sábado, 20 de dezembro de 2014

Itatiaia


A viagem começou a bater quando montamos um gigante de diesel antes do nascer do sol. O asfalto era muito, e estava frio, e havia sete de nós. Sabíamos onde queríamos chegar, mas não tínhamos a real certeza do “como”. Os gigantes de diesel teriam de funcionar, e talvez algumas perguntas e algumas canções nos dessem pistas do caminho.

De Porto Real para Resende. De lá, uma van nos cuspiu sonolentos em Itatiaia, onde ficamos esperando o último ônibus antes do Parque. Havia um fino sol, sob o qual conversávamos, e uma estrada de chão e alguns comércios fechados. Vimos alguns transportes corpulentos passando, todos para outros universos que não aquele que almejávamos. Seus lombos carregavam civis e militares, e todos olhavam para nós. Estavam cansados.

Entramos no ônibus, e fomos de pé. Nas conversas, fauna carismática e processos ecológicos. Talvez amemos tanto esse trabalho que cheguemos a nos esquecer que ele é trabalho. Talvez o tenhamos erguido um templo, uma pequena divindade. Escalamos as muralhas do templo, da Serra da Mantiqueira, com rodas de borracha como pés e mãos. Descemos em uma trilha de terra alaranjada, dentro do primeiro Parque Nacional do país, e voltamos a ser apenas sete, e a ter pés e mãos de carne.

Um jacu, algumas borboletas, um bando de guigós ao longe.  A silhueta de uma araucária adornava nosso passado recente, e diversas árvores, lianas, gramíneas e arbustos nos davam passagem, enquanto andávamos em direção à primeira piscina. A água gelada fez-se uma boa companhia: acho que eu tinha me esquecido por tempo demais o que era estar realmente vivo. As pedras da Piscina do Maromba são pilares, erguidos pelas mãos de ninguém. Sentado sobre elas, com um tímido sol a me tingir a pele, consigo meditar por um tempo breve. Percebo parte do que Edward Wilson definiu como “Biofilia”, e percebo que, à mente interessada, todo o mundo pode ser um infinito templo feito de puro nirvana.

Exploramos as montanhas, as pedras e as águas. Vemos o sol partir e regressar um sem-número de vezes. Percebemos a recursividade do tempo, e vivenciamos um ao outro em grandes pulsos. Nada pode ser tão excelente para bichos sociais como nós quanto estar partilhando uma existência tão imensa, tão bela em sua efemeridade e tão mutável em seu circundante mistério, com um grupo de semelhantes tão belo quanto fomos nós sete. Eu sentia um gosto bom no fundo de minha boca. Queria que ele durasse para sempre. Acho que nunca antes sustentei um sorriso tão verdadeiro.

Falamos de predação, de música, de ficção científica. Falamos sobre nós mesmos, sobre a nostalgia que era, para mim, estar naquele lugar. Falamos sobre a empolgação deles, de descobri-lo pela primeira vez, e projetamos, nas telas do cérebro um do outro, sonhos de um futuro ainda disforme, o eterno embrião de um futuro feito de neblina e probabilidades. Vivemos um dia ímpar, um dia díspar. Faço votos para que dias assim brotem sempre no solo fértil de nossas vidas, para que sejam apêndices efêmeros no embrião multicolorido de nossos sete futuros independentes.

Caminhamos de volta, aos tropeços de cansaço. A chuva tomou para si o lugar do parque, da empolgação e de boa parte de nossa comida e nossa água. Esperamos um último ônibus e ele nunca chega. Fotografias nos transbordam dos bolsos, como fragmentos de memórias compartilháveis. Como lembretes vagos.

Treze horas depois de nossa partida, chegamos em casa. Pizza e bolo nos esperavam. Os outros seis não sabiam, ali, o quanto os amei por terem me proporcionado aquele dia.


Talvez agora eles o saibam.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

[MINI-CONTO] Anthem

There is a stairway you'll go up, but never down.
And there's a room that you will never leave.
You're going to stay there, forever, until your name fades away, until it gets replaced with "Eternity". Enter, and you'll be eternal.

All hails to the immortal men and women! To all who ceased to be, and became one mass of soldiers! All hails to the sons and daughters of men, who became stepsons to silent decay.
All hails to you, who take my hand,
Enter my land
And  smile with me...

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

[POEMA] Monólogo em uma loja de bolsas

Eu preciso de uma bolsa nova.
A que carrego comigo está rasgada demais, surrada demais,
Sinto-a suja pressionada contra minhas roupas,
E espaçosa, e desconfortável.

Eu preciso de uma bolsa nova na qual eu possa guardar minhas memórias.
Não, não venha me dizer sobre "Utilizar até o fim". Esse é o fim.
Já não posso mais fingir que essa mochila aguenta sequer mais um dia,
Sem uma mudança radical em sua forma, e em sua organização interna.
Essa é uma bolsa morta.
Suas alças já não aguentam mais o próprio peso e ela me escapa do controle toda hora.
Continuar exibindo-a por aí, com um sorriso fingido, enquanto meus dias escapam por seus rasgos
                                                                                            [de tecido puído seria irresponsável.
Eu preciso de uma bolsa nova!

Preciso de uma que seja menor e mais calma.
Uma que não esbarre tão dolorosamente naqueles à minha volta.
Uma que não comprima aquilo que há em mim, que não torne tudo em espinhos voltados para todos                                                                                                                                     [os lados.
"Desculpe, caro amigo!"
"Foi mal te ferir, menina!"
"É essa minha bolsa velha, cheia de remendos. Ela anda pesada demais ultimamente."
"O ônibus sacolejou, eu não consigo ficar em pé direito com isso nas costas!"

Preciso guardar minha alma em uma bolsa diferente, vocês veem...
Que não mais soterre meus problemas em um fundo falso de escapismo,
Onde caiba minha mente inteira, minha rotina inteira, e ainda haja alguma folga.
Preciso de uma bolsa onde caiba um instrumento musical,
Alguns livros, talvez,
E que proteja melhor meus frascos de tormenta.
Algo de tecido não inflamável,
Com zíperes que funcionem melhor,
Algo que não questione tanto o porquê de encerrar em si coisas pesadas e amargas.

Uma bolsa com estampa mais serena.
Onde caiba um tanto de perdão para mim e para os outros.
Que não tenha um compartimento para tanta autoflagelação, eu não preciso tanto dela assim.
Algo que não agrave minha escoliose,
E que não carregue em si o logotipo
"Samsara, LTDA"

domingo, 16 de novembro de 2014

[REFLEXÃO INTIMISTA] Cromossomos (ou metade deles)

Eu tenho uma série de livros começados que eu nunca terminei. Alguns deles, inclusive, realmente compõem "séries de livros", como é o caso de Schrödinger, the Cat. Terceira parte de uma trilogia vaga (conectada apenas por um conceito, e pequenos elementos, mas composta de três histórias independentes), Schrödinger está em sua reta final. Há muito tempo. E outro dia eu realmente avancei algumas páginas, e novas ideias para o final do romance sci-fi têm brotado aqui e ali no meu cérebro ultimamente. Hoje, quando cheguei de viagem de Campinas (casa do meu irmão), pensei em trabalhar um tanto na direção de colocar um ponto final no Schrödinger logo!

Ao invés disso, eu acabo de colocar o "Dark Side of the Moon" para tocar, e vim escrever esse texto. Ele não tem tanto a ver com ficção científica. Ou talvez tenha.

Contextualizando, amanhã meu pai faz 62 anos, e hoje viemos de viagem conversando, ouvindo música e dividindo pequenos silêncios, através de quatro horas e meia de estrada e pedágios obscenos. Minha mãe ficou por Campinas para ficar um tempo a mais com minha sobrinha, então amanhã será um dia só meu com o meu pai. Depois de tomar um banho hoje, e lavar toda aquela Nova Dutra de mim, o pai estava me esperando com uma cerveja e um pouco de pernil acebolado. Foi nesse contexto que tivemos o que creio ter sido uma das mais emocionantes conversas da minha vida, um excelente prelúdio para meu dia dourado de amanhã. O texto em si começa agora:


De Guerrillero a Bom Velhinho


Eu sempre conversei mais com a minha mãe. O pai gosta de ressaltar o quanto ele é "ruim com as palavras", enquanto minha mãe, psicóloga amadora, sempre faz mais questão de nos perfurar a crosta de aparências, e prospectar a alma até que falemos de tudo. O pai, enquanto isso, observa de longe, com um sorriso no rosto e, às vezes, com música nos ouvidos. À parte isso, minha memória mais antiga é de um simbólico momento no qual, acordando no meio da noite choroso, eu fui acolhido pelas mãos grandalhonas do pai, que me embalou no colo, cantando uma música qualquer, e me botou de volta no berço. Essa é a minha primeira memória de conforto, o ato mais antigo de zelo e amor que eu me lembro de ter tido, e o protagonista disso é o meu pai.

Algum tempo depois disso, o pai deu a mim meu gosto musical, deglutido e servido em discos de vinil (alguns dos quais eu retenho até hoje) e CD's tocando no carro. Orgulho-me de não conhecer um mundo sem rock progressivo, sem Kraftwerk, e sem o Dark Side of The Moon tocando nos churrascos de família. E tenho o orgulho, hoje, de trocar sons com o meu pai, de conversar com ele na língua dele no que diz respeito a música. E daí vem tantas outras coisas: Sempre fascinado pelo mundo natural e pela ciência, foi meu pai que me eletrizou os olhos com o brilho que faz de mim hoje um aspirante a cientista. Todos aqueles documentários e revistas sobre o funcionamento das formas de vida e do Universo são a base para o biólogo que eu quero me tornar. Foi ele que alimentou o meu "bichinho da escrita", com livros e gibis quando eu era criança, com filmes de ficção científica, e mesmo com pequenas reflexões escritas de próprio punho a respeito da vida. E lembro-me de, bem pequeno, espelhar-me no seu jeito trovador de escrever pequenos bilhetes e sonetos para minha mãe.

Foi com o meu pai que eu aprendi a ser eu mesmo. Foi inspirado em sua retidão e ética pessoais que eu desenvolvi meu jeito "quadrado" de encarar certo e errado. E é inspirado em sua figura paterna, sempre sólida, sempre determinada ao melhor e mais dourado de si, que eu desenho o pai que eu quero ser um dia. O que eu mais gosto é da forma como ele transpira leveza, mesmo sendo um homem feito de preocupações a respeito do serviço, da vida e de nós. "Meu filho, o que eu faço é trabalhar e vir para casa ficar com sua mãe. Eu tenho o meu cigarrinho e a minha cervejinha, e essas são as minhas diversões. No mais, foda-se se me condenam por isso, eu tenho orgulho de fazer meu trabalho, e de curtir minhas alegrias, e de curtir vocês, que são o melhor que eu deixei no mundo."

Porra, pai... Você vem me falar de orgulho? Você, a pessoa mais ciente de si que eu conheço, mais consciente de suas limitações, mais exercente do "caminho do meio"? Eu é que me orgulho de ser veículo de metade dos seus genes, misturados com a metade do único ser humano que empata com você no conteúdo metafórico de ouro. E de ter aprendido com vocês dois a ser eu mesmo.

Hoje, em um momento de reflexão e insegurança (eu ando tendo MUITOS desses), perguntei ao meu pai se ele já teve medo de suas escolhas, e quando ele parou de senti-lo. Ele me disse que não, que sempre foi impulsionando a vida com calma, sem se projetar muito para o futuro. "Eu perdi meu pai muito cedo, e fiquei sem pai em um momento muito importante da minha vida", disse ele. "E minha mãe trabalhava, então eu me virei sozinho. A vida sempre foi muito instável, então eu percebi que não valia tanto a pena ficar se preocupando com daí a dez anos. Acho que pode até ser bom isso... Mas eu nunca fiz muito."

Era o que eu precisava, no momento. Aquele era eu, despertando choroso no que São João da Cruz chamou de "A Noite Sombria da Alma". E aquele era meu pai, me acolhendo e me cantando uma canção de novo, dizendo que tudo vai ficar bem.

Ao contrário do meu pai, eu não fiquei órfão cedo. E é pensando nisso, ouvindo a música que meu pai me deu, que eu escrevo essa homenagem a ele. Porque por mais que ele tenha quase partido algumas vezes, fruto de uma saúde tão instável quanto tudo na vida, ele ficou aqui. E, graças a isso, hoje ele me deu mais uma demonstração de como sua sabedoria simples e seu "budismo espontâneo" podem me guiar ainda hoje.

Nunca estarei pronto de tudo para perder esse homem, com todas as suas falhas e suas virtudes, e o seu cigarrinho e sua cervejinha. Então eu escrevo essa pequena ode, e torço para que demore muito até que eu tenha de cantar junto com o Ginsberg:


terça-feira, 11 de novembro de 2014

[POEMA] Matéria Escura

A noite se desbrava com a estrela solitária de um cigarro.
Meus passos não ecoam na calçada. Apenas a minha mente é ampla e vazia o bastante.
Existe um calor à solta. E eu nem sequer me importo mais em caçá-lo,
Em extingui-lo com uma chama fria, com uma água morta.

Hoje é um dia de alegrias vulgares,
De revoadas tristes.
Não sinto falta da cidade que se alicerçou na minha pele e se entrançou nos cabelos.
A minha música ficou para trás, e o silêncio já não soa estranho.

Não choro mais minha cincuncisão da alma,
Minha circunscrição afoita.
Não choro mais o sangue dos valentes, que se perderam nos meus olhos parvos.

Eu vejo a vida em lentes embaçadas
E não me importa em nada.
Porque de um palácio de trinares de ave,
Eu escolhi dançar entre os morcegos.
Minhas mãos têm queimaduras do outrora,
E a memória já se esconde aos ventos.

Foi-se o apetite de engolir o mundo, apenas o encaro em sua vitrine infecta.

Ontem havia uma floresta, hoje o nada.
Não lamento.
Entrego ao nada um presente de parelhas brancas

desencaixadas