sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Espontaneidade

Hoje eu não vou usar meu cérebro, não vou vestir nenhum chapéu, ou boina. Também não pentearei o cabelo, não rasparei o cabelo, não desnudarei o couro cabeludo, não exporei nenhum milímetro de mim, nenhum milímetro de minha pele, do meu lado de fora, do meu lado de dentro, não despirei minha alma com o sentimentalismo barato dos mortos-vivos dos quais me cerco. Hoje eu não tentarei me entregar ao precipício que é a emoção, não tentarei explicar nada de mim que não eu mesmo, não hei de meditar, não hei de convidar o caos para me acompanhar, não hei de me sentir humano, e fraco, e frágil, e tímido como sempre me sinto, ou dar ouvidos à desesperança que me é irmã gêmea. Não serei erudito. Não serei chulo. Não tentarei deixar de ser eu mesmo, puro. Não deixarei que a violência manche as minhas roupas, queime a minha boca, faça-me dançar seu baile roto. Hoje eu serei racional, escreverei a escrita automática (consciente de que toda escrita é, no máximo, semi-automática), não censurarei meus horizontes, não me conformarei com a ordem do mundo, que me empurram como natural. Hoje eu serei sólido, e não me renderei à métrica dos versos, pois os grilhões dos versos (ah! os versos) me corrompem, deixam-me exposto, e nu, e metalizado. Não escreverei meu misto de linguagens, o português-inglês-francês-espanhol-alemão-élfico-finneganês-wakesiano, na tentativa de retratar dramas que desconheço burilados na argamassa de idiomas que não domino. Não romantizarei minhas paixões, ou minhas falhas, não abraçarei minhas aspirações como se elas não fossem sonhos, e não fossem infantis, e não fossem as crianças choronas elétricas de um psicológico despreparado. E tentarei lembrar-me da face de meus amigos, dos meus verdadeiros amigos, aqueles que são loucos, realmente loucos, afogados na aura da loucura que a psiquiatria não é capaz de detectar, mas que ainda assim não conseguem o sonho utópico e alienista de se adaptar a uma sociedade como aquela da qual somos frutos. Prestarei atenção na colisão entre todos os meus nêutrons e os núcleos dos quais se originam, e na energia que eu extraio disso em plena dinamização nuclear subjetiva. Hoje eu não escreverei ficção, não voarei nos ares de uma imaginação escapista, e maravilhosa, e inata, renegarei a fantasia dos dias, e não escreverei nada que possa ser chamado poesia, darei apenas a negação como resposta à ânsia de escrever a poesia, de me expressar por versos rasos que se fingem profundos, por trocadilhos e jogos de palavra teatro-mágicos, e apenas viverei a piromania da alma, ao recusar-me a explicar o conceito que chamo de dharma-cético-materialista-infinito, que é o fruto do autoconhecimento mais profundo, e da análise impessoal do “eu” e do “todo”, e do como eu acho esse “todo” realmente sagrado, sim, sagrado, por sua total falta de significado ou motivo diante dos meus olhos mal-dormidos. Por fim, hoje, pela primeira vez, não acordarei imaginando-me como algo mais do que uma simples e medíocre criatura humana, fruto de mutações acumuladas ao longo de gerações quase infinitas, dotado de um talento razoável e inútil, e nem abundante o suficiente para me causar real orgulho, mas ainda assim não renegarei o meu quinhão dessa habilidade, utilizando-a para o meu hedonismo, para evitar a emasculação psicológica da frustração, para evitar o sufocamento de meus arados tristes. Hoje, eu abraço a ciência, e a serotonina, e a literatura, e a escolha de ser feliz, e completo em mim mesmo, e visualizar minha existência, independentemente do que o nietzsche-dostoievsky-asimov-dick-lynch-mutarelli-ginsberg-burroughs-coelhismo tem a dizer sobre isso. Hoje eu decido correr, até que minhas panturrilhas derretam no ácido de si mesmas, pela estrada metafórica de mim.

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Conforme o título indica, escrevi esse texto quase inteiro de forma espontânea, enquanto eu corria, na minha mente. Depois cheguei em casa, tomei um banho frio e sentei-me para tentar transcrevê-lo. Perdi metade de sua essência, mas gostei de reler a metade que sobrou (mesmo que seja uma cópia clara do estilo de Allen Ginsberg. Foda-se)