segunda-feira, 24 de junho de 2013

Palidez - Parte 4

Não houve um décimo desmaio. Ao longo dos dias, minha saúde foi melhorando, e agora eu já consigo andar, apesar de ainda estar sentindo uma dor escrota em boa parte do meu corpo. Agora que não estou mais debilitado, o homem-pálido encontra-se mais distante. Eu o agradeci imensamente por ter salvo a minha vida, disse que ele é um bom homem, quase um anjo, e esse monte de merdas que eu nunca falaria por ninguém se não me sentisse moralmente obrigado... E ele mal esboçou reação. Às vezes passo pela porta de seu quarto (um cômodo espaçoso da Base-Piloto, próximo ao ambulatório onde eu repouso), e vejo-o fitando uma parede, ou dormindo, ou mesmo sentado como se meditasse. Deve ser uma prática comum às Colônias, que ainda têm um resquício de espiritualidade não esmagada pelo ápice laico do desenvolvimento. De qualquer forma, o médico está desenvolvendo um comportamento estranho, e algo em toda essa tensão me assusta e contamina.
            Ele mal tem falado. Apenas monitora meu estado de saúde e volta para o quarto, silencioso como um inseto. Ele tem comido muito pouco também. Sinto que eu deveria estar fazendo algo por sua saúde, mas o sujeito trata de me tranquilizar sempre que eu pergunto alguma coisa. Frente a todos esses indícios, fica muito difícil segurar desconfianças antigas. Elas também estão de volta ao labirinto dos saudáveis, e também já conseguem andar. As dúvidas estão organizando passeatas frente aos meus olhos: Existe algo de errado com esse médico.
            Hoje cedo eu me lembrei que tenho de enviar o primeiro relatório para a base terráquea da corporação. Esses relatórios são uma completa merda, a sorte é que a restrição energética para envio de mensagens pela cadeia de satélites faz com que eu só tenha de enviar um relatório por mês. Passei pelo quarto do doutor, e perguntei se ele queria acompanhar o envio, já que ele se interessava tanto pela operação da base. Ele olhou para mim de forma apática, e sibilou um “não” desanimado. Se houve um “obrigado” ao final desse ruído, eu já não sei. Foda-se esse cara estranho! Eu tenho obrigações a realizar.
Sento-me em frente ao computador, apenas para constatar que o relatório já havia sido enviado, três dias atrás. Abrindo a cópia salva, deparo-me com um documento extremamente completo, que deve ter enchido de orgulho os caras das maletas elegantes. “A Base-Piloto já está praticamente toda funcional, e o planeta possui ótimas condições.”, diz o resumo do relatório. Um corpo de texto extremamente bem redigido dá os detalhes de minha doença, de meu tratamento (com a utilização dos módulos de auto-cirurgia, um detalhe bem interessante), e ressalta a importância de a próxima equipe ser completa, com um time de médicos e biólogos para um melhor estudo da biodiversidade local, e da doença em questão. Sobre esse assunto, o relatório recomenda a utilização de máscaras especiais, para evitar contaminações futuras. Eu não me lembro de...
Minha cadeira é bruscamente virada para trás. Olhando para mim, com olhos mortos e ressequidos, o homem-pálido tomba sobre meu peito. É quando eu tento me levantar para socorrê-lo que percebo um detalhe incômodo: Sua máscara fincou-se no meu abdômen, mas eu sequer sinto dor. Empurro o médico para longe de mim, e a máscara fica cravada na minha barriga. Caralho! O que está acontecendo? Eu não consigo me levantar! É mais uma daquelas alucinações? Mas eu não tenho febre há temp...
— Essa é a hora em que você se desaponta, não é mesmo? — Sua voz está ainda pior agora. Ela adquiriu uma qualidade de gargarejo, um ruído constante e nojento. O homem-pálido apoia-se numa cadeira e faz força para levantar-se do chão, despejando seu corpo magro e estranho sobre a cadeira. Uma vez esparramado pateticamente sobre a cadeira, ele também parece não conseguir se levantar. — “Você é um homem bom, cara!”... Acho que o seu anjo se foi, garoto!
A boca dele... Se antes havia uma desconfiança, agora eu estou cem por cento certo: O homem-pálido pode ser qualquer coisa, desde que essa coisa seja não-humana. A máscara era um envoltório que fazia parte do corpo dele, como um bico. A coisa mole e pegajosa que havia por baixo daquela “concha” não se assemelha nada a uma boca humana. Volto a tentar arrancar a máscara escura do meu abdômen. Nada! Não tenho essa força, talvez nunca tenha. Talvez nunca tenha novamente.
— Não arranque meu ovopositor, seu merda! Eu ainda não terminei com você... Quer dizer, meus meninos ainda nem começaram. — Ele tosse, e algo escuro goteja e borrifa-se, manchando a face do ar, transcrevendo a tosse em cores indistinguíveis. — É, eu mandei o relatório por você. Mas não é porque eu sou “um homem bom” ou posso ser comparado a um anjo guardião, garoto... Foi por uma pura questão de biologia. Por esse mesmo motivo eu gastei tanto tempo de vida brincando de picotar e salvar você. De fato, eu vim de uma das colônias humanas, onde o meu povo fez um certo estrago no seu pessoal. Vocês são bons hospedeiros. Vocês têm uma carne nutritiva, e vivem em grupos grandes. Esse negócio de “cidade” ajuda bastante no nosso ciclo de vida, sabia?
O “ovopositor” cai. Três esferinhas escuras estão depositadas lá dentro, mas os meus braços nem se movem mais para tentar tirá-las (a dor propriamente dita já me deixou há um bom tempo. ela foi substituída por um formigamento quase completo, uma clara noção de inexistência de tudo abaixo do pescoço. tem algum químico pesado nessa máscara natural do caralho). Tento xingá-lo de “parasita filho de uma puta”, mas apenas parte da palavra “parasita” chega, de fato, ao salloon sonoro dos insultos.
— Não, não, rapaz... Parasita, não... Parasitóide! Você sabe o que isso significa?
Lembro-me da palavra, mas o conceito foge-me do alcance rotineiro da memória.
— Significa que, quando esses ovos eclodirem, as minhas seis larvas vão te devorar por dentro, lentamente, saboreando a nuance de cada órgão, de cada tecido, cada líquido, cada célula... Até você morrer. Parasita era esse fungo escroto! Além de roubar um pouco dos seus músculos, essas porrinhas resolveram roubar bastante do meu tempo. Um pouco mais de demora e eu poderia morrer antes de conseguir colocar meus ovos em ti. Mas... Como tudo ia dar errado de qualquer forma, se eu fizesse meu ninho antes de curar você, não é verdade? Acho que valeu a pena... É, valeu a pena sim.
Ele tosse um pouco mais, e afunda na cadeira. Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
— E agora, eu morro. Bons sonhos, garoto!
Ele pega os livros de programação e deposita sobre o colo, possivelmente para que suas larvas aprendam alguma coisa depois de sua primeira refeição. Um pai preocupado com a educação de seus filhos. Tomara que eles, ao menos, enviem os meus malditos relatórios. Os velhos olhos da criatura param em um ponto fixo de um nada difuso e distante, e ele morre. Morre, com sangue (ou o análogo de sangue que mantém vivos os outros de sua espécie) gotejando pela boca amolecida e levemente dilacerada pela ovoposição. Morre sangrando pela boca, sentado, olhando para além do que se pode tocar. Morre como eu mesmo morrerei em alguns dias. Não consigo sentir minhas pernas, mas sei que elas já começam a doer. Sempre começa pelas pernas: Logo, eu sei, a febre estará de volta. E, com ela, vêm os adoráveis delírios de sempre.
Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.


FIM

5 comentários:

  1. Cara, foda. Sério, foda... Eu raramente me sinto triste pelo final triste, mas você conseguiu! Adorei

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    1. Poxa, bro... Que legal! Acho que nunca fiquei tão contente por deixar alguém triste xD

      Que bom MESMO que curtiu! Sempre que eu escrevo essas paradas meio terríveis misturadas com reflexões e dúvidas existenciais eu penso no senhor. Aparentemente não estou tão errado assim!

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  2. Poxa, esqueci que era a última parte, já estava esperando toda uma trama de dominação universal ou algo assim, fiquei meio decepcionada com o final hehe mas o conto é bem legal! Em parte, nem é tão fictício assim né..
    Coincidentemente, eu vi um filme hoje de uma galera que ia pra Marte investigar condições que permitissem a existência de vida humana, daí deu pra fazer um paralelo. Tipo, nessa condição interplanetária e o tanto que as pessoas deixam pra trás na Terra.
    Às vezes eu tenho a impressão de que o universo seja na verdade meio sem graça, nada no estilo Pandora, sabe.. muito menos do que a nossa imaginação, e que a vida na Terra (fora o ser humano) seria a mais interessante, mais maravilhosa mesmo! Só que quando descobrirmos isso, será tarde demais, eba \o/
    Espero estar enganada..

    Mas enfim, você é muito bom nisso! E parece até ter certa facilidade, então larga os artigos e escreva livros, oras!
    Digo, ... se você gosta, continue escrevendo! ^^

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    1. Feliz fiquei com vosso comentário, apesar da sua decepção no final ter magoado, ahuahuahuahuauahuhau! Finais tristes / desesperançosos costumam ser assim.

      Qual o nome do filme? É um que no final o cara aprende a respirar na água?

      Sobre a questão de vida em outros planetas, bem... Não sei. Acho possível que haja inclusive formas replicantes de composição extremamente diferente da nossa, quimicamente falando. E talvez vida similar também. O Universo é muito grande para imaginar que a vida só pudesse surgir nas mesmas condições que a permitiram na Terra.

      Mas de fato a exploração espacial em detrimento de tudo o que temos de fantástico a ser explorado aqui é um absurdo. Além disso, eu tenho medo do que as pessoas podem começar a fazer com o planeta caso se ache de fato um outro mundo habitável. No maior estilo "Então foda-se a conservação desse... dando merda a gente muda para o próximo!". Ou mais ainda, se acharmos vida macroscópica fora daqui, o que diabos não faríamos com ela, hã? "Casacos de Alpha-Centauriano, apenas US$ 900".

      Enfim, muito obrigado pelos elogios também! Pretendo conciliar minha vida de cientista com a de escritor. Sempre foi o plano. Viver só de escrita pode ser horrível para a qualidade dos textos (a pressão de publicar "para comer" pode fazer horrores!). Além do mais, mercado literário no Pindorama pode ser mais complicado do que se imagina. Mas tenho projetos grandes para esse exato fim :D

      Obrigado pelo incentivo. (E desculpa sair correndo no seu seminário: eu tinha de partir para uma viagem de campo a trabalho, estava atrasado!)

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    2. É esse mesmo!!! (o filme) Não lembro o nome, alguma coisa com Missão e Marte xD
      Mas eu achei bem legal. Aliás, bem melhor que Prometheus, na parte de quem teria criado o ser humano e tudo mais (não sei se você viu esse último, mas nem recomendo). Eu acredito em evolução, claro, mas quanto ao ser humano ainda tenho minhas dúvidas, hehe

      Enfim, compartilho dos seus medos.. não entendo porque conquista tem que envolver destruição.
      E relaxa, meu seminário foi um desastre total mesmo, mistura de negligência, muito sono e azar!

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