sábado, 20 de dezembro de 2014

Itatiaia


A viagem começou a bater quando montamos um gigante de diesel antes do nascer do sol. O asfalto era muito, e estava frio, e havia sete de nós. Sabíamos onde queríamos chegar, mas não tínhamos a real certeza do “como”. Os gigantes de diesel teriam de funcionar, e talvez algumas perguntas e algumas canções nos dessem pistas do caminho.

De Porto Real para Resende. De lá, uma van nos cuspiu sonolentos em Itatiaia, onde ficamos esperando o último ônibus antes do Parque. Havia um fino sol, sob o qual conversávamos, e uma estrada de chão e alguns comércios fechados. Vimos alguns transportes corpulentos passando, todos para outros universos que não aquele que almejávamos. Seus lombos carregavam civis e militares, e todos olhavam para nós. Estavam cansados.

Entramos no ônibus, e fomos de pé. Nas conversas, fauna carismática e processos ecológicos. Talvez amemos tanto esse trabalho que cheguemos a nos esquecer que ele é trabalho. Talvez o tenhamos erguido um templo, uma pequena divindade. Escalamos as muralhas do templo, da Serra da Mantiqueira, com rodas de borracha como pés e mãos. Descemos em uma trilha de terra alaranjada, dentro do primeiro Parque Nacional do país, e voltamos a ser apenas sete, e a ter pés e mãos de carne.

Um jacu, algumas borboletas, um bando de guigós ao longe.  A silhueta de uma araucária adornava nosso passado recente, e diversas árvores, lianas, gramíneas e arbustos nos davam passagem, enquanto andávamos em direção à primeira piscina. A água gelada fez-se uma boa companhia: acho que eu tinha me esquecido por tempo demais o que era estar realmente vivo. As pedras da Piscina do Maromba são pilares, erguidos pelas mãos de ninguém. Sentado sobre elas, com um tímido sol a me tingir a pele, consigo meditar por um tempo breve. Percebo parte do que Edward Wilson definiu como “Biofilia”, e percebo que, à mente interessada, todo o mundo pode ser um infinito templo feito de puro nirvana.

Exploramos as montanhas, as pedras e as águas. Vemos o sol partir e regressar um sem-número de vezes. Percebemos a recursividade do tempo, e vivenciamos um ao outro em grandes pulsos. Nada pode ser tão excelente para bichos sociais como nós quanto estar partilhando uma existência tão imensa, tão bela em sua efemeridade e tão mutável em seu circundante mistério, com um grupo de semelhantes tão belo quanto fomos nós sete. Eu sentia um gosto bom no fundo de minha boca. Queria que ele durasse para sempre. Acho que nunca antes sustentei um sorriso tão verdadeiro.

Falamos de predação, de música, de ficção científica. Falamos sobre nós mesmos, sobre a nostalgia que era, para mim, estar naquele lugar. Falamos sobre a empolgação deles, de descobri-lo pela primeira vez, e projetamos, nas telas do cérebro um do outro, sonhos de um futuro ainda disforme, o eterno embrião de um futuro feito de neblina e probabilidades. Vivemos um dia ímpar, um dia díspar. Faço votos para que dias assim brotem sempre no solo fértil de nossas vidas, para que sejam apêndices efêmeros no embrião multicolorido de nossos sete futuros independentes.

Caminhamos de volta, aos tropeços de cansaço. A chuva tomou para si o lugar do parque, da empolgação e de boa parte de nossa comida e nossa água. Esperamos um último ônibus e ele nunca chega. Fotografias nos transbordam dos bolsos, como fragmentos de memórias compartilháveis. Como lembretes vagos.

Treze horas depois de nossa partida, chegamos em casa. Pizza e bolo nos esperavam. Os outros seis não sabiam, ali, o quanto os amei por terem me proporcionado aquele dia.


Talvez agora eles o saibam.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

[MINI-CONTO] Anthem

There is a stairway you'll go up, but never down.
And there's a room that you will never leave.
You're going to stay there, forever, until your name fades away, until it gets replaced with "Eternity". Enter, and you'll be eternal.

All hails to the immortal men and women! To all who ceased to be, and became one mass of soldiers! All hails to the sons and daughters of men, who became stepsons to silent decay.
All hails to you, who take my hand,
Enter my land
And  smile with me...

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

[POEMA] Monólogo em uma loja de bolsas

Eu preciso de uma bolsa nova.
A que carrego comigo está rasgada demais, surrada demais,
Sinto-a suja pressionada contra minhas roupas,
E espaçosa, e desconfortável.

Eu preciso de uma bolsa nova na qual eu possa guardar minhas memórias.
Não, não venha me dizer sobre "Utilizar até o fim". Esse é o fim.
Já não posso mais fingir que essa mochila aguenta sequer mais um dia,
Sem uma mudança radical em sua forma, e em sua organização interna.
Essa é uma bolsa morta.
Suas alças já não aguentam mais o próprio peso e ela me escapa do controle toda hora.
Continuar exibindo-a por aí, com um sorriso fingido, enquanto meus dias escapam por seus rasgos
                                                                                            [de tecido puído seria irresponsável.
Eu preciso de uma bolsa nova!

Preciso de uma que seja menor e mais calma.
Uma que não esbarre tão dolorosamente naqueles à minha volta.
Uma que não comprima aquilo que há em mim, que não torne tudo em espinhos voltados para todos                                                                                                                                     [os lados.
"Desculpe, caro amigo!"
"Foi mal te ferir, menina!"
"É essa minha bolsa velha, cheia de remendos. Ela anda pesada demais ultimamente."
"O ônibus sacolejou, eu não consigo ficar em pé direito com isso nas costas!"

Preciso guardar minha alma em uma bolsa diferente, vocês veem...
Que não mais soterre meus problemas em um fundo falso de escapismo,
Onde caiba minha mente inteira, minha rotina inteira, e ainda haja alguma folga.
Preciso de uma bolsa onde caiba um instrumento musical,
Alguns livros, talvez,
E que proteja melhor meus frascos de tormenta.
Algo de tecido não inflamável,
Com zíperes que funcionem melhor,
Algo que não questione tanto o porquê de encerrar em si coisas pesadas e amargas.

Uma bolsa com estampa mais serena.
Onde caiba um tanto de perdão para mim e para os outros.
Que não tenha um compartimento para tanta autoflagelação, eu não preciso tanto dela assim.
Algo que não agrave minha escoliose,
E que não carregue em si o logotipo
"Samsara, LTDA"

domingo, 16 de novembro de 2014

[REFLEXÃO INTIMISTA] Cromossomos (ou metade deles)

Eu tenho uma série de livros começados que eu nunca terminei. Alguns deles, inclusive, realmente compõem "séries de livros", como é o caso de Schrödinger, the Cat. Terceira parte de uma trilogia vaga (conectada apenas por um conceito, e pequenos elementos, mas composta de três histórias independentes), Schrödinger está em sua reta final. Há muito tempo. E outro dia eu realmente avancei algumas páginas, e novas ideias para o final do romance sci-fi têm brotado aqui e ali no meu cérebro ultimamente. Hoje, quando cheguei de viagem de Campinas (casa do meu irmão), pensei em trabalhar um tanto na direção de colocar um ponto final no Schrödinger logo!

Ao invés disso, eu acabo de colocar o "Dark Side of the Moon" para tocar, e vim escrever esse texto. Ele não tem tanto a ver com ficção científica. Ou talvez tenha.

Contextualizando, amanhã meu pai faz 62 anos, e hoje viemos de viagem conversando, ouvindo música e dividindo pequenos silêncios, através de quatro horas e meia de estrada e pedágios obscenos. Minha mãe ficou por Campinas para ficar um tempo a mais com minha sobrinha, então amanhã será um dia só meu com o meu pai. Depois de tomar um banho hoje, e lavar toda aquela Nova Dutra de mim, o pai estava me esperando com uma cerveja e um pouco de pernil acebolado. Foi nesse contexto que tivemos o que creio ter sido uma das mais emocionantes conversas da minha vida, um excelente prelúdio para meu dia dourado de amanhã. O texto em si começa agora:


De Guerrillero a Bom Velhinho


Eu sempre conversei mais com a minha mãe. O pai gosta de ressaltar o quanto ele é "ruim com as palavras", enquanto minha mãe, psicóloga amadora, sempre faz mais questão de nos perfurar a crosta de aparências, e prospectar a alma até que falemos de tudo. O pai, enquanto isso, observa de longe, com um sorriso no rosto e, às vezes, com música nos ouvidos. À parte isso, minha memória mais antiga é de um simbólico momento no qual, acordando no meio da noite choroso, eu fui acolhido pelas mãos grandalhonas do pai, que me embalou no colo, cantando uma música qualquer, e me botou de volta no berço. Essa é a minha primeira memória de conforto, o ato mais antigo de zelo e amor que eu me lembro de ter tido, e o protagonista disso é o meu pai.

Algum tempo depois disso, o pai deu a mim meu gosto musical, deglutido e servido em discos de vinil (alguns dos quais eu retenho até hoje) e CD's tocando no carro. Orgulho-me de não conhecer um mundo sem rock progressivo, sem Kraftwerk, e sem o Dark Side of The Moon tocando nos churrascos de família. E tenho o orgulho, hoje, de trocar sons com o meu pai, de conversar com ele na língua dele no que diz respeito a música. E daí vem tantas outras coisas: Sempre fascinado pelo mundo natural e pela ciência, foi meu pai que me eletrizou os olhos com o brilho que faz de mim hoje um aspirante a cientista. Todos aqueles documentários e revistas sobre o funcionamento das formas de vida e do Universo são a base para o biólogo que eu quero me tornar. Foi ele que alimentou o meu "bichinho da escrita", com livros e gibis quando eu era criança, com filmes de ficção científica, e mesmo com pequenas reflexões escritas de próprio punho a respeito da vida. E lembro-me de, bem pequeno, espelhar-me no seu jeito trovador de escrever pequenos bilhetes e sonetos para minha mãe.

Foi com o meu pai que eu aprendi a ser eu mesmo. Foi inspirado em sua retidão e ética pessoais que eu desenvolvi meu jeito "quadrado" de encarar certo e errado. E é inspirado em sua figura paterna, sempre sólida, sempre determinada ao melhor e mais dourado de si, que eu desenho o pai que eu quero ser um dia. O que eu mais gosto é da forma como ele transpira leveza, mesmo sendo um homem feito de preocupações a respeito do serviço, da vida e de nós. "Meu filho, o que eu faço é trabalhar e vir para casa ficar com sua mãe. Eu tenho o meu cigarrinho e a minha cervejinha, e essas são as minhas diversões. No mais, foda-se se me condenam por isso, eu tenho orgulho de fazer meu trabalho, e de curtir minhas alegrias, e de curtir vocês, que são o melhor que eu deixei no mundo."

Porra, pai... Você vem me falar de orgulho? Você, a pessoa mais ciente de si que eu conheço, mais consciente de suas limitações, mais exercente do "caminho do meio"? Eu é que me orgulho de ser veículo de metade dos seus genes, misturados com a metade do único ser humano que empata com você no conteúdo metafórico de ouro. E de ter aprendido com vocês dois a ser eu mesmo.

Hoje, em um momento de reflexão e insegurança (eu ando tendo MUITOS desses), perguntei ao meu pai se ele já teve medo de suas escolhas, e quando ele parou de senti-lo. Ele me disse que não, que sempre foi impulsionando a vida com calma, sem se projetar muito para o futuro. "Eu perdi meu pai muito cedo, e fiquei sem pai em um momento muito importante da minha vida", disse ele. "E minha mãe trabalhava, então eu me virei sozinho. A vida sempre foi muito instável, então eu percebi que não valia tanto a pena ficar se preocupando com daí a dez anos. Acho que pode até ser bom isso... Mas eu nunca fiz muito."

Era o que eu precisava, no momento. Aquele era eu, despertando choroso no que São João da Cruz chamou de "A Noite Sombria da Alma". E aquele era meu pai, me acolhendo e me cantando uma canção de novo, dizendo que tudo vai ficar bem.

Ao contrário do meu pai, eu não fiquei órfão cedo. E é pensando nisso, ouvindo a música que meu pai me deu, que eu escrevo essa homenagem a ele. Porque por mais que ele tenha quase partido algumas vezes, fruto de uma saúde tão instável quanto tudo na vida, ele ficou aqui. E, graças a isso, hoje ele me deu mais uma demonstração de como sua sabedoria simples e seu "budismo espontâneo" podem me guiar ainda hoje.

Nunca estarei pronto de tudo para perder esse homem, com todas as suas falhas e suas virtudes, e o seu cigarrinho e sua cervejinha. Então eu escrevo essa pequena ode, e torço para que demore muito até que eu tenha de cantar junto com o Ginsberg:


terça-feira, 11 de novembro de 2014

[POEMA] Matéria Escura

A noite se desbrava com a estrela solitária de um cigarro.
Meus passos não ecoam na calçada. Apenas a minha mente é ampla e vazia o bastante.
Existe um calor à solta. E eu nem sequer me importo mais em caçá-lo,
Em extingui-lo com uma chama fria, com uma água morta.

Hoje é um dia de alegrias vulgares,
De revoadas tristes.
Não sinto falta da cidade que se alicerçou na minha pele e se entrançou nos cabelos.
A minha música ficou para trás, e o silêncio já não soa estranho.

Não choro mais minha cincuncisão da alma,
Minha circunscrição afoita.
Não choro mais o sangue dos valentes, que se perderam nos meus olhos parvos.

Eu vejo a vida em lentes embaçadas
E não me importa em nada.
Porque de um palácio de trinares de ave,
Eu escolhi dançar entre os morcegos.
Minhas mãos têm queimaduras do outrora,
E a memória já se esconde aos ventos.

Foi-se o apetite de engolir o mundo, apenas o encaro em sua vitrine infecta.

Ontem havia uma floresta, hoje o nada.
Não lamento.
Entrego ao nada um presente de parelhas brancas

desencaixadas

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Palidez - Parte 4

Não houve um décimo desmaio. Ao longo dos dias, minha saúde foi melhorando, e agora eu já consigo andar, apesar de ainda estar sentindo uma dor escrota em boa parte do meu corpo. Agora que não estou mais debilitado, o homem-pálido encontra-se mais distante. Eu o agradeci imensamente por ter salvo a minha vida, disse que ele é um bom homem, quase um anjo, e esse monte de merdas que eu nunca falaria por ninguém se não me sentisse moralmente obrigado... E ele mal esboçou reação. Às vezes passo pela porta de seu quarto (um cômodo espaçoso da Base-Piloto, próximo ao ambulatório onde eu repouso), e vejo-o fitando uma parede, ou dormindo, ou mesmo sentado como se meditasse. Deve ser uma prática comum às Colônias, que ainda têm um resquício de espiritualidade não esmagada pelo ápice laico do desenvolvimento. De qualquer forma, o médico está desenvolvendo um comportamento estranho, e algo em toda essa tensão me assusta e contamina.
            Ele mal tem falado. Apenas monitora meu estado de saúde e volta para o quarto, silencioso como um inseto. Ele tem comido muito pouco também. Sinto que eu deveria estar fazendo algo por sua saúde, mas o sujeito trata de me tranquilizar sempre que eu pergunto alguma coisa. Frente a todos esses indícios, fica muito difícil segurar desconfianças antigas. Elas também estão de volta ao labirinto dos saudáveis, e também já conseguem andar. As dúvidas estão organizando passeatas frente aos meus olhos: Existe algo de errado com esse médico.
            Hoje cedo eu me lembrei que tenho de enviar o primeiro relatório para a base terráquea da corporação. Esses relatórios são uma completa merda, a sorte é que a restrição energética para envio de mensagens pela cadeia de satélites faz com que eu só tenha de enviar um relatório por mês. Passei pelo quarto do doutor, e perguntei se ele queria acompanhar o envio, já que ele se interessava tanto pela operação da base. Ele olhou para mim de forma apática, e sibilou um “não” desanimado. Se houve um “obrigado” ao final desse ruído, eu já não sei. Foda-se esse cara estranho! Eu tenho obrigações a realizar.
Sento-me em frente ao computador, apenas para constatar que o relatório já havia sido enviado, três dias atrás. Abrindo a cópia salva, deparo-me com um documento extremamente completo, que deve ter enchido de orgulho os caras das maletas elegantes. “A Base-Piloto já está praticamente toda funcional, e o planeta possui ótimas condições.”, diz o resumo do relatório. Um corpo de texto extremamente bem redigido dá os detalhes de minha doença, de meu tratamento (com a utilização dos módulos de auto-cirurgia, um detalhe bem interessante), e ressalta a importância de a próxima equipe ser completa, com um time de médicos e biólogos para um melhor estudo da biodiversidade local, e da doença em questão. Sobre esse assunto, o relatório recomenda a utilização de máscaras especiais, para evitar contaminações futuras. Eu não me lembro de...
Minha cadeira é bruscamente virada para trás. Olhando para mim, com olhos mortos e ressequidos, o homem-pálido tomba sobre meu peito. É quando eu tento me levantar para socorrê-lo que percebo um detalhe incômodo: Sua máscara fincou-se no meu abdômen, mas eu sequer sinto dor. Empurro o médico para longe de mim, e a máscara fica cravada na minha barriga. Caralho! O que está acontecendo? Eu não consigo me levantar! É mais uma daquelas alucinações? Mas eu não tenho febre há temp...
— Essa é a hora em que você se desaponta, não é mesmo? — Sua voz está ainda pior agora. Ela adquiriu uma qualidade de gargarejo, um ruído constante e nojento. O homem-pálido apoia-se numa cadeira e faz força para levantar-se do chão, despejando seu corpo magro e estranho sobre a cadeira. Uma vez esparramado pateticamente sobre a cadeira, ele também parece não conseguir se levantar. — “Você é um homem bom, cara!”... Acho que o seu anjo se foi, garoto!
A boca dele... Se antes havia uma desconfiança, agora eu estou cem por cento certo: O homem-pálido pode ser qualquer coisa, desde que essa coisa seja não-humana. A máscara era um envoltório que fazia parte do corpo dele, como um bico. A coisa mole e pegajosa que havia por baixo daquela “concha” não se assemelha nada a uma boca humana. Volto a tentar arrancar a máscara escura do meu abdômen. Nada! Não tenho essa força, talvez nunca tenha. Talvez nunca tenha novamente.
— Não arranque meu ovopositor, seu merda! Eu ainda não terminei com você... Quer dizer, meus meninos ainda nem começaram. — Ele tosse, e algo escuro goteja e borrifa-se, manchando a face do ar, transcrevendo a tosse em cores indistinguíveis. — É, eu mandei o relatório por você. Mas não é porque eu sou “um homem bom” ou posso ser comparado a um anjo guardião, garoto... Foi por uma pura questão de biologia. Por esse mesmo motivo eu gastei tanto tempo de vida brincando de picotar e salvar você. De fato, eu vim de uma das colônias humanas, onde o meu povo fez um certo estrago no seu pessoal. Vocês são bons hospedeiros. Vocês têm uma carne nutritiva, e vivem em grupos grandes. Esse negócio de “cidade” ajuda bastante no nosso ciclo de vida, sabia?
O “ovopositor” cai. Três esferinhas escuras estão depositadas lá dentro, mas os meus braços nem se movem mais para tentar tirá-las (a dor propriamente dita já me deixou há um bom tempo. ela foi substituída por um formigamento quase completo, uma clara noção de inexistência de tudo abaixo do pescoço. tem algum químico pesado nessa máscara natural do caralho). Tento xingá-lo de “parasita filho de uma puta”, mas apenas parte da palavra “parasita” chega, de fato, ao salloon sonoro dos insultos.
— Não, não, rapaz... Parasita, não... Parasitóide! Você sabe o que isso significa?
Lembro-me da palavra, mas o conceito foge-me do alcance rotineiro da memória.
— Significa que, quando esses ovos eclodirem, as minhas seis larvas vão te devorar por dentro, lentamente, saboreando a nuance de cada órgão, de cada tecido, cada líquido, cada célula... Até você morrer. Parasita era esse fungo escroto! Além de roubar um pouco dos seus músculos, essas porrinhas resolveram roubar bastante do meu tempo. Um pouco mais de demora e eu poderia morrer antes de conseguir colocar meus ovos em ti. Mas... Como tudo ia dar errado de qualquer forma, se eu fizesse meu ninho antes de curar você, não é verdade? Acho que valeu a pena... É, valeu a pena sim.
Ele tosse um pouco mais, e afunda na cadeira. Eu nem sabia que corações podiam bater tão rápido. Pelo menos um dos meus músculos ainda aguenta fazer alguma coisa, não é mesmo?
— E agora, eu morro. Bons sonhos, garoto!
Ele pega os livros de programação e deposita sobre o colo, possivelmente para que suas larvas aprendam alguma coisa depois de sua primeira refeição. Um pai preocupado com a educação de seus filhos. Tomara que eles, ao menos, enviem os meus malditos relatórios. Os velhos olhos da criatura param em um ponto fixo de um nada difuso e distante, e ele morre. Morre, com sangue (ou o análogo de sangue que mantém vivos os outros de sua espécie) gotejando pela boca amolecida e levemente dilacerada pela ovoposição. Morre sangrando pela boca, sentado, olhando para além do que se pode tocar. Morre como eu mesmo morrerei em alguns dias. Não consigo sentir minhas pernas, mas sei que elas já começam a doer. Sempre começa pelas pernas: Logo, eu sei, a febre estará de volta. E, com ela, vêm os adoráveis delírios de sempre.
Sorte... Algumas pessoas nascem com sorte.


FIM

Palidez - Parte 3

Ainda estão tentando classificar e nomear a espécie causadora disso que eu estou sentindo. Para traçar um paralelo com o que temos na Terra, ela seria um fungo, e eu fiquei doente exatamente por ter aspirado os esporos desse fungo. Os sintomas são sonolência, tosse, febre alta, inflamação sistêmica, possíveis alucinações por conta da febre, e perda de força e controle dos músculos. E o motivo por trás disso é um tanto mais obscuro do que eu gostaria de saber. O homem-pálido me contou tudo antes de fazer a incisão no meu rosto, para a raspagem e o tratamento com antibiótico.
            — Dos pulmões eles passam para os músculos através da circulação. Alguns esporos acabam ficando no pulmão, e com isso a dispersão fica maior, eles infectam hospedeiros próximos pelo ar, com a tosse. Não é o caso dos seus, é claro, porque eu estou de máscara. Basicamente — nesse ponto, ele me anestesiou o rosto. A agulha é quase mais dolorida do que o fungo, e o anestésico em si parece uma dose de morfina diluída em soda cáustica. — eles procuram células com capacidade de contração. Por isso eles param nos músculos.
            Com o material da sala de auto-cirurgia, ele prepara o bisturi, os antissépticos, a tesoura e o conjunto de fórceps. Tento não ser tragado para a mente atemporal de um torturado na Idade Média. Metade de mim ouve o que o médico tem a dizer. A outra metade está sendo humilhada, mutilada e estuprada por Cruzados, que acreditam que eu não tenho alma, e que minha crença e minhas cimitarras e a areia entre meus cabelos e barba fazem de mim um ser impuro e imundo.
            — Seus músculos agora estão infestados por uma forma especializada desse fungo. O que ele faz é sequestrar as fibras musculares para adquirir mobilidade. Se você vir uma dessas grandes criaturas musculosas por aqui, talvez tenha a chance de ver as fístulas em sua pele, por onde as fibras musculares infectadas eventualmente escapam. — Seus dedos frios afastam minha pele. São frios o bastante para subverter a barreira anti-sensitiva do anestésico. Começam as lentas e precisas incisões na carne infecta. — A ideia é que essas fibras migrem para regiões mais altas e áridas, onde o calor induz uma nova diferenciação celular: Sobre o tapete de músculos do hospedeiro, crescem corpos de frutificação, que trocarão algo parecido com material genético (não em composição, é claro), formando novos esporos, que explodirão no ar e serão carregados pelo vento. É um ciclo de vida fascinante!
O fórceps agarra o músculo, que se debate feito um parasita intestinal surpreendido. Minha visão periférica observa enquanto aquela tripa empalidecida se contrai, tentando escapar de seu carrasco metálico, a conduzi-lo para sua condenada incineração em um jarro de bioplástico. Minha visão periférica também observa, em paralelo, enquanto um dos homens ostentando cruzes vermelhas no peito ateia fogo sobre uma pira de lenha. A urina deles toca meu rosto e fere meus olhos. Ela também é fria.
...


            Meus momentos de lucidez têm sido mais frequentes agora. Meus músculos doem ainda mais, por conta das inúmeras cirurgias, mas o antibiótico está funcionando muito bem, e eu estou progredindo. A tosse ainda não foi embora, mas o homem pálido crê ser apenas o tecido inflamado. Eu já sinto o gosto da comida (o que não é necessariamente agradável), e minha febre tem estado mais controlada. Quando não está arrancando fibras musculares de mim, o médico lê alguma coisa, ou explora um pouco a Base-Piloto a passos inquietos. Às vezes eu ainda alucino, e vejo gatos se escondendo no escuro, ou mesmo as paredes derretendo, ou cobertas por larvas. Minha mente tem sido visitada pelos dois Engenheiros de Software que sucumbiram antes de mim. Existe um mural com as fotos deles no salão principal da empresa. Não importa o que eles sussurrem às minhas orelhas febris, eu não pretendo ir atrás de uma homenagem similar.
            Agora que meu cérebro está funcionando um pouco melhor, volto a me perguntar onde estaria o resto da equipe do homem-pálido, e porque eles arriscariam enviar exatamente o médico na missão de reconhecimento, para investigar uma possível presença humana na superfície de um planeta que tem esse tipo de merda no ar. Mas se ele estivesse inventando essa história, de onde veio essa porra desse cara, e por que ele estaria me ajudando? Pode ser apenas a paranóia voltando a atacar, uma adaga movendo-se nas sombras, a taquicardia dolorida, ainda bem que eles não chegaram ao meu coração, ao meu cérebro, que está acontecendo comigo, com o meu cérebro? Que porras de luzes são essas, e essas palavras, e... Silêncio.
            Tudo é silêncio.
            Eu sei que tenho de continuar cavando. A terra é muito vermelha e esponjosa, mas ela é macia. É divertido observar que, quando eu cravo a metálica pá, a terra sai em nacos sólidos. Ela não esfarela, ou cai na forma de lama comum. Existe uma umidade também, um líquido espesso que verte da terra revirada. Água fria chove sobre mim, mas eu sei que tenho de continuar cavando. De qualquer forma, é confortável estar aqui, cavando meu lugar, minha casa, minha toca, em meio a essa terra rubra e esponjosa. Quando percebo que cavei o suficiente, largo a pá de lado. Não precisarei dela agora, e nem teria como usá-la, se necessitasse. Sorrio. Minha cabeça explode em uma névoa branca de esporos férteis, que chovem como gotículas macabras sobre a terra rubra que eu cavei. Meu antigo corpo cai e definha sobre minha nova toca muscular. A terra começa a se mexer agora, agitar-se freneticamente, movida pelos meus muitos filhos, que tem pressa. Pequenas tripas vermelhas e trêmulas tomam a paisagem, e eu estou dentro de todas elas.
            — Acorde! Acorde! — A voz dele perde a palidez. Ela está desesperada agora, e o desespero traz cores de um espectro próprio. Em um suporte de metal, uma bolsa com um líquido translúcido, emitindo um prolongamento tentacular até uma das minhas veias. Penso ver peixinhos ilusórios descendo pelo tubo transparente, mas logo retomo a noção das coisas.
            Digo ao homem-pálido que ele não é humano. Sua aparência é quase convincente, mas eu sei que ele não é humano. Ele não se move como um, ele não respira ou fala como um. Não é que eu não esteja grato por ele estar salvando a minha vida, eu só queria entender o que ele é, e o porquê de ele estar me salvando.
            — Você teve uma convulsão, rapaz. Sua mente está desorientada, você está alucinando.
            É claro que ele é humano, ou não se pareceria tanto com um. Ele senta-se ao meu lado, como um ser humano, e começa a me contar histórias, como um ser humano, para tentar me acalmar. Fala de seu planeta-natal, sobre como as colônias ainda têm o estigma do colonialismo. Ele faz uma piada sobre a sensação que ele tem de que deveria estar fazendo um relatório sobre absolutamente qualquer coisa, para enviar à Terra no final do mês. É assustador ouvir uma forma de vida inteligente descrevendo um “planeta-natal”. Mas se ele não fosse um ser humano, ele contaria piadas engraçadas. Eu estou mesmo bem fodido. Não consigo responder muita coisa, nem fingir rir do que ele tem a dizer. Às vezes eu gostaria de ser viciado em nicotina. Só para poder sentir a vontade de fumar quando não posso.
            Ele fala sobre as religiões de povos alienígenas que ele já estudou. Fala sobre estranhos deuses representados e venerados na forma de teoremas e equações do quarto grau. Fala sobre linguagens baseadas apenas em matemática, e sobre o brilho quente de sóis invisíveis nas bordas do sistema solar. Fala sobre mecanismos de viagem baseados apenas em dobras de espaço-tempo, e sobre a morte aprisionada em um Horizonte de Evento. Esse cara está me salvando, e mantendo crua a parte da minha consciência que ainda não fritou nas chamas metabólicas da febre. Então, ele diz que talvez eu devesse dormir, e pergunta se eu não teria algum material de programação e operação de software para que ele pudesse ler enquanto toma conta de mim.
            — Sempre me interessei um tanto por isso, mas nunca procurei ler a respeito de fato.
            Aponto para um leitor digital sobre uma mesa, e meus olhos cerram-se sozinhos.
...


            — A sua sorte é que os nossos músculos são frágeis demais. — Entreouço, em meio ao abafado ruído da anestesia. — Nós evoluímos em planetas de gravidade menor, nossos sistemas muscular e ósseo não são fortes como os dos análogos de animais que vivem por aqui. Por conta disso, sua infecção é quase abortiva, eles não conseguem sair, e o espalhamento do microrganismo pelo seu corpo é bem menor. Em outras palavras, rapaz, você é fraco demais para essa doença.
            De fato, uma puta sorte. Ele percebe que meus olhos discordam dele, silenciosamente. A anestesia foi quase geral, dessa vez, e não sei se eu consigo falar alguma coisa. O homem-pálido olha para mim, e parece rir sob sua máscara negra.
            — Você tem uma esposa lá na Terra?
            Uma esposa... Eu tinha uma esposa, em uma praia artificial, longe daqui. Nós éramos felizes, desde o início. Mas isso foi antes. Antes da seca areia do tempo e da febre escoriar a pele da minha esperança e me deixar aqui. Fotos de minha esposa começam a se desprender do teto da sala de cirurgia e a cair sobre mim. Sorrisos felizes, fotos de casamento, ensaios sensuais, fotos de quando éramos crianças, fotos eróticas, fotos que jamais foram batidas, exceto na memória, no sonho, impressas na matéria-prima das suposições, dos desejos, dos medos. Imagens me soterrando aos poucos, enquanto eu fico impedido de responder ao homem-pálido. Não pelo analgésico, e isso é o mais irônico... Mas pelo efeito que a própria pergunta causa em mim, ao fincar seus espinhos na parede do ouvido.
            — Se sim, sorte dela também. Você precisa ver o que acontece com o que se poderia chamar de “pênis” dos bichos daqui quando a infecção se desenvolve. Mas acho que você não vai chegar a ver isso. Nem você, nem sua mulher!
            Ele solta uma espécie de gargalhada, e ela não soa bem.
            Desmaio pela nona vez. Antes de fechar os olhos, consigo ver o homem-pálido erguendo seu corpo esquálido e me encarando seriamente. Sua mão procura alguma ferramenta na mesa de operações. Desmaio pela nona vez. Creio que essa seja a última cirurgia, e o último desmaio. Em algum ponto muito distante, um bisturi penetra algum ponto da minha carne. Eu adentro um cristal no interior de uma montanha. Os tremores na terra estão começando a cessar. Acho que o filho dos gigantes de gelo está se acalmando agora. Seu sorriso reflete o iminente despertar dos lobos.

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