermelhas e trêmulas tomam a paisagem, e eu estou dentro de
todas elas.
— Acorde! Acorde! — A
voz dele perde a palidez. Ela está desesperada agora, e o desespero traz cores
de um espectro próprio. Em um suporte de metal, uma bolsa com um líquido
translúcido, emitindo um prolongamento tentacular até uma das minhas veias.
Penso ver peixinhos ilusórios descendo pelo tubo transparente, mas logo retomo
a noção das coisas.
Digo ao homem-pálido
que ele não é humano. Sua aparência é quase convincente, mas eu sei que ele não
é humano. Ele não se move como um, ele não respira ou fala como um. Não é que
eu não esteja grato por ele estar salvando a minha vida, eu só queria entender
o que ele é, e o porquê de ele estar me salvando.
— Você teve uma
convulsão, rapaz. Sua mente está desorientada, você está alucinando.
É claro que ele é
humano, ou não se pareceria tanto com um. Ele senta-se ao meu lado, como um ser
humano, e começa a me contar histórias, como um ser humano, para tentar me
acalmar. Fala de seu planeta-natal, sobre como as colônias ainda têm o estigma
do colonialismo. Ele faz uma piada sobre a sensação que ele tem de que deveria
estar fazendo um relatório sobre absolutamente qualquer coisa, para enviar à
Terra no final do mês. É assustador ouvir uma forma de vida inteligente
descrevendo um “planeta-natal”. Mas se ele não fosse um ser humano, ele
contaria piadas engraçadas. Eu estou mesmo bem fodido. Não consigo responder
muita coisa, nem fingir rir do que ele tem a dizer. Às vezes eu gostaria de ser
viciado em nicotina. Só para poder sentir a vontade de fumar quando não posso.
Ele fala sobre as
religiões de povos alienígenas que ele já estudou. Fala sobre estranhos deuses
representados e venerados na forma de teoremas e equações do quarto grau. Fala
sobre linguagens baseadas apenas em matemática, e sobre o brilho quente de sóis
invisíveis nas bordas do sistema solar. Fala sobre mecanismos de viagem
baseados apenas em dobras de espaço-tempo, e sobre a morte aprisionada em um
Horizonte de Evento. Esse cara está me salvando, e mantendo crua a parte da
minha consciência que ainda não fritou nas chamas metabólicas da febre. Então,
ele diz que talvez eu devesse dormir, e pergunta se eu não teria algum material
de programação e operação de software para que ele pudesse ler enquanto toma
conta de mim.
— Sempre me interessei
um tanto por isso, mas nunca procurei ler a respeito de fato.
Aponto para um leitor
digital sobre uma mesa, e meus olhos cerram-se sozinhos.
...
— A sua sorte é que os nossos músculos são
frágeis demais. — Entreouço, em meio ao abafado ruído da anestesia. — Nós
evoluímos em planetas de gravidade menor, nossos sistemas muscular e ósseo não
são fortes como os dos análogos de animais que vivem por aqui. Por conta disso,
sua infecção é quase abortiva, eles não conseguem sair, e o espalhamento do
microrganismo pelo seu corpo é bem menor. Em outras palavras, rapaz, você é
fraco demais para essa doença.
De fato, uma puta
sorte. Ele percebe que meus olhos discordam dele, silenciosamente. A anestesia
foi quase geral, dessa vez, e não sei se eu consigo falar alguma coisa. O
homem-pálido olha para mim, e parece rir sob sua máscara negra.
— Você tem uma esposa
lá na Terra?
Uma esposa... Eu tinha
uma esposa, em uma praia artificial, longe daqui. Nós éramos felizes, desde o
início. Mas isso foi antes. Antes da seca areia do tempo e da febre escoriar a
pele da minha esperança e me deixar aqui. Fotos de minha esposa começam a se
desprender do teto da sala de cirurgia e a cair sobre mim. Sorrisos felizes,
fotos de casamento, ensaios sensuais, fotos de quando éramos crianças, fotos
eróticas, fotos que jamais foram batidas, exceto na memória, no sonho, impressas
na matéria-prima das suposições, dos desejos, dos medos. Imagens me soterrando
aos poucos, enquanto eu fico impedido de responder ao homem-pálido. Não pelo
analgésico, e isso é o mais irônico... Mas pelo efeito que a própria pergunta
causa em mim, ao fincar seus espinhos na parede do ouvido.
— Se sim, sorte dela
também. Você precisa ver o que acontece com o que se poderia chamar de “pênis”
dos bichos daqui quando a infecção se desenvolve. Mas acho que você não vai
chegar a ver isso. Nem você, nem sua mulher!
Ele solta uma espécie
de gargalhada, e ela não soa bem.
Desmaio pela nona vez.
Antes de fechar os olhos, consigo ver o homem-pálido erguendo seu corpo
esquálido e me encarando seriamente. Sua mão procura alguma ferramenta na mesa
de operações. Desmaio pela nona vez. Creio que essa seja a última cirurgia, e o
último desmaio. Em algum ponto muito distante, um bisturi penetra algum ponto
da minha carne. Eu adentro um cristal no interior de uma montanha. Os tremores
na terra estão começando a cessar. Acho que o filho dos gigantes de gelo está
se acalmando agora. Seu sorriso reflete o iminente despertar dos lobos.
...
Palidez - Parte 2
Estou com muito, muito
frio. Já faz duas semanas que estou doente, e o termostato da base não tem
feito nenhuma maravilha. Eu tenho alucinado com coisas, palavras que surgem
brilhando no escuro, grandes estátuas de povos esquecidos, olhando para mim com
aberrantes olhos imperativos de argila. Tenho escutado algumas vozes metálicas
a se locomoverem e gargalharem de mim ao longo da Base-Piloto. É tudo uma
merda. Minha urina queima ao sair de mim, deixando uma dor rancorosa por estar
sendo rejeitada. Mas o pior de tudo é a constante sensação de que existem
coisas nos meus músculos: Eles doem, eles estão todos estafados (especialmente
braços e abdômen), e ainda assim tremem em espasmos engraçados o tempo todo.
Meu corpo está mais vivo do que eu, e isso é uma situação deprimente pra
cacete. Recosto minha cabeça na mesa, desiludido, e começo a pensar, na
tentativa de me distanciar daqui.
Esse planeta é úmido.
Eu senti o frio assim que eu cheguei, mas não imaginei que a sublime mágica da
febre funcionaria tão bem para fazê-lo piorar. Coloquei a culpa da dificuldade
em me locomover no longo período de hibernação dentro da nave (um clichê de
viagens espaciais, que quase chega a me divertir), mas logo me lembrei do que
diziam os relatórios dos robôs-pioneiros: A gravidade daqui é um tanto maior do
que a da Terra. Não mais de três vezes, eu acho, mas isso já faz com que o ato
de viver torne-se muito mais incômodo do que já o é por natureza. O relatório
daquelas máquinas também dizia que existe uma biodiversidade exuberante por
aqui. Quando eu desci da aeronave, o corpo dolorido e as articulações duras, e
os olhos ardendo pelo sono resquicial induzido pelas drogas-de-hibernação que
ainda me corriam pelas veias, tudo o que eu conseguia ver (além da base
cinzenta, e dos esqueletos das máquinas tristes que a construíram) transpirava
uma vida alucinógena e constante... Vegetais arroxeados de várias espécies,
visitados por grandes animais (alguns voavam, e outros eram parecidos com os
grandes pastadores que vemos na Terra. alguns eram translúcidos como peixinhos
de aquário, e até os órgãos deles eram belos). De fato, esse planeta nomádico e
indigente tem uma diversidade incrível de formas de vida para serem extintas
pelo nosso progresso. E a minha função nisso seria a de digitar linhas de
comando: Um verdadeiro profeta de um apocalipse artificial.
A umidade do ar é viscosa, mesmo aqui dentro da
base. Do jeito que andam as coisas com meu abdômen, logo eu não aguentarei
tossir como eu estou tossindo, ou respirar como eu estou respirando. Resta
apenas recontar essa fábula irônica de desespero e tomar remédios que sequer
fazem sentido, fazendo o possível para ignorar os grandes dentes que parecem
brotar do teto e sorrir para mim, os corpos putrefatos de crianças correndo
pela nave (talvez os filhos que nunca tive), e os grandes insetos iridescentes
que ficam caçoando de mim com seus zumbidos amorfos em sânscrito. Deitado em minha
cama desconfortável (como qualquer coisa poderia ser confortável?), observo as
luzes do quarto enquanto elas derretem feito aquarelas psicodélicas frente a
meus olhos de febre, meus olhos-braseiro, que ardem como a Condenação, ou como
o coração perverso do Etna. Penso ver uma adaga se movendo nas sombras (que
também derretem), e a paranoia e a taquicardia me comprimem a garganta e causam
dor. Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus
músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
Desmaio pela terceira vez.
Dessa vez, vejo-me andando por aquela praia
artificial, o sol falso a brilhar no céu de plasma. Minha esposa está ao meu
lado, e ela se deslumbra com a ilusão de que aquele firmamento alcançável é
algo próximo do real. Mal sabe ela que estamos em uma redoma, que flutua em uma
pilha de lixo tóxico e entranhas, e almas nucleares de vítimas de uma série de
holocaustos. No meu sonho, eu sinto meu corpo a tremer na cama, anos-luz de
distância dali, em outro firmamento alcançável, infinitamente distante da
radiação dos trópicos. Eu sinto meu desconforto do futuro, e ele decanta em
minha barriga inocente na forma de um mau-pressentimento. No meu sonho, minha
esposa me abraça, e diz que tudo ficará muito bem. Eu sei que ela não acredita
nisso, sei que é mais fácil para ela acreditar no sol artificial (que
provavelmente fui eu mesmo quem programou, numa ironia anacrônica) que nos
bronzeia de tumores em potencial do que acreditar de verdade na projeção de que
tudo ficará bem. “Nada ficará bem, querida! Olha para mim, no futuro, ardendo
em febre, morrendo aos poucos de uma doença que ninguém nem terá chance de
estudar para que ela ganhe um nome!”. Ela não entende nada do que eu estou
falando. Diz que eu estou alucinando. Um ano e dois meses no futuro, eu estaria
realmente alucinando. Por um momento, acredito na realidade mal-desenhada do
sonho. Acredito que eu tive, naquelas férias, o pressentimento, a visão de que
tudo iria mal nessa viagem. Eu soube, por uma fração de segundo, por algum
artifício da quântica que o tal do Hawking que eu estudei no Ensino Médio não
chegou a ser capaz de entender antes de morrer... Eu soube de tudo o que
aconteceria, mas as ondas de água salinizada artificialmente se misturaram às
ondas de ambição, e a carreira, e a remuneração, e os apenas dois casos entre
vários sucessos, e os olhos da esposa, e as maletas elegantes... E não haveria
nenhum pressentimento que me permitisse fugir dessa viagem, dessa tragédia que
o Determinismo havia de me entregar numa bandeja, junto a uma salada de plantas
roxas, e à carne translúcida de belos animais.
Desmaio pela quarta vez, e agora tudo são panos
negros e retalhos de memórias que sequer são minhas. Vejo através dos olhos de
um colonizador, morrendo pelo veneno de uma serpente tropical. Não existe
medicina nesse lugar, e a mim só resta tremer, e amaldiçoar, e beber aguardente
de péssima qualidade, enquanto espero que as pálpebras de minha alma se fechem.
Vejo através dos olhos de uma donzela na
Inglaterra Vitoriana. Aquela adaga me penetrou quase gostosamente as costelas,
beijou-me por dentro como uma deusa, e agora toda essa luz que me invade os
olhos pertence a mim. Tusso sangue, deixando para trás algumas gotas de minha
humanidade. Sou uma deusa agora, em um palácio de luzes claras.
Vejo através dos olhos quentes de um mendigo. O
silencioso anjo da tuberculose bate suas asas dentro de meus pulmões, fazendo
com que eu tussa para fora de mim pedaços enegrecidos da minha consciência. Ele
me purifica aos poucos. Em breve, ficarei gelado como a noite, eu sei... E as
pessoas olharão para mim e dirão: “Pobre coitado.”, sem nem se perguntarem o
que eu fiz em vida. E o silencioso anjo da tuberculose terá terminado sua
purificação, e estará livre para salvar outro mortal...
E salto de corpo em corpo: doses penetrantes de
morfina para responder ao idioma do câncer; dentes de lobos que cravam-se na
carne e nas vísceras escuras, criando padrões divinatórios sobre a neve; um
vírus que consome as células, subjugando-as como um regime ditatorial, abrindo
as portas para o Reich da Peste, e todas as doenças me consomem; radiação
esverdeada e quente a me cobrir a pele como um lençol: num momento estou aqui,
no outro sou apenas mais uma vítima em um batalhão de friorentos; a fome.
Desmaio pela quinta vez. E pela sexta vez...
Talvez não aguente até a décima.
...
Acredito acordar e, alguns minutos depois,
acordo de verdade. O tempo de reação é lento, por isso não grito ao vê-lo.
Provavelmente é só uma alucinação como outra qualquer. A alucinação não se
dissipa: É uma pessoa. Um homem alto e pálido, gigante. Um Golias vestido e
composto de branco gélido, com olhos que fitam o corredor. Ele está sentado ao
lado da cama desconfortável, o sarcófago que me abraça, respirando através de
uma máscara estranha que lhe dá uma aparência alienígena. Mas eu sei que ele é
um homem, e o mais assustador: Eu sei que ele está aqui.
Ao perceber que eu
comecei a tremer um pouco mais (queria poder dizer que o motivo é frio, mas
mentir não vai me tornar mais corajoso), ele vira seus olhos, também pálidos,
na minha direção, e começa a falar comigo. A voz sai engraçada e pouco crível,
ao passar pelo filtro estéril de sua máscara cinzenta. A história que ele me
conta é um pouco menos crível. O cara diz ser um médico de uma das Colônias
antigas. Aparentemente eles também têm ideias expansionistas agora, e estão
investindo em programas como o da minha estatal. Só que eles são avançados
(éticos) o bastante para terem médicos a bordo de suas expedições iniciais de
reconhecimento, e a equipe (vejam só, uma equipe!) não é obrigada a contar
apenas com as unidades de auto-cirurgia das Bases-Piloto. Eles estavam
instalando um centro de pesquisas em uma das luas daqui, e detectaram atividade
humana na superfície do planeta. Esse cara foi mandado para cá para ver se
estava tudo bem e estabelecer contato. Uma das regiões intactas do meu cérebro
estala, tentando avisar que tem algo errado. Eu queria que eles apagassem essas
luzes, e que essa porra desse barulho fosse embora. A região intacta está
isolada, ilhada no lodo de neurônios ensandecidos pela alta temperatura, e eu
paro de pensar nisso...
O homem pálido é um
médico. Ele veio me ajudar. É tudo o que eu preciso saber no momento. Desmaio
pela sétima vez. Um corpo nu flutua num campo cheio de petúnias feitas de
eletricidade, longe de qualquer atmosfera respirável. Eu demoro três anos,
observando cada detalhe do relevo de seu rosto para perceber que sou eu. Ao
longo desses três anos, eu envelheço, mas o corpo nu continua jovem, continua
morto, congelado. Seus cabelos e suas unhas continuam a crescer por um tempo,
por mais que eu tenha ouvido dizer que isso não acontece de verdade. Tento
abraçar meu próprio corpo congelado. Meus braços tremem e se deformam. Eles
doem, pontadas cada vez mais agudas, a pele dilacerando-se sob uma lâmina
incômoda e fria. O sangue corre espesso, estou desidratado. Demoro um tempo
para entender que acordei, e o corpo nu demora ainda mais, permanecendo a
flutuar do lado de cá da realidade, com sua sombra morta e nevada em meio à
sala de cirurgia. O que a ética médica teria a dizer sobre uma operação
realizada nessas condições, certo?
O homem pálido arranca
de dentro do meu braço uma fibra muscular inteira. Eu gostaria que os
anestésicos durassem para sempre. Daqui a algumas horas, eu sei, esse meu
desejo será mais forte. Ele aplica uma pasta sobre meus músculos (os
restantes), e começa a suturar a abertura.
— Bem-vindo de volta. —
Ele não sabe meu nome. Eu nem me importo com o dele. — Seu caso não é dos mais
graves, mas também não é nada animador.
Sua voz tem algo de
estranho. Ela estridula, provavelmente por conta de sua máscara. Ele é
estranho. Não é só a palidez, a textura de sua pele parece estranha. E seus
olhos são frios, e fazem minha febre oscilar com seu toque à distância. Apesar
disso, consigo ver que ele está preocupado com a minha saúde, talvez movido por
uma compaixão genuína, e não apenas hipocrática. Estou sedado, não consigo
falar grande coisa. Balbucio algo sem muito sentido, enquanto observo,
aterrorizado, ele colocando uma quantidade imensa de fibras musculares (as
minhas fibras musculares) em um jarro de incineração. Minhas pálpebras
cáusticas se arregalam: Meus pedaços de músculo parecem vermes: Elas tremem e
se debatem, em um quase-terror, apenas superável pelo meu terror genuíno. Essa
visão estranha, possivelmente fruto de um cérebro cansado, dopado por febre e
químicos, me leva a abandonar a realidade mais uma vez.
Minha mente anda por um
vale azulado, entre dois rochedos magníficos que irradiam certo calor
confortável. Ao longe, uma cascata de água muito limpa faz-me crer que ficará
tudo bem. Posso confiar no estranho de branco, e posso confiar nessa fuga
psicológica otimista e azulada. Antes que eu consiga sorrir, percebo um detalhe
que me havia escapado: A encosta dos rochedos está coberta por grandes casulos
escuros, de superfície viscosa e coloração metálica. Dentro dos casulos estão
adormecidas pessoas extremamente deformadas. Nunca tive tanta vontade de
acordar.
...
domingo, 23 de junho de 2013
Palidez - Parte 1
(escrevi esse conto há um tempo, estava esperando que algumas pessoas mais próximas lessem e opinassem antes de colocá-lo online. é um terror / suspense / ficção científica e, como ficou um pouquinho grande, será publicado em 4 partes. segue a parte 1, espero que vocês gostem, e comentem!)
Palidez
Palidez
Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.
Cambaleio um pouco, com a palavra “sorte” ainda
na mente. A palavra também cambaleia na minha mente, indo e vindo, escorando-se
nas paredes frias da consciência. Que situaçãozinha fodida essa na qual fui me
meter. Ando até uma mesa, na sala de jantar, e despejo descuidadamente o meu
corpo febril sobre uma das cadeiras. Tenho vivenciado uma rotina de tosses
intermináveis, e o meu sangue arde tanto dentro das veias ígneas de febre que
minha visão já está um tanto embaçada. Ainda tenho alguma força dentro de mim,
o bastante para digitar, na tela da própria mesa, um pedido qualquer de comida.
Quando todas as variações do cardápio têm o gosto e a textura de uma simples
ração de viagens, a dúvida entre pedir uma pizza ou um prato de gnocchi à parisiense torna-se obsoleta.
A fome que sinto serve para encher o tanque de combustível do
“Expresso-Indiferença”. Mastigo a comida sem gosto, com o auxílio relutante de
músculos que doem, e tremem contra a minha vontade... Algumas pessoas nascem
com sorte. A grande maioria das outras não está tão melhor assim do que eu.
...
Há um ano e dois meses eu fui escalado para
essa missão. Os caras das maletas elegantes me chamaram para a saletinha
metálica, serviram-me doses e mais doses de qualquer coisa espumante e
sem-graça, empurraram torradinhas cobertas de “patê Nutricon” dos mais diversos
e requintados sabores pela garganta, e me deram uma puta temporada de férias em
uma daquelas grandes praias paradisíacas artificiais. Deram-me a opção de ir
com a minha esposa ou com “Duas acompanhantes maravilhosas que poderemos
auxiliá-lo a escolher. Queremos que você fique bem à vontade por essas semanas,
filho.”. Eles me garantiram o melhor e mais privado lugar na praia. Disseram
que eu poderia até mesmo trepar na água e ninguém ficaria sabendo.
Eu não trepei na água. Curti minhas férias
sozinho com a minha esposa (eu não precisei de ajuda alguma para escolhê-la),
mesmo sabendo que ela estava puta comigo pelo que nós dois sabíamos que viria a
seguir. Esse tipo de regalia não vem de graça. Os caras das maletas elegantes e
das “acompanhantes escolhidas a dedo” e dos ternos com perfumes de nome
impronunciável (ou, no mínimo, que você não conseguiria pronunciar sem um
sotaquezinho afrescalhado qualquer) fizeram de tudo para que eu me sentisse um
deles, para que eu percebesse o quanto o Sistema favorece aqueles que são leais
a ele. Tentaram, e conseguiram, que eu acreditasse ser o melhor Engenheiro de Software
daquela corporação estatal maravilhosa (“Você não sabe quantas nações inteiras
dormiriam à noite com inveja de você se soubessem os detalhes do que você irá
realizar, filho!”). Eles não têm ideia de quantas nações inteiras já dormem à
noite com inveja de mim pelo simples fato de eu não ter uma mutação qualquer,
ou pelo fato de eu ter o que comer várias vezes ao dia, alienados do caralho...
Mas eu entrei no jogo deles. “Eu sou o único qualificado para esse trabalho,
afinal!”.
Eu passaria dois anos fora do planeta, em uma
Proto-Colônia um tanto mais afastada desse ponto da galáxia. Um ano dessa
brincadeira seria gasto apenas nas viagens de ida e volta, e o outro ano
envolveria fazer a atualização, manutenção e operação do software da
Base-Piloto do lugar. As coisas funcionam assim: Uma trupe de robôs
hiperespecializados é enviada para um planeta, faz um reconhecimento inicial do
terreno e constrói uma mini-estação de vigília próxima ao ponto de aterrissagem
da nave. Depois que a estação está pronta, eles entram em contato com a nossa
base, no próprio planeta Terra, e torram o resto de suas baterias no processo.
Quando nós recebemos o sinal, os pobres robôs já estão todos mortos, e a base
está construída, mas com a grande maioria de suas funções totalmente inoperantes.
Essa é a deixa para a minha corporação enviar um filho da puta como eu para um
terreno desconhecido, totalmente sozinho, para mexer em todo o software do
lugar, e deixar a porra da Base-Piloto funcional. É uma boa forma de “minimizar
os riscos” da operação (que é a maneira que os drogados do setor de Comunicação
arranjaram para vender a ideia de que, se der alguma merda, só o Engenheiro de
Software toma no cu).
Eu topei. Na grande maioria das vezes, os
planetas são previamente escolhidos com cautela (para “minimizar os gastos”), e
os próprios robôs enviam relatórios (junto daquela mensagem final que eu
mencionei) com informações sobre a composição da atmosfera, e do que se pode
chamar, muito grosseiramente, de flora e fauna do local. Se for detectada qualquer
ameaça em potencial, a corporação cancela a exploração do planeta em questão,
pelo menos hipoteticamente. Na prática eu sei, e todo mundo sabe, que eles
arriscam demais às vezes, e existem duas histórias famosas de caras que
morreram em missões como essa minha. A verdade (e foi por isso que eu topei vir
para cá), é que esses dois caras azulados e mortos estão diluídos em um verde
oceano respirante de Engenheiros de Software que voltaram para casa, e esse
tipo de serviço rende um pagamento que daria até medo. No fim das contas, as
duas mortes pesam tão pouco na estatística que, mesmo levando em conta os
inconvenientes da solidão e do risco, pode-se considerar uma oportunidade fácil
de enriquecimento. Fora a emoção de ser o primeiro ser humano a colocar os
olhos num planeta desconhecido. A grande operação “Anthroplosion”, de expansão
da espécie humana por diversos planetas habitáveis já contava com um enorme
número de sucessos, e grandes heróis corajosos construíram esse progresso (me
ouvindo falar assim, sinto-me não muito mais esperto do que aqueles robôs que
morreram aqui antes de mim). É tudo, no fim das contas, uma questão de sorte.
...
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