terça-feira, 18 de setembro de 2012

"Nariz de Palhaço"

Olá, crianças e degenerados sociais e outras classes de fãs da CDU. Na onda de publicação de contos miseráveis que o blog anda tendo ultimamente, trago a vocês um conto um tanto antigo, que foi feito para servir de background para um personagem em um projeto infantilóide de RPG-by-forum para-literário que não foi para frente. Mas eu gostei do personagem, ainda assim. Só não gostei tanto assim do conto, pelo menos não como uma produção literária de peso que me enchesse de orgulho. Ainda assim, lá vai.

Para os fãs de literatura de fantasia / suspense / terror residual. Talvez possa até ter mais valia do que eu dou a ele, mas eu sinceramente duvido um tanto. Divirtam-se!

Nariz de Palhaço

“Eu ainda não sei porque eu estou escrevendo essa porra dessa carta. Deve ser a ansiedade. Como ela vai fazer minhas mãos tremerem mesmo, que essa tremedeira seja aproveitável na forma de caligrafia. Pode não estar das melhores caligrafias, ou das melhores cartas. Mas quando eu pontuá-la, vocês saberão o porquê. 

Pensando bem, acho que eu deveria tentar me acalmar antes de escrever o que pode ser a última carta da minha vida. O destinatário é você, quem quer que você seja. Provavelmente, será o dono do hotel, querendo saber onde está o aluguel. Peço que não jogue isso fora, e entregue para a minha banda. Eles saberão o que fazer. Deixarei o telefone do nosso baterista no verso da carta para que você possa contatá-lo. Mas vamos logo ao assunto principal. Hoje, eu saio para meu primeiro encontro face a face com o Kh’loon. Levando em conta a reputação do cara, foi até muito fácil entrar em contato com ele e marcar esse encontro. Mas acho que estou começando isso pelo lado errado. 

A história da minha crescente obsessão com este serial killer em especial começa com a morte do meu cachorro. O Kh’loon não matou meu cachorro, isso seria ridículo da parte dele. O Tyrant morreu atropelado. Acontece que eu era muito ligado com aquele daschshund, e ele era o maior fã da minha banda. Um cachorro tão inteligente quanto aquele não poderia ter a morte passada em branco. Portanto, fui atrás do pessoal do Detroit News para inserir seu nome no obituário, tudo para receber um tratamento de merda. Tá que eu tinha bebido algumas Heinekens no caminho, mas mesmo um ser humano bêbado mantém seu status como um ser humano. Ele deve ser tratado como tal. Mas eu entendo. O obituário estava cheio de nomes para serem inseridos naquele dia. Nomes diferentes de Tyrant, pertencentes a criaturas diferentes do meu Tyrant. Eram nomes humanos. Vinte e três deles pertenciam a crianças de um orfanato em Wayne County. Vários outros pertenciam aos funcionários presentes no momento do incêndio. Aparentemente, o incêndio que consumiu o orfanato até transformar toda a alvenaria em alguma coisa de valor inferior a carvão vegetal de baixa qualidade não foi completamente acidental. Somando esses trinta e tantos nomes aos que rotineiramente já aparecem em um obituário, eles estavam sofrendo de falta de espaço. Ou seja, ‘no dogs allowed’. 

Voltei para casa morto de frustração, e ensaiei com a banda até que os meu diafragma se reduzisse a uma tripa espástica e incapaz de converter um saxofone numa máquina de música. Depois do ensaio, voltei do estúdio para casa andando. É longe, mas não tanto. Mas ainda assim, é longe, e tornou-se ainda mais longe sem um canino farejando e sugando metade do caminho pelas suas narinas espertas. Não é que eu não tenha ficado puto pelas crianças, é claro que eu fiquei! Mas ainda não tinha tido tempo de pensar nisso direito. Assim que eu liguei a televisão, vi um policial dando entrevista, falando que este crime provavelmente tinha conexão com outros dois. Outros dois... Já é um assassino em série. Quando o retrato falado do suspeito foi exibido, meu interesse no caso redobrou. Parecia um palhaço apavorante de circo. 

Deixe eu explicar algumas coisas sobre mim. Meu nome é Neal Gaiman, o que provavelmente faz de mim a mistura de duas personalidades literárias estranhamente díspares. Talvez venha daí a minha fixação por mistérios, especialmente aqueles realmente bem sangrentos. O policial na tevê falava, através de um áudio chiado que meus ouvidos aprenderam quase que instintivamente a filtrar, que o culpado apresentou-se no orfanato como um palhaço, para fazer alguns truques de sombras com as crianças. A maioria delas ficou perturbada com a aparência do palhaço, e com a natureza de suas histórias. Isso tudo foi relatado por uma sobrevivente que, exceto por uma das pernas, conseguiu escapar do incêndio. A perna ela teve de deixar lá, mas nada foi dito a respeito disso na tevê. Sabendo o que sei hoje, é capaz de o filho da puta ter arrancado a perna dela com seu punhal. Mas isso é apenas minha mente de Sherlock tentando funcionar. 

A tal cozinheira disse que as crianças começaram a se queixar de frio, e realmente começou a esfriar um tanto à medida em que o palhaço ia ficando mais irritado e frustrado com a desaprovação. A mulher lembra-se claramente de ouvi-lo gritando, em meio às chamas “E agora, vocês estão com frio, seus fedelhinhos de merda? Hein? As fadinhas estão com frio agora?”. Aquilo me perturbou profundamente. Mas, como disse, a perturbação e a fascinação tornam-se muito próximas na minha cabeça, e eu logo quis saber mais sobre esse cara. Ler mais, tentar resolver o caso. Como se eu fosse alguma coisa além de um ex-estudante de jornalismo que toca saxofone em bares e puteiros de meia estrela. 

Eu tinha um ponto a meu favor. Não é todo mundo que tem estômago para lidar com esse tipo de caso. Os federais provavelmente iam demorar um tanto a atacar, e isso me dava cem ou duzentos metros de distância. Aproveitei um pouco disso, e comecei a ler matérias a respeito do caso na internet. E é nesse ponto que a tampa do bueiro estoura, puxando-me para baixo, numa espiral de sombras e excremento. Não literalmente, claro. Isso seria grotesco. 

Aos poucos, eu fui procurando artigos em blogs, aprendendo um pouco mais sobre o cara. A aparência era o mais notável, e foi essa aparência singular que me fez achar alguns links um tanto mais obscuros. Foi através de algumas páginas de Deep Web (Invisible Web, para alguns) que eu encontrei algo que, aparentemente, era um dossiê sobre o cara. Eu tinha parceiros de obsessão, ao que parece, e o conhecimento deles sobre o Kh’loon, como o homem era chamado, era muito extenso. Agora que sei um tanto mais sobre a natureza do Kh’loon, acho que chamá-lo de homem seria dar a ele uma denominação errada. Talvez a palavra ‘criatura’, ou mesmo ‘coisa’ descrevesse melhor. ‘Entidade’. Eu gosto de ‘entidade’. É uma palavra de força. 

Nesse ponto, eu já estava consumindo café como um louco, isso para não falar dos cigarros e do whisky. Do mais barato possível. A falta de sol, os hábitos pouco saudáveis e mesmo a obsessão estavam tomando minha mente e meu corpo de tal forma que eu dificilmente voltaria a tocar meu sax como eu fazia antigamente. Meu dinheiro estava acabando, e meus amigos, quando apareciam, ficavam desconfortáveis ao notar meu aspecto, que ainda era muito arrumado levando em conta o pardieiro no qual meu apê tinha se transformado. Eu estava vivendo num lixo. Mas por trás daquelas pálpebras narcoticamente insones, daqueles olhos injetados de cafeína e do vermelho que apenas noites despertas podem trazer, existia uma enciclopédia se formando sobre o Kh’loon. Registros históricos sobre palhaços capazes de certas proezas incomuns são pouquíssimos, pois palhaços sempre foram uma classe um tanto renegada de gente. Mas os poucos destes registros que tratam de um ser com aquela aparência estranha do Kh’loon, com olhos de diamante arroxeado e roupas combinando listras brancas e vermelhas com um tecido de negro intenso, datam das mais estranhas, remotas e espaçadas épocas. Sempre trazendo atrás de si um metálico rastro sanguinolento, o Kh’loon já existiu como assassino em várias eras. 

O encontro de uma campanha de Templários com um árabe em especial, por exemplo, vestido com roupas extravagantes e carregando um tipo diferente de cimitarra fez com que os europeus fossem, um a um, estripados da forma mais desumana e brutal que a maioria deles já tinha visto. Antes ainda disso, um evangelho apócrifo menciona que Judas, ao trair Jesus Cristo, vestia-se com roupas berrantes, com padrões de cores considerados deselegantes para aqueles de sua época. Mas quando foi encontrado morto por seus compatriotas judeus, ele tinha retornado à sua aparência comum. Possivelmente, a loucura que o levou à corda, também tinha a ver com seu contato com o Kh’loon. Este mesmo site especula que mesmo o assassinato de Abel tenha tido alguma relação com a criatura, mas não se baseia em nada. Isso é algo que me chateia hoje em dia. As pessoas saem vomitando teorias descabidas sobre a cabeça umas das outras. A minha sorte é ter um belo chapéu de abas largas chamado bom-senso. É lendo frases como esta que eu penso que não ter seguido carreira como jornalista foi uma boa ideia. 

A origem proposta para o Kh’loon é a de que ele chegou à Terra junto com um meteoro expelido por uma galáxia distante daqui. Após a expulsão deste meteoro, diz o site, também sem nenhuma fonte citada, a frequência e a intensidade das explosões solares, e a velocidade de colisão entre os corpos celestes diminuiu drasticamente dentro da galáxia. É engraçado ver que eles não dizem o nome da tal galáxia porque, segundo o site, ela ainda não foi descrita pela astronomia moderna. Mas essa história toda, por mais inverossímil que parecesse, estava chegando até minhas zonas de cognição e memória como uma inquestionável e dogmática teia de palavras. Fato é que, após a possível chegada do Kh’loon, os homens de neandertal estranhamente sumiram do mapa. O site diz que tanto a criação da figura do palhaço quanto o medo que algumas pessoas sentem (principalmente na infância) ao serem confrontados com estes personagens, podem ser resquícios da memória coletiva de nossa espécie, dizendo-nos ‘Palhaços são interessantes. Mas eles podem ser perigosos também.’. 

Algumas outras personalidades como, provavelmente Jack, o Estripador (tão pop e controverso que eu prefiro nem acreditar), um pirata holandês sanguinário que saía queimando navios, estuprando e mutilando mulheres de cidades portuárias e acumulando tesouros (a possível origem da lenda do holandês voador), um gladiador assassino de cristãos-novos que teria entretido três gerações de imperadores romanos, ao apresentar a eles um teatro de fantoches feitos de vísceras e olhos de suas vítimas... Existiam várias histórias. Poucas delas se confirmavam. Mas era um site escondido de tudo, eu não podia exigir muito. 

Depois de um tempo, acho que um mês e meio, eu comecei a me acalmar um pouco, e deixar essa história de lado. Se tudo o que o site falasse fosse só a teoria de alguém, que não merecia menos a camisa de força do que o assassino de vinte e três crianças, então toda a informação que eu tinha sobre o assassino era um conjunto de boatos escrotos e desconexos que não me levariam a lugar nenhum. Se fosse verdade, o que eu poderia fazer contra uma criatura de origem tão obscura e de calibre tamanho? Eu estava determinado a parar... Entrei em contato novamente com os Muglings (minha antiga banda), e estava ensaiando mais e entrando naquele site cada vez menos. Os assassinatos tinham parado também. Talvez até mesmo o Kh’loon fosse capaz de sentir-se mal pela morte de tantas crianças de uma vez. 

Eis que ontem eu entro novamente no site, apenas por curiosidade, e vejo um post novo, dizendo que o Kh’loon foi avistado entrando em um apartamento, em um endereço que irei omitir daqui para poupar aqueles que possam ler essa carta. Se eu não voltar, é porque o cara, ou o que quer que ele seja, é realmente perigoso (de forma sobrenatural ou não), e eu não quero que ninguém siga meus passos até aqui, e tenha o mesmo fim que eu tive. Caso eu volte, essa carta sequer será lida... Então... Foda-se! O fato é que consegui contatar o morador deste endereço, via telefone. Ele diz ser realmente o Kh’loon, diz estar arrependido do que fez (o que o levou a escrever aquele post no site), e disse estar disposto a parar de matar, mas ele precisará de ajuda. Da minha ajuda. Pediu para que eu aparecesse por lá hoje, por volta de vinte horas. É uma hora daqui lá. Ele pediu para que eu avisasse a polícia, para que eles fossem até o endereço às vinte e quinze. Ele quer conversar um pouco comigo antes de ser colocado brutalmente em uma viatura e conduzido a uma estrada imoral, que desembocaria em três seringas injetando químicos letais nas suas veias incompreendidas. Filho da puta. 

Então é isso. A polícia já está avisada, e vocês que ficaram para trás também estão avisados. Sei que essa carta jamais será lida, mas ainda assim queria escrevê-la, mais como uma forma de matar o tempo do que para informar a alguém. Além do mais, é uma forma de diminuir a ansiedade. Fora que ler toda essa história e ver como tudo é tão ridículo... Tanto a minha obsessão quanto essa história de galáxia, neandertais e Judas Iscariotes... Tudo tão pateticamente ridículo, que eu não tenho motivo algum para ter medo. Meu trem sai em dez minutos. Chego na estação em seis. Então acho melhor ir andando. 



Com algum sentimento positivo, mas não necessariamente amor, 



Neal Gaiman.” 



(MUDANÇA DE CALIGRAFIA) 



Foi muito divertido e edificante isso tudo. Atrair o senhor Gaiman para minha casa foi fácil. Levando em conta a quantidade de acessos vindos deste apartamento de hotel dele àquele site estúpido que algum imbecil criou, foi fácil criar a isca. Sabia que a perícia em computação desse último hospedeiro era boa. Qual era o nome dele? Ah! Dane-se... Falemos do senhor Neal Gaiman. Ele era perfeito: Sem crimes passados, uma vida comum e apagada, um total perdedor. A habilidade em música é interessante, claro. É bom ter algo para me distrair. 

Quando eu disse a ele que eu queria sossegar, eu realmente queria. Não é bom usar o mesmo corpo por muito tempo. Pelo menos não quando você começa a chamar atenção demais, como eu acabei fazendo. Tenho de me controlar mais. Meu hospedeiro anterior, porém, era um incendiário. E um pedófilo. É uma merda quando você pega uma lata de sardinhas que já vem estragada. Tira toda a graça de cuspir dentro dela e esperar apodrecer. Agora, o senhor bonzinho aqui... Vai ser uma beleza quando ele começar a matar. Para os amigos, o fato de ele estar se vestindo como o Kh’loon se vestiria, vai parecer extremamente normal. Afinal de contas, ele tinha ficado viciado em tudo o que dissesse respeito a mim. Um infeliz que arranjou um vício perturbador para se perverter. É até engraçado. Só é uma pena ter que dividir esse corpo com alguma estupidez residual do senhor Gaiman. Tudo bem, já estive em situações piores. Acho que vou gostar de viver uma vida normal. Mas isso até o meu punhal acordar, e a cascata começar a cair de novo. E ela cairá, e cairá, e todo o mundo irá se afogar na essência dele mesmo! Ah, eu mal posso imaginar a cara daqueles peixezinhos de pele flácida ao olharem na cara maquiada daquele que os pescará e sugará os olhos desorientados de seus crânios amarelos e primitivos. 

O cara anterior já deve estar preso agora. Completamente louco. Com o estojo de maquiagem do lado, e uma cópia malfeita das minhas roupas. Eu nunca soube costurar. Nem ele, ao que parece. Mas isso não importa. O que basta é dar à polícia um suspeito, e eles não se importam tanto assim se ele é igual a mim ou apenas parecido o bastante. 

Essa carta foi útil. Resumiu tudo aquilo sobre mim que não tive paciência de ler naquele site mal-projetado. Tem algumas merdas, é claro! Sempre tem. Quando você vira uma lenda, tem que conviver com a diferença entre aquilo que você realmente fez e aquilo que a lenda fez. Porque você vira duas pessoas nesse momento. Ainda bem que eu já estou bem acostumado a ser duas pessoas. Hahaha! Rir no papel não faz muito sentido. Mas ter essas memórias anotadas é algo bom. Quando se viveu tanto quanto eu, as memórias começam realmente a se misturar e se desintegrar numa poça escura da mente. 

Eu lembro muito bem de ter me unido àquela galáxia. Theridor era o nome dela. Ela era linda e pacífica. Mas não muito de paz sobrou nela depois que seus planetas habitados começaram a se chocar. Nunca me diverti tanto. Pareciam pelucinhas gritando, com a diferença de que estes derramavam fluidos e faziam sonzinhos. Eram legais. Lembro-me também de ela arrancar o nariz de seu centro, e de eu viajar pelo Universo até chegar à Terra. Mas eu não me lembro de extinguir uma espécie inteira de hominídeos. Deve ter sido divertido. 

Outro ponto no qual eles erraram foi naquele texto parvamente mal escrito, sobre o navio pirata... De fato aquele notável capitão realizou coisas não muito nobres com sua adorável tripulação, mas ele não foi meu hospedeiro. O navio foi. E, aos poucos, eu fui conseguindo me infiltrar na mente de cada um daqueles marujos. Foram anos notáveis aqueles. Quando eles içavam minhas velas e eu sentia o vento a impulsionar não apenas minha carcaça decrépita, mas meu desejo de saciar a sede da minha garganta e do meu pinto... Na forma de pequenos fantoches, é claro, mas ainda assim. Pena que eu não saiba como fazer isso de novo... Isso de fantasmagoricamente me infiltrar nos atrofiados cérebros primatas, e deixar lá uma semente de meu caos. 

Essa baboseira de Caim é que não faz sentido algum, e esses caras sequer existiram de verdade. E o tal do Judas...? Que porra é essa de Judas? Nessa época eu estava na América Central, sendo reverenciado como um deus, e exigindo corações em tributo a mim. Acho que até os Maias tiveram medo de registrar na escrita que eu comia aqueles corações todos. Eu era muito adolescente na época. Gostava de chocar. Amadureci muito ultimamente. Mas sinto falta daquela sensação... A de ser representado com a forma de um monstro, porque a minha forma real seria medonha demais para que os artesãos a quisessem esculpir. A sensação de ser, numa acepção bem particular e esquizofrênica da palavra, um deus entre os homens. E eu fui um deus, mas fui um deus de ‘ontens’. Agora? Eu esqueci metade dos truques daquela época. Não preciso mais deles, vivemos entre homens fracos agora. Além disso, escolhi um hospedeiro sem muita coisa especial. De propósito. Para ter o prazer de mijar nessa impecavelmente esterilizada lata de sardinha, e sentir cada alteração acre no aroma dessa carne que, de outra forma, seria o alimento perfeito para uma sociedade de homens fracos. Mas sobre ser um deus, não é mais tempo disso agora... Agora eu sou só um palhaço desorientado, tentando encontrar novamente o ato que tenho de representar nesse circo patético que chamam de realidade. Eu lembro que eu tinha uma função... Mas qual seria ela mesmo?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Monóxido (precedido por uma introdução explicativa e semi-útil)

Anteontem a frase me veio à cabeça, enquanto eu andava pela Universidade: "O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies". Me pareceu algo beatnik, que poderia mesmo abrir um conto e, quem sabe, esse conto poderia até mesmo ficar bom! Ontem de manhã, para não perder a frase, comecei a escrevê-la enquanto tomava café. A frase me tomou ali, canalizando a possessão demoníaca frasal através do teclado do notebook. Ela se expandiu, virou um período extenso e cheio de orações, que deu as mãos a mais alguns parágrafos, mas eu estava atrasado, e tive de deixar aquela tribo de frases esperar pela minha volta.

Ontem à noite, terminei o conto, e me orgulhei dele ao reler (e alterar uma porrada de coisas), mas estava tarde demais para publicá-lo aqui. Afinal de contas, meu maior meio de divulgação é o Facebook, e pouca gente estava online naquela joça às 00:23. Portanto, lá vai o conto que começou num dia, terminou no outro, e foi postado em um terceiro ainda. Espero que gostem (E QUE ME DIGAM SE GOSTARAM OU NÃO!). Lá vai ele:

Monóxido


O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, fumando seus cigarros como se eles fossem feitos de oxigênio, perspirando violentamente a benzedrina, a codeína, a cafeína, a cocaína e quase todos os membros dessa família de sufixos. A simples chegada dele (em um trem, alguns diriam, ou talvez tivesse sido um ônibus, ou a quantidade de estimulantes em suas veias o permitiu vir correndo dois estados até esse lugar, quem sabe?) causou um estardalhaço em todas as camadas da cidade, especialmente nas camadas invisíveis, espectrais, imateriais, místicas e psicológicas. Todos se abalaram. Todos sabiam que algo estranho e especial e (de forma relativa) sagrado estava acontecendo por ali, escondendo-se por trás de cabelos desgrenhados, fios desiguais, desajustados e subversivos de barba mal-feita e uma camiseta dos Mutantes que ele não tirava nem para tomar dura da polícia. 

O garoto chegou à cidade falando de bandas de que ninguém nunca tinha ouvido falar, e de como o jazz mudou sua vida, em uma noite acelerada e tempestuosa, sobre como ele encarou os trovões de frente, rindo como um maníaco desesperado, e sobre como os trovões fugiram de sua muralha de trompetes e saxofones gritados a todo o potencial do diafragma. Falou de blogs de literatura subversiva na deep web, falou sobre o tráfico e o escambo de drogas, armas, artigos raros e anjos. Falou sobre os portais, e como eles cismam em se esconder por trás de molduras de cotidiano sem-graça, falou sobre as gigantescas, arquitetônicas, intrincadas e sombrias cidades que existem no interior das mentes dos homens. Ele falou muitas coisas. 

O garoto chegou à cidade, procurando pelo fogo que queima por trás de cada prédio, a chama refletida em cada janela e na porta de cada elevador, a pira de urbanismo que faltava em sua própria cidade. E todos os ratos de beco, todos os renegados e os invisíveis arderam em esperança quando ele subiu em um palanque e começou a contar-lhes sobre os mundos além do nosso, e as almas alienígenas e abstratas que pairam nas sombras e parecem Jim Morrison (elas sempre parecem Jim Morrison). E quando ele teorizou sobre as estradas que partem para a morte certa, e sobre estados inteiros escondidos entre as árvores, nos quais o sol queima forte o tempo todo e a fome e a sede são apenas memórias esquecidas. E quando ele desenhou os mapas entre os postes para guiar aqueles com a real fé, com a real loucura e o real compromisso na direção das cidades imaginárias (ainda maiores do que aquela) onde as lâmpadas elétricas estavam sempre piscando, convulsivas, vivas, enraivecidas, desejosas. Onde as pessoas não tinham compromissos que as desviassem de seus reais propósitos enquanto pessoas. E todos os mendigos o ouviam, sem entender, quando ele falava sobre as ondas sonoras, e as ondas radiativas, e as ondas do caos e do píer e das sombras, e sobre tantas outras ondas e cordas e supercordas que todo o raciocínio era inviabilizado em mantras iluminados. Ouviam quando ele teorizava sobre drogas intangíveis, sobre como havia laboratórios além do alcance da vista, escondidos em cada esquina, sintetizando o mais puro destilado de emoções, barrando-as em tabletes, em pílulas, escondendo-as em agulhas vulgares: a mais real felicidade dentro de uma seringa azulada. Euforia-de-mascar. Responsabilidade ou realização enroladas em papel de fumo. 

Ele falou sobre tudo, e quando as palavras pararam de existir ele continuou domando-as, reaproveitando-as em discursos sustentáveis, animadores, reciclados, desconexos. Falava de como Chico Science era uma força elétrica da natureza (que retornou para a natureza), de como os Secos & Molhados eram o mais claro exemplo de possessão de seres humanos por espíritos de arte, e sobre como Tom Waits observava todas essas coisas, entre mistérios naturais e seres de outras realidades. Tom Waits, na face os olhos detidos apenas por aqueles que sabem realmente o quanto o mundo é um lugar estranho e de leis maleáveis. Chegou à cidade com tudo isso a borbulhar nos giros de seu cérebro, a entupir suas veias e escaldar seus lábios. E fez residência nomádica entre os latões de lixo, e perto dos trilhos dos trens, e escondido em meio a tábuas. E desvendou as paredes pichadas com as escrituras das religiões que nascem todos os dias nas mentes dos desajustados. E enfrentou, física e metaforicamente, as várias bestas cheias de olhos que espreitam os solitários em busca de mais olhos. 

O garoto chegou ao coração da cidade, com as mãos trêmulas de um santo bêbado, marcando suas passadas como cicatrizes de vida no asfalto e nas calçadas, chegou desafiando e destronando as autoridades e questionando as formas de governo. E explodindo o conceito e a arquitetura dos edifícios com sua mente tão poderosa quanto fora de seu controle, raios eclodindo como larvas de seus dedos desvairados. E experimentando todos os ambientes que permitissem sua entrada. E forçando sua entrada (por meios escusos, místicos, silenciosos e secretos) em todos os que não a permitiam, apenas para experimentá-los também. Fazendo sexo com as mulheres, os homens, as formas de vida microscópica, as emoções, as mentes, as paisagens, com o coração da cidade, pois para ele o sexo era apenas uma explosão extracorpórea como qualquer outra. E se declarou messias, se declarou demônio, traidor, profeta, fiel, templo e latrina, na intenção de se declarar mentiroso logo após e gargalhar disso, com a intensidade de um tornado gargalhante, e sábio, e mentiroso. Ele conversou na língua dos cães, desafiou os corações e os desejos dos gatos. Uivou ao olhar para as guitarras que soam no espectro escondido da cidade, ao encarar a real face desse lugar. Uivou como se estivesse em batalha, uivou como antes uivou Ginsberg, e uivou toda a sua alcateia de amigos escritores. E se atirou, rosnando, em direção ao Sheol, à Gehenna e ao Tártaro que são a pinacoteca residente no espírito real da cidade, sabendo que a chama que veio buscar estaria ao seu lado em um momento como aqueles. E se reergueu vitorioso em meio a um pôr-do-sol especial, encharcado em suor e luz, as mãos trêmulas finalmente pacíficas e descansadas (ou talvez estafadas demais para tremular), sabendo ter vencido e possuído e ejaculado seu maior e mais urbano desafio terrorista e revolucionário. 

Passou noites e mais noites acordado, engolindo tudo o que poderia ser bebido, junto a outros loucos visionários (que também chegaram à cidade em meio às suas músicas particulares) em recitais sem-fim, indecentes pelo conteúdo e pela forma. Grandes saraus ao ar-livre sob viadutos ancestrais cravados com runas, saraus indigestos, cheios de obscenidades e profanação, que se faziam lindas aos ouvidos daqueles capazes de despertar. Piro-mania, piro-fagia, piro-óptica. Tudo dentro dos olhos espelhados do garoto, aquele que chegou à cidade atrás de tudo isso. Aquele que chegou à cidade e juntou legiões. Aquele que absorveu e se misturou a todos os que conheceu, um grande aglomerado canceroso de essências humanas, uma hidra de infinitas cabeças de dimensões incompreensíveis, a espreitar e ameaçar o núcleo da cidade. Aquele que acordou em meio a locais estranhos e extraterrenos em meio a tardes belas e sussurrantes, a tempo de almoçar largas refeições do Oculto. O garoto estava entre os seus, versando, hipnótico, seus salmos de subversão, empolgado, nadando em glossolalia e sonoridade. 

E apenas os aflitos olhos dos indigentes viram quando seu corpo desapareceu, substituído por luzes de cores inéditas. São estes olhos as únicas e escolhidas testemunhas de seu fim, quando seus tênis e seus cabelos e sua carne de garoto se desfizeram numa mesma malha de inexistência e morte. Ascendendo para sempre, destruído pelo que veio buscar, consumido pela pira que não conseguiu encontrar em sua terra natal. O jovem xamã, aprisionado para sempre na gaiola mágica que construiu para si. Morto. Morto pela quieta revolução que foi sua filha. Morto pela cidade que tanto buscou. Morto pela conquista. Por si mesmo. Pela canção que o embalou até esse momento. Pelas drogas que moveram seus passos. Absorvido pelas camadas invisíveis e pelas almas abstratas que pareciam Jim Morrison. Canibalizado pelos ideais que tanto pregou. Arrancado de si mesmo, como a camiseta dos Mutantes que a polícia puxou, exibindo a nudez de suas entranhas simples de garoto, a pele tatuada, obscurecida por hábitos insones e orifícios de saída. Gangrenada por completo por sua natureza de morto-vivo. E, por fim, explodindo em uma única luz incandescente, esvaindo-se em energia, abstraindo seu empirismo, assumindo sua real forma: Uma ideia nuclear, uma reação em cadeia fosforescente, uma energia capaz de ferir. 

O garoto chegou à cidade em meio a uma música dos Pixies, na forma de um conceito abstrato que se fixou permanentemente, como monóxido de carbono numa hemácia corrompida. E, na forma de fumaça luminosa, por lá o garoto ficou. E nunca mais deixou a cidade, convertido na chama que buscara.






P.S.: A ideia inicial do Tom Waits como um místico / exorcista / conhecedor da parte oculta da realidade é crédito de Caio Fittipaldi Kenup, e ele deve ter seu nome exposto aqui!

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte III, seguida da Parte III e um pedido final desesperado

É hoje a data da conclusão do conto que é tão hipster que nem os hipsters estão lendo. E a culpa disso é de você, leitor, que vem até aqui, lê o conto e não passa adiante. Seja parte você também dessa história: Compartilhe o link para os seus amigos. Uma campanha da Unidade Central de Desapontamento. Governo Federal.
Não! Governo Federal, não! Não quero greve no meu blog por conta de má-administração! Bem, vamos logo à Parte III. A menos, é claro, que você ainda não tenha conferido nem a Parte I e nem a Parte II. Boa leitura!

Febre - Parte III



Crônica,

Eu sei que você me conhece há apenas algumas horas, ou talvez nem isso... E se você aprendeu alguma coisa com o escritor, que é meu amigo e que foi mencionado acima, não é de esperar nada de mim, ou da minha vida, ou mesmo da sua vida de crônica. Mas, ainda assim, acho que você vai ficar tão impressionada quanto eu com o que acaba de me acontecer próximo à cafeteira. Se o café da Dona Jurema estava melhor? Não sei, mas imagino que não. Acontece que eu mal senti o sabor do café, porque todos os meus sentidos biológicos, e até mesmo alguns sentidos especulativos estavam voltados para uma nova companheira de trabalho, que fica no Setor 2 do escritório, e que estava lá tomando café também. Ela parece ser mais ou menos uns dois anos mais nova do que eu apenas, mas não conversei com ela o bastante para descobrir isso a fundo. Quando eu cheguei para pegar o café, porém, lá estava ela, comendo uma broinha de milho para acompanhar seu copo de açúcar-negro.
Para começo de conversa, ela olhou para mim. Não como as pessoas olham normalmente umas para as outras. Especialmente, não como as pessoas olham normalmente para mim. Não lembro de mulheres olhando na minha direção como ela fez, dentro dos meus olhos que ardiam em “Febre do Cubículo”, no meu rosto mal-barbeado (e cheio de falhas na barba), no meu cabelo meio grande, meio rebelde, meio “eu ainda não descobri que tenho vinte e oito anos”. Tá certo que a contrabaixista de jazz olhou para mim quando eu a conheci, com seus olhos melodiosos, mas ela estava encarando meu terno alugado. Eu não estou de terno hoje, eu nunca estou. E aquela menina olhou para mim, mas essa não é nem de longe a melhor parte. A melhor parte veio na mágica evolutiva que ela causou, um totem da seleção natural, ao encher os seus pulmões com um ar sem-graça e completamente silencioso e colori-lo, convertendo-o como uma máquina perfeita nas seguintes palavras:
— Cara, você precisa mesmo de um café, hein?
Eu demorei a entender que era comigo. Mas, por sorte, essa demora aconteceu apenas na minha mente, Crônica. Eu não fiquei de fato olhando para ela estupefato como um macaco de escritório. Mas quando percebi que era comigo, eu retruquei:
— Ah, é. Preciso mesmo... — Respondi. — Pena que esse não seja dos melhores.
Devo confessar que parte do meu tom de voz na última frase continha a vontade de que a Dona Jurema ouvisse, começando a incubar a síndrome que realizaria meu sonho-acordado num futuro próximo. Mas eu não precisaria de três ex-mulheres, e muito menos de qualquer amante. Eu teria os cinco filhos de uma vez com apenas uma mulher: A menina à minha frente. Ela se vestia com um estilo um pouco hippie-urbana, um pouco urbana-urbana, parecia vir de algum bairro nobre da cidade, mas sem nenhum tom de esnobismo. Parecia culta, parecia simpática, parecia um segundo sonho-acordado.
— Se você conhecesse o café do Jornal no qual eu era estagiária, você escreveria uma matéria de capa sobre esse daqui.
— Pois é, eu ia comentar que ainda não te conheço... Você seria...?
“Larissa” é o nome dela. “Larissa Puerto”. Sobrenome espanhol. Eu gosto de sobrenomes espanhóis, sei que combinariam com o meu.
— Eu fico com as Artes agora. — Disse ela, me abrindo oportunidade para finta.
— Uau, você fica com as artes? Que honra ter alguém assim no jornal!
— Hahaha, seu bobo! Eu sou responsável pela seção de artes, tá satisfeito agora?
— Muito. Bem, eu sou escritor, trabalho aqui como cronista.
— Escritor, ou cronista?
— Eu trabalho aqui como cronista... Mas estou escrevendo uma ficção também. — Foi aí que o nervosismo começou a se dependurar em mim. A cicatriz das inúmeras gravatas que já vesti foi se apertando, e as palavras maiores foram ficando retidas. As frases e ideias iam represando-se entre as mãos do nervosismo, permitindo que apenas as palavras menores passassem. Tinha de ir embora enquanto ainda não estava parecendo um idiota. — Vou entrar de licença amanhã, devo trabalhar um pouco nela.
— Licença? Tá tudo bem?
— Tudo, tudo... Sabe como é, um pouco de estresse.
— “Febre do Cubículo”?
— É, foi o que o psicólogo falou! Hehe...
— Dizem que é um pouco preocupante mesmo. Se cuida, hein? Tenta trabalhar nesse seu livro e, talvez um dia, eu fique com o lançamento dele.
— Você diz... Escrever...
— É, seu besta... Cobrir seu lançamento.
— Me cobrir, hehe... Seria legal! Vou tentar fazer um bom trabalho, então. Um trabalho à altura.

E me despedi. Agora eu só tenho de finalizar você, minha crônica-confessionário. Fechar você e trabalhar em uma irmã mais nova, em uma irmã menor, possível de se espremer em uma coluna tão apertada quanto a minha. Depois voltar para casa para ficar melhor, para cuidar da minha saúde, e do meu livro. Acho que dessa vez eu consigo avançar com aqueles capítulos problemáticos, e tornar alguns diálogos um tanto mais espontâneos. Tudo o que eu preciso é trabalhar um pouco no livro, e me afastar desse escritório por uns dias. E aí continuar a conversar com a senhorita Puerto, trazê-la cada vez mais perto do meu mundo, apresentar a ela os meus hobbies, os meus defeitos, o meu amigo escritor...
Não! Talvez ele não. Não por hora, o cara é muito mulherengo, e muito cheio dessa autoconfiança niilista de “não acreditar em nada”. Deixa eu curtir a menina um pouco só para mim. Tenho certeza que eu e ela passaremos boas noites, discutindo literatura e pinturas, e ela vai gostar de ouvir a minha opinião sobre a arte-de-rua. E falaremos de livros de mistério e de Douglas Adams durante o banho. E ela provavelmente tem a mesma paixão que eu pela culinária, e adorará que cozinhemos juntos, ao som de Miles Davis...


Bem, pessoal, foi esse o Conto que eu escrevi no Domingo. Gostou do conto? Gostou do personagem (que não é inspirado em mim, o personagem inspirado em mim é amigo desse)? Deixem a sua opinião ali embaixo, para que eu me sinta amado ou odiado.

Aliás, por favor, se der para compartilhar essa joça com as pessoas à sua volta que gostam de ler, eu agradeço imensamente. Convençam-nas a ler, quem sabe elas gostam? É uma boa forma de divulgação da minha escrita e, por mais que o estilo do "Febre" tenha pouquíssimo a ver com meu estilo regular, divulgação é sempre positiva. Pode me ajudar a publicar coisas algum dia!

Muito obrigado,

Bruno.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte II, e a Parte II propriamente dita

Essa é a segunda e penúltima parte do conto "Febre". Se você for grande fã dos filmes do Christopher Nolan ou outros tipos de narrativa não-linear, acho que não ficará tão chateado assim em ler a Segunda Parte antes da Primeira. Mas eu aviso que esse conto não foi escrito pelo Jonathan Nolan e, portanto, foi pensado de forma linear. Caso você queira respeitar a ordem que o autor deu às coisas, clique aqui para ler a Parte I.

Bem... Para vocês que já leram o início, terminamos quando o nosso protagonista estava relatando os comportamentos que deveria evitar para que se recuperasse da sua "Febre do Cubículo", o que diabos seja isso! Aliás, para vocês que já leram o início, eu não preciso ficar contextualizando porra nenhuma nada, porque imagino que vocês tenham uma boa memória. Portanto, pulemos logo à Parte II:

Febre - Parte II



Ah! Chega disso! Todas essas coisas, todos esses pequenos vícios retroalimentam minha insatisfação, e essa é a raiz do meu problema. Não é o Rui, da seção de esportes, e sua conversinha de fim de semana sobre igrejas e sanduíches defumados raros, e viagens com a família. Nem a Vanessa, da seção de economia, e suas fórmulas mágicas para enriquecer, aplicando seu dinheiro nas empresas certas. Não é a dona Jurema (Jussara? Jurema?) que sempre faz o cafezinho adoçado e antidiabético demais. Claro que eles têm a parcela deles de culpa. Mas não é por conta deles que eu não consigo me concentrar. Não é por conta deles que eu não estou conseguindo escrever essa porra dessa crônica de despedida. A culpa disso é minha. Eu sofro de stress pós-traumático, e o trauma em questão é a vida. A culpa disso é minha, e por mais que seja tentador culpar a minha insistente falta de sorte (lembro-me da fala de um filme: “Toda vez que eu tenho algum tipo de sorte, é má-sorte”), a minha visão das coisas não me ajuda muito a me animar. Eu tenho um amigo escritor que tem uma visão muito agradável do mundo:
“O mundo é uma total porcaria!”, ele diz, “Com o caos espreitando em todos os cantos, te oferecendo o bom e o ruim, te excitando e te deprimindo, te fazendo sangrar e orgasmar. Não dá para esperar nada do mundo, não dá para esperar deus do mundo, não dá para esperar alegria ou tristeza do mundo. A gente pulsa nessa poça de probabilidades imprevisíveis, nós mesmos sendo um monte de impossibilidadezinhas respirantes. Só que a gente usa gravatas e reclama do ar-condicionado. Nenhuma vida foi prevista para acontecer nesse cosmo, e a pouca que acontece nos planetas por aí acaba sendo retribuída com um monte de ironia. Você vê, cara? Isso é que é um mundo maravilhoso! Quando você pára de cobrar que ele te faça feliz, você descobre o que é, de verdade, ser feliz. É aí que reside toda a magia, e é por isso que eu amo esse mundo!”
Eu penso de uma forma razoavelmente parecida. Mas enquanto aquele escritor-cervejeiro-maluco pensa que o caos faz o mundo ser algo maravilhoso, eu me deprimo ainda mais. E acabo, mesmo que inconscientemente, esperando algo que o mundo não tem a obrigação de me dar. Criando expectativas para acompanhar as situações tímidas, os acasos fortuitos, as pessoas randomicamente dispostas no dia-a-dia. Acho que todos traçamos alguns padrões sobre como os outros deveriam agir, não? Ou seria eu um tipo estranho de gente, aquele tipo de gente fadada a uma existência infeliz, porque impõe ao mundo a responsabilidade de felicitá-lo? Meu amigo sabe que não se deve esperar nada dos outros, ou do acaso. Ele não espera, e é feliz. Eu, por outro lado, dotado dessa mesma certeza, escolho acortinar minhas esperanças com a estupidez obstinada de quem aposta em um cavalo sem pernas. Talvez seja essa a diferença entre o cronista e o escritor. O psicólogo do convênio do Jornal diria que existe uma grande diferença. Diria que eu não estou tendo “bloqueio de escritor”, eu estou tendo uma “dificuldade de cronista” que é, claro, um dos desdobramentos da minha “febre do cubículo”. É o que me fez perder mais de uma hora hoje cedo, lendo notícias online e pressionando F5 na minha página de e-mails à espera de uma salvação ou uma epifania. E é o que me fez ter a ideia de digitar esse bando de baboseiras para, pelo menos, parecer que estou trabalhando em alguma coisa. “O próprio conceito de cronista”, diria ele, “é primitivamente diferente do conceito de escritor. A sociedade não os encara da mesma forma, pois eles servem a musas completamente distintas. E, logo, a sua mente não os encara da mesma forma. E é por isso que a raiz empírica do seu problema está em outro ponto. Não podemos encarar isso como um simples ‘bloqueio de escritor’. Esse foi o erro de três gerações da psicologia, e cometer esse erro novamente seria negar mais de cinquenta anos de evolução. Creio, porém, que eu não vá ter, sozinho, a base para chegar ao motivo do seu problema. Mas é claro que ele tem a ver com o seu episodiozinho de ‘febre do cubículo’, não é mesmo, campeão? Hehe! Mas conte-me um pouco: Com o que você sonhou hoje?”.
Eu não me lembro dos meus sonhos há semanas. Mas nesse momento, de frente para o meu computador, os olhos tão objetivamente abertos quanto é possível, eu sonho. Sonho que me levanto e saio de meu cubículo, o meu tão amaldiçoado cubículo, tendo em vista os conceitos mais modernos da ciência do estudo da alma. Sonho que passo pelos mini-setores onde as pessoas discutem o comportamento dos filhos umas das outras, e as melhores raças de cachorro, e o que fazer com a happy hour de sexta-feira e o que comprar para bajular os superiores em seus respectivos aniversários. Sonho que alcanço uma cafeteira, que é diferente da cafeteira rotineira, pois está afastada de mim pela distância infinita entre a realidade e o hipotético. É diferente da cafeteira rotineira porque foi outra pessoa que a preencheu de café ou, melhor ainda, porque a Dona Jurema-Jussara-Jurema acaba de ter um acesso de um distúrbio psicológico que nada tem a ver com a “febre do cubículo” (apesar de também envolver uma série de mazelas única e completamente relacionadas a problemas que acontecem em um escritório). Sua ainda indigente síndrome a levou a preparar o café com alguns quilos a menos de açúcar refinado, numa tentativa falha de demonstrar o ódio que ela vinha alimentando há tantos meses. E então a própria doença mostra-se como a cura de si mesma, pois a Dona Jurema começaria a se sentir muito amada no serviço, tão logo os elogios fossem feitos ao café, e o Jonas da contabilidade comentasse que tomou apenas um quarto da sua dose regular de insulina. No meu sonho, todos ficam felizes. O meu café, adoçado a um nível apenas próximo da letalidade, me inspira a escrever não apenas uma crônica, mas três. E ele continua fazendo efeito ao longo de semanas, e eu termino a minha ficção científica, e começo um romance épico sobre índios, e uma alegoria filosófica sobre uma padaria na Florença do século XVIII. E então, graças ao café do sonho, eu ganho o Pulitzer, e morro feliz, por saber que apenas o veículo de minhas palavras morria, mas não os textos em si. E em meu funeral, meu corpo morto e destituído de sentidos seria testemunha dos olhares tristes e saudosos de pelo menos três ex-mulheres, e pelo menos três ex-amantes, e pelo menos cinco filhos. No meu sonho, eu venço a vida. No meu sonho, o caos torna-se meu amigo graças a um enigma envolvendo autoconfiança e cafeína. No meu sonho é o meu amigo escritor que comenta sobre a minha visão de mundo.
Na minha realidade, porém, eu sei que vou me levantar, deixar esse cubículo, andar minha finita caminhada até a cafeteira, durante a qual terei de ouvir as conversas sobre futebol e piqueniques e pet-shops, para ser recompensado apenas com o mesmo café-homicídio-culposo de sempre. E nada mais. Volto a você em breve, minha crônica-morta-viva que não será publicada jamais.

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(Literalmente, pausa para o café. Literalmente, ela demorará até amanhã para vocês que estão lendo no Blog :D Não percam a emocionante e controversa conclusão amanhã, nesse mesmo blog -- Se alguém não hackear meu computador.)

P.S.: Quem de vocês conseguiu pegar o "cameo" de mim mesmo nesse conto?


(a Parte III, contendo a emocionante conclusão na qual os aliens invadem a Terra e possuem as mentes de todo mundo no Jornal já está disponível aqui. Confira!)

domingo, 2 de setembro de 2012

Febre - Introdução e Parte I

Oi, gente! Hoje eu tirei o dia para escrever um conto que me brotou na cabeça. Ele ficou grande demais para um Blog, portanto devo postá-lo em três ou quatro partes e aí vocês vão lendo com calma. Espero mesmo ver comentários ali embaixo, uma vez que contos são muito mais importantes para mim do que posts num blog, OK? E, claro, espero que gostem dessa joça.

:)


Febre - Parte I


            “Febre do Cubículo”. A chamada “Febre” ou “Síndrome do Cubículo” nada mais é do que um desses tipos modernizados dos clássicos problemas de histeria e stress. Eu estou estressado, não estou com “Febre do Cubículo”. Por mais que o psicólogo tenha tentado explicar a origem do termo, a razão pela qual meu problema se difere de qualquer outro tipo de desgaste psicológico não consegue entrar na minha cabeça. É claro que eu estou cansado do meu escritório e do meu estilo de vida. Quem não estaria, afinal? Mas daí a inventar uma nova síndrome para aqueles que, como eu, sentem vontade de enfiar os minigrampeadores de mesa pela traqueia daqueles a sua volta e apertar o botão ejetor até que todos os grampos tenham se acabado... Isso não faz nenhum sentido.
            Acho que é uma tendência da psicologia moderna... Como os estudos avançam mais rápido do que a capacidade das pessoas para inventarem doenças realmente novas para si, eles acabam tendo de setorizar e burocratizar as síndromes já existentes, tratá-las como entidades separadas, estudá-las a fundo e até a exaustão. Acabam tendo de explicar porque jornalistas e corretores de impostos e programadores sofrem da “Febre do Cubículo”, enquanto motoristas de ônibus sofrem da “Síndrome do Volante”, geneticistas sofrem da “Síndrome do Laboratório Apertado” e neurocirurgiões sofrem da “Febre da Sala de Lobotomia Transorbital”. Será que essas síndromes compartimentalizadas também sofrem da febre do cubículo? No fundo, acho que somos todos um bando de desesperados, tentando rotular o desespero uns dos outros.
            A questão é que eu estou aqui, na minha saletinha de meio metro cúbico no escritório do Jornal e, apesar da mente extremamente dialética ao analisar a “Síndrome do Caralho a Quatro”, não consegui digitar uma palavra sequer da minha crônica. Logo essa crônica. Logo uma crônica de despedida antes da licença médica, durante a qual eu devo tentar relaxar de verdade, e não apenas recair em algum dos vícios de sempre, como uma tentativa autolimitada de aliviar o estresse: Não devo ficar jogando pôquer online e perdendo, bit por bit, meu salário de cronista (que não é nem freelancer e nem um funcionário de verdade). Não devo ficar assistindo vídeos de pornografia, mostrando mulheres que eu nunca teria a capacidade de agradar beijando outras mulheres que eu nunca teria capacidade de agradar, a navegação anônima do meu browser ligada (por uma paranoia injustificada, uma vez que eu moro sozinho e pouco me importaria a opinião a meu respeito formada por um ladrão de computadores em potencial). Não devo tentar mexer na minha obra de ficção científica, que nasceu como uma tentativa dupla de sucesso (Conseguir um Pulitzer; Conseguir usar a arte como terapia), e duplamente frustrada pelo fato de que eu daria um péssimo Arthur C. Clarke (o que aumentou ainda mais a minha necessidade de terapia). E o campeão de todos os vícios para se evitar ao longo de uma licença médica devido à “febre do cubículo”: Não devo ficar lembrando-me de todos os meus relacionamentos passados ou hipotéticos, o primeiro tipo compreendendo aqueles consumados com mulheres que nunca teriam a capacidade de me agradar, e o segundo com mulheres que, na maioria das vezes, sequer existiam. Ou pelo menos, sequer existiam da forma como eu as idealizava.
Era o caso daquela bela escritora que conheci numa vernissage de abertura para uma exposição peculiarmente ruim. Eu achei que uma senhorita com aquele sorriso, que entendesse tanto de vinhos chilenos e literatura inglesa seria uma companheira requintada, com um olho clínico perfeito para uma boa oportunidade de relacionamento, que saberia temperar com muita calma um namoro intenso, vívido, cheio de cores e viagens. Que saberia se entregar e se conter na medida certa, jogando um jogo cooperativo, e não uma competição. Ela acabou sendo uma dominatrix com práticas sexuais absurdas e brinquedinhos assustadores, que odiava o fato de não conseguir se relacionar com outra coisa que não as criaturas odiáveis que são os homens, que ela realmente detestava. Ou então aquela contrabaixista de jazz linda, pequenininha e tímida que escondia, por trás daquele imenso corpanzil acústico de madeira e cordas, o fato de que ela tinha uma das mais potentes e doces vozes que o mundo da música esperava para conhecer. Ouvindo seu discurso dialético e bem-construído a respeito de como o mundo merecia ouvir mais krautrock e menos música eletrônica cheia de batidas, e sobre como os pais dela a levaram à Louisianna uma vez, quando ela era uma criança, e retornou ao Brasil cheia de sonhos e LP’s da Nina Simone... Ouvindo a canção quieta que seus olhos tocavam sobre o meu terno alugado (odeio ternos)... Eu me apaixonei ali, na convenção mesmo, e imaginei diversas noites nas quais nós, mamilos a conversar com o ar da noite, escutaríamos Sinatra e assistiríamos filmes antigos e misteriosos antes de dormir, doses de conhaque e sorvetes de amêndoas. O que eu não imaginei é que ela tomaria doses e mais doses de conhaque, e me trairia com o saxofonista quarentão pai de família antes mesmo do nosso primeiro encontro. Ou então...




(confira a continuação aqui! Ou seja um apressadinho e vá logo para a parte final do conto aqui, descontextualizando todo o final :D)