segunda-feira, 24 de junho de 2013

Palidez - Parte 3

Ainda estão tentando classificar e nomear a espécie causadora disso que eu estou sentindo. Para traçar um paralelo com o que temos na Terra, ela seria um fungo, e eu fiquei doente exatamente por ter aspirado os esporos desse fungo. Os sintomas são sonolência, tosse, febre alta, inflamação sistêmica, possíveis alucinações por conta da febre, e perda de força e controle dos músculos. E o motivo por trás disso é um tanto mais obscuro do que eu gostaria de saber. O homem-pálido me contou tudo antes de fazer a incisão no meu rosto, para a raspagem e o tratamento com antibiótico.
            — Dos pulmões eles passam para os músculos através da circulação. Alguns esporos acabam ficando no pulmão, e com isso a dispersão fica maior, eles infectam hospedeiros próximos pelo ar, com a tosse. Não é o caso dos seus, é claro, porque eu estou de máscara. Basicamente — nesse ponto, ele me anestesiou o rosto. A agulha é quase mais dolorida do que o fungo, e o anestésico em si parece uma dose de morfina diluída em soda cáustica. — eles procuram células com capacidade de contração. Por isso eles param nos músculos.
            Com o material da sala de auto-cirurgia, ele prepara o bisturi, os antissépticos, a tesoura e o conjunto de fórceps. Tento não ser tragado para a mente atemporal de um torturado na Idade Média. Metade de mim ouve o que o médico tem a dizer. A outra metade está sendo humilhada, mutilada e estuprada por Cruzados, que acreditam que eu não tenho alma, e que minha crença e minhas cimitarras e a areia entre meus cabelos e barba fazem de mim um ser impuro e imundo.
            — Seus músculos agora estão infestados por uma forma especializada desse fungo. O que ele faz é sequestrar as fibras musculares para adquirir mobilidade. Se você vir uma dessas grandes criaturas musculosas por aqui, talvez tenha a chance de ver as fístulas em sua pele, por onde as fibras musculares infectadas eventualmente escapam. — Seus dedos frios afastam minha pele. São frios o bastante para subverter a barreira anti-sensitiva do anestésico. Começam as lentas e precisas incisões na carne infecta. — A ideia é que essas fibras migrem para regiões mais altas e áridas, onde o calor induz uma nova diferenciação celular: Sobre o tapete de músculos do hospedeiro, crescem corpos de frutificação, que trocarão algo parecido com material genético (não em composição, é claro), formando novos esporos, que explodirão no ar e serão carregados pelo vento. É um ciclo de vida fascinante!
O fórceps agarra o músculo, que se debate feito um parasita intestinal surpreendido. Minha visão periférica observa enquanto aquela tripa empalidecida se contrai, tentando escapar de seu carrasco metálico, a conduzi-lo para sua condenada incineração em um jarro de bioplástico. Minha visão periférica também observa, em paralelo, enquanto um dos homens ostentando cruzes vermelhas no peito ateia fogo sobre uma pira de lenha. A urina deles toca meu rosto e fere meus olhos. Ela também é fria.
...


            Meus momentos de lucidez têm sido mais frequentes agora. Meus músculos doem ainda mais, por conta das inúmeras cirurgias, mas o antibiótico está funcionando muito bem, e eu estou progredindo. A tosse ainda não foi embora, mas o homem pálido crê ser apenas o tecido inflamado. Eu já sinto o gosto da comida (o que não é necessariamente agradável), e minha febre tem estado mais controlada. Quando não está arrancando fibras musculares de mim, o médico lê alguma coisa, ou explora um pouco a Base-Piloto a passos inquietos. Às vezes eu ainda alucino, e vejo gatos se escondendo no escuro, ou mesmo as paredes derretendo, ou cobertas por larvas. Minha mente tem sido visitada pelos dois Engenheiros de Software que sucumbiram antes de mim. Existe um mural com as fotos deles no salão principal da empresa. Não importa o que eles sussurrem às minhas orelhas febris, eu não pretendo ir atrás de uma homenagem similar.
            Agora que meu cérebro está funcionando um pouco melhor, volto a me perguntar onde estaria o resto da equipe do homem-pálido, e porque eles arriscariam enviar exatamente o médico na missão de reconhecimento, para investigar uma possível presença humana na superfície de um planeta que tem esse tipo de merda no ar. Mas se ele estivesse inventando essa história, de onde veio essa porra desse cara, e por que ele estaria me ajudando? Pode ser apenas a paranóia voltando a atacar, uma adaga movendo-se nas sombras, a taquicardia dolorida, ainda bem que eles não chegaram ao meu coração, ao meu cérebro, que está acontecendo comigo, com o meu cérebro? Que porras de luzes são essas, e essas palavras, e... Silêncio.
            Tudo é silêncio.
            Eu sei que tenho de continuar cavando. A terra é muito vermelha e esponjosa, mas ela é macia. É divertido observar que, quando eu cravo a metálica pá, a terra sai em nacos sólidos. Ela não esfarela, ou cai na forma de lama comum. Existe uma umidade também, um líquido espesso que verte da terra revirada. Água fria chove sobre mim, mas eu sei que tenho de continuar cavando. De qualquer forma, é confortável estar aqui, cavando meu lugar, minha casa, minha toca, em meio a essa terra rubra e esponjosa. Quando percebo que cavei o suficiente, largo a pá de lado. Não precisarei dela agora, e nem teria como usá-la, se necessitasse. Sorrio. Minha cabeça explode em uma névoa branca de esporos férteis, que chovem como gotículas macabras sobre a terra rubra que eu cavei. Meu antigo corpo cai e definha sobre minha nova toca muscular. A terra começa a se mexer agora, agitar-se freneticamente, movida pelos meus muitos filhos, que tem pressa. Pequenas tripas vermelhas e trêmulas tomam a paisagem, e eu estou dentro de todas elas.
            — Acorde! Acorde! — A voz dele perde a palidez. Ela está desesperada agora, e o desespero traz cores de um espectro próprio. Em um suporte de metal, uma bolsa com um líquido translúcido, emitindo um prolongamento tentacular até uma das minhas veias. Penso ver peixinhos ilusórios descendo pelo tubo transparente, mas logo retomo a noção das coisas.
            Digo ao homem-pálido que ele não é humano. Sua aparência é quase convincente, mas eu sei que ele não é humano. Ele não se move como um, ele não respira ou fala como um. Não é que eu não esteja grato por ele estar salvando a minha vida, eu só queria entender o que ele é, e o porquê de ele estar me salvando.
            — Você teve uma convulsão, rapaz. Sua mente está desorientada, você está alucinando.
            É claro que ele é humano, ou não se pareceria tanto com um. Ele senta-se ao meu lado, como um ser humano, e começa a me contar histórias, como um ser humano, para tentar me acalmar. Fala de seu planeta-natal, sobre como as colônias ainda têm o estigma do colonialismo. Ele faz uma piada sobre a sensação que ele tem de que deveria estar fazendo um relatório sobre absolutamente qualquer coisa, para enviar à Terra no final do mês. É assustador ouvir uma forma de vida inteligente descrevendo um “planeta-natal”. Mas se ele não fosse um ser humano, ele contaria piadas engraçadas. Eu estou mesmo bem fodido. Não consigo responder muita coisa, nem fingir rir do que ele tem a dizer. Às vezes eu gostaria de ser viciado em nicotina. Só para poder sentir a vontade de fumar quando não posso.
            Ele fala sobre as religiões de povos alienígenas que ele já estudou. Fala sobre estranhos deuses representados e venerados na forma de teoremas e equações do quarto grau. Fala sobre linguagens baseadas apenas em matemática, e sobre o brilho quente de sóis invisíveis nas bordas do sistema solar. Fala sobre mecanismos de viagem baseados apenas em dobras de espaço-tempo, e sobre a morte aprisionada em um Horizonte de Evento. Esse cara está me salvando, e mantendo crua a parte da minha consciência que ainda não fritou nas chamas metabólicas da febre. Então, ele diz que talvez eu devesse dormir, e pergunta se eu não teria algum material de programação e operação de software para que ele pudesse ler enquanto toma conta de mim.
            — Sempre me interessei um tanto por isso, mas nunca procurei ler a respeito de fato.
            Aponto para um leitor digital sobre uma mesa, e meus olhos cerram-se sozinhos.
...


            — A sua sorte é que os nossos músculos são frágeis demais. — Entreouço, em meio ao abafado ruído da anestesia. — Nós evoluímos em planetas de gravidade menor, nossos sistemas muscular e ósseo não são fortes como os dos análogos de animais que vivem por aqui. Por conta disso, sua infecção é quase abortiva, eles não conseguem sair, e o espalhamento do microrganismo pelo seu corpo é bem menor. Em outras palavras, rapaz, você é fraco demais para essa doença.
            De fato, uma puta sorte. Ele percebe que meus olhos discordam dele, silenciosamente. A anestesia foi quase geral, dessa vez, e não sei se eu consigo falar alguma coisa. O homem-pálido olha para mim, e parece rir sob sua máscara negra.
            — Você tem uma esposa lá na Terra?
            Uma esposa... Eu tinha uma esposa, em uma praia artificial, longe daqui. Nós éramos felizes, desde o início. Mas isso foi antes. Antes da seca areia do tempo e da febre escoriar a pele da minha esperança e me deixar aqui. Fotos de minha esposa começam a se desprender do teto da sala de cirurgia e a cair sobre mim. Sorrisos felizes, fotos de casamento, ensaios sensuais, fotos de quando éramos crianças, fotos eróticas, fotos que jamais foram batidas, exceto na memória, no sonho, impressas na matéria-prima das suposições, dos desejos, dos medos. Imagens me soterrando aos poucos, enquanto eu fico impedido de responder ao homem-pálido. Não pelo analgésico, e isso é o mais irônico... Mas pelo efeito que a própria pergunta causa em mim, ao fincar seus espinhos na parede do ouvido.
            — Se sim, sorte dela também. Você precisa ver o que acontece com o que se poderia chamar de “pênis” dos bichos daqui quando a infecção se desenvolve. Mas acho que você não vai chegar a ver isso. Nem você, nem sua mulher!
            Ele solta uma espécie de gargalhada, e ela não soa bem.
            Desmaio pela nona vez. Antes de fechar os olhos, consigo ver o homem-pálido erguendo seu corpo esquálido e me encarando seriamente. Sua mão procura alguma ferramenta na mesa de operações. Desmaio pela nona vez. Creio que essa seja a última cirurgia, e o último desmaio. Em algum ponto muito distante, um bisturi penetra algum ponto da minha carne. Eu adentro um cristal no interior de uma montanha. Os tremores na terra estão começando a cessar. Acho que o filho dos gigantes de gelo está se acalmando agora. Seu sorriso reflete o iminente despertar dos lobos.

...

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