segunda-feira, 24 de junho de 2013

Palidez - Parte 2

            Estou com muito, muito frio. Já faz duas semanas que estou doente, e o termostato da base não tem feito nenhuma maravilha. Eu tenho alucinado com coisas, palavras que surgem brilhando no escuro, grandes estátuas de povos esquecidos, olhando para mim com aberrantes olhos imperativos de argila. Tenho escutado algumas vozes metálicas a se locomoverem e gargalharem de mim ao longo da Base-Piloto. É tudo uma merda. Minha urina queima ao sair de mim, deixando uma dor rancorosa por estar sendo rejeitada. Mas o pior de tudo é a constante sensação de que existem coisas nos meus músculos: Eles doem, eles estão todos estafados (especialmente braços e abdômen), e ainda assim tremem em espasmos engraçados o tempo todo. Meu corpo está mais vivo do que eu, e isso é uma situação deprimente pra cacete. Recosto minha cabeça na mesa, desiludido, e começo a pensar, na tentativa de me distanciar daqui.
            Esse planeta é úmido. Eu senti o frio assim que eu cheguei, mas não imaginei que a sublime mágica da febre funcionaria tão bem para fazê-lo piorar. Coloquei a culpa da dificuldade em me locomover no longo período de hibernação dentro da nave (um clichê de viagens espaciais, que quase chega a me divertir), mas logo me lembrei do que diziam os relatórios dos robôs-pioneiros: A gravidade daqui é um tanto maior do que a da Terra. Não mais de três vezes, eu acho, mas isso já faz com que o ato de viver torne-se muito mais incômodo do que já o é por natureza. O relatório daquelas máquinas também dizia que existe uma biodiversidade exuberante por aqui. Quando eu desci da aeronave, o corpo dolorido e as articulações duras, e os olhos ardendo pelo sono resquicial induzido pelas drogas-de-hibernação que ainda me corriam pelas veias, tudo o que eu conseguia ver (além da base cinzenta, e dos esqueletos das máquinas tristes que a construíram) transpirava uma vida alucinógena e constante... Vegetais arroxeados de várias espécies, visitados por grandes animais (alguns voavam, e outros eram parecidos com os grandes pastadores que vemos na Terra. alguns eram translúcidos como peixinhos de aquário, e até os órgãos deles eram belos). De fato, esse planeta nomádico e indigente tem uma diversidade incrível de formas de vida para serem extintas pelo nosso progresso. E a minha função nisso seria a de digitar linhas de comando: Um verdadeiro profeta de um apocalipse artificial.
A umidade do ar é viscosa, mesmo aqui dentro da base. Do jeito que andam as coisas com meu abdômen, logo eu não aguentarei tossir como eu estou tossindo, ou respirar como eu estou respirando. Resta apenas recontar essa fábula irônica de desespero e tomar remédios que sequer fazem sentido, fazendo o possível para ignorar os grandes dentes que parecem brotar do teto e sorrir para mim, os corpos putrefatos de crianças correndo pela nave (talvez os filhos que nunca tive), e os grandes insetos iridescentes que ficam caçoando de mim com seus zumbidos amorfos em sânscrito. Deitado em minha cama desconfortável (como qualquer coisa poderia ser confortável?), observo as luzes do quarto enquanto elas derretem feito aquarelas psicodélicas frente a meus olhos de febre, meus olhos-braseiro, que ardem como a Condenação, ou como o coração perverso do Etna. Penso ver uma adaga se movendo nas sombras (que também derretem), e a paranoia e a taquicardia me comprimem a garganta e causam dor. Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
Desmaio pela terceira vez.
Dessa vez, vejo-me andando por aquela praia artificial, o sol falso a brilhar no céu de plasma. Minha esposa está ao meu lado, e ela se deslumbra com a ilusão de que aquele firmamento alcançável é algo próximo do real. Mal sabe ela que estamos em uma redoma, que flutua em uma pilha de lixo tóxico e entranhas, e almas nucleares de vítimas de uma série de holocaustos. No meu sonho, eu sinto meu corpo a tremer na cama, anos-luz de distância dali, em outro firmamento alcançável, infinitamente distante da radiação dos trópicos. Eu sinto meu desconforto do futuro, e ele decanta em minha barriga inocente na forma de um mau-pressentimento. No meu sonho, minha esposa me abraça, e diz que tudo ficará muito bem. Eu sei que ela não acredita nisso, sei que é mais fácil para ela acreditar no sol artificial (que provavelmente fui eu mesmo quem programou, numa ironia anacrônica) que nos bronzeia de tumores em potencial do que acreditar de verdade na projeção de que tudo ficará bem. “Nada ficará bem, querida! Olha para mim, no futuro, ardendo em febre, morrendo aos poucos de uma doença que ninguém nem terá chance de estudar para que ela ganhe um nome!”. Ela não entende nada do que eu estou falando. Diz que eu estou alucinando. Um ano e dois meses no futuro, eu estaria realmente alucinando. Por um momento, acredito na realidade mal-desenhada do sonho. Acredito que eu tive, naquelas férias, o pressentimento, a visão de que tudo iria mal nessa viagem. Eu soube, por uma fração de segundo, por algum artifício da quântica que o tal do Hawking que eu estudei no Ensino Médio não chegou a ser capaz de entender antes de morrer... Eu soube de tudo o que aconteceria, mas as ondas de água salinizada artificialmente se misturaram às ondas de ambição, e a carreira, e a remuneração, e os apenas dois casos entre vários sucessos, e os olhos da esposa, e as maletas elegantes... E não haveria nenhum pressentimento que me permitisse fugir dessa viagem, dessa tragédia que o Determinismo havia de me entregar numa bandeja, junto a uma salada de plantas roxas, e à carne translúcida de belos animais.
Desmaio pela quarta vez, e agora tudo são panos negros e retalhos de memórias que sequer são minhas. Vejo através dos olhos de um colonizador, morrendo pelo veneno de uma serpente tropical. Não existe medicina nesse lugar, e a mim só resta tremer, e amaldiçoar, e beber aguardente de péssima qualidade, enquanto espero que as pálpebras de minha alma se fechem.
Vejo através dos olhos de uma donzela na Inglaterra Vitoriana. Aquela adaga me penetrou quase gostosamente as costelas, beijou-me por dentro como uma deusa, e agora toda essa luz que me invade os olhos pertence a mim. Tusso sangue, deixando para trás algumas gotas de minha humanidade. Sou uma deusa agora, em um palácio de luzes claras.
Vejo através dos olhos quentes de um mendigo. O silencioso anjo da tuberculose bate suas asas dentro de meus pulmões, fazendo com que eu tussa para fora de mim pedaços enegrecidos da minha consciência. Ele me purifica aos poucos. Em breve, ficarei gelado como a noite, eu sei... E as pessoas olharão para mim e dirão: “Pobre coitado.”, sem nem se perguntarem o que eu fiz em vida. E o silencioso anjo da tuberculose terá terminado sua purificação, e estará livre para salvar outro mortal...
E salto de corpo em corpo: doses penetrantes de morfina para responder ao idioma do câncer; dentes de lobos que cravam-se na carne e nas vísceras escuras, criando padrões divinatórios sobre a neve; um vírus que consome as células, subjugando-as como um regime ditatorial, abrindo as portas para o Reich da Peste, e todas as doenças me consomem; radiação esverdeada e quente a me cobrir a pele como um lençol: num momento estou aqui, no outro sou apenas mais uma vítima em um batalhão de friorentos; a fome.
Desmaio pela quinta vez. E pela sexta vez... Talvez não aguente até a décima.
...


            Acredito acordar e, alguns minutos depois, acordo de verdade. O tempo de reação é lento, por isso não grito ao vê-lo. Provavelmente é só uma alucinação como outra qualquer. A alucinação não se dissipa: É uma pessoa. Um homem alto e pálido, gigante. Um Golias vestido e composto de branco gélido, com olhos que fitam o corredor. Ele está sentado ao lado da cama desconfortável, o sarcófago que me abraça, respirando através de uma máscara estranha que lhe dá uma aparência alienígena. Mas eu sei que ele é um homem, e o mais assustador: Eu sei que ele está aqui.
            Ao perceber que eu comecei a tremer um pouco mais (queria poder dizer que o motivo é frio, mas mentir não vai me tornar mais corajoso), ele vira seus olhos, também pálidos, na minha direção, e começa a falar comigo. A voz sai engraçada e pouco crível, ao passar pelo filtro estéril de sua máscara cinzenta. A história que ele me conta é um pouco menos crível. O cara diz ser um médico de uma das Colônias antigas. Aparentemente eles também têm ideias expansionistas agora, e estão investindo em programas como o da minha estatal. Só que eles são avançados (éticos) o bastante para terem médicos a bordo de suas expedições iniciais de reconhecimento, e a equipe (vejam só, uma equipe!) não é obrigada a contar apenas com as unidades de auto-cirurgia das Bases-Piloto. Eles estavam instalando um centro de pesquisas em uma das luas daqui, e detectaram atividade humana na superfície do planeta. Esse cara foi mandado para cá para ver se estava tudo bem e estabelecer contato. Uma das regiões intactas do meu cérebro estala, tentando avisar que tem algo errado. Eu queria que eles apagassem essas luzes, e que essa porra desse barulho fosse embora. A região intacta está isolada, ilhada no lodo de neurônios ensandecidos pela alta temperatura, e eu paro de pensar nisso...
            O homem pálido é um médico. Ele veio me ajudar. É tudo o que eu preciso saber no momento. Desmaio pela sétima vez. Um corpo nu flutua num campo cheio de petúnias feitas de eletricidade, longe de qualquer atmosfera respirável. Eu demoro três anos, observando cada detalhe do relevo de seu rosto para perceber que sou eu. Ao longo desses três anos, eu envelheço, mas o corpo nu continua jovem, continua morto, congelado. Seus cabelos e suas unhas continuam a crescer por um tempo, por mais que eu tenha ouvido dizer que isso não acontece de verdade. Tento abraçar meu próprio corpo congelado. Meus braços tremem e se deformam. Eles doem, pontadas cada vez mais agudas, a pele dilacerando-se sob uma lâmina incômoda e fria. O sangue corre espesso, estou desidratado. Demoro um tempo para entender que acordei, e o corpo nu demora ainda mais, permanecendo a flutuar do lado de cá da realidade, com sua sombra morta e nevada em meio à sala de cirurgia. O que a ética médica teria a dizer sobre uma operação realizada nessas condições, certo?
            O homem pálido arranca de dentro do meu braço uma fibra muscular inteira. Eu gostaria que os anestésicos durassem para sempre. Daqui a algumas horas, eu sei, esse meu desejo será mais forte. Ele aplica uma pasta sobre meus músculos (os restantes), e começa a suturar a abertura.
            — Bem-vindo de volta. — Ele não sabe meu nome. Eu nem me importo com o dele. — Seu caso não é dos mais graves, mas também não é nada animador.
            Sua voz tem algo de estranho. Ela estridula, provavelmente por conta de sua máscara. Ele é estranho. Não é só a palidez, a textura de sua pele parece estranha. E seus olhos são frios, e fazem minha febre oscilar com seu toque à distância. Apesar disso, consigo ver que ele está preocupado com a minha saúde, talvez movido por uma compaixão genuína, e não apenas hipocrática. Estou sedado, não consigo falar grande coisa. Balbucio algo sem muito sentido, enquanto observo, aterrorizado, ele colocando uma quantidade imensa de fibras musculares (as minhas fibras musculares) em um jarro de incineração. Minhas pálpebras cáusticas se arregalam: Meus pedaços de músculo parecem vermes: Elas tremem e se debatem, em um quase-terror, apenas superável pelo meu terror genuíno. Essa visão estranha, possivelmente fruto de um cérebro cansado, dopado por febre e químicos, me leva a abandonar a realidade mais uma vez.
            Minha mente anda por um vale azulado, entre dois rochedos magníficos que irradiam certo calor confortável. Ao longe, uma cascata de água muito limpa faz-me crer que ficará tudo bem. Posso confiar no estranho de branco, e posso confiar nessa fuga psicológica otimista e azulada. Antes que eu consiga sorrir, percebo um detalhe que me havia escapado: A encosta dos rochedos está coberta por grandes casulos escuros, de superfície viscosa e coloração metálica. Dentro dos casulos estão adormecidas pessoas extremamente deformadas. Nunca tive tanta vontade de acordar.

...

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